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5/26/2012

Neurobiologia da Dependência Química




NEUROADAPTAÇÕES

Há diversas correntes teóricas acerca da dependência química. Nenhuma delas é capaz de explicar totalmente os mecanismos e a psicopatologia envolvidos na gênese e na manutenção da dependência. Ainda assim, todas possuem observações pertinentes e úteis na abordagem e no tratamento desses indivíduos. A neurobiologia também deu contribuições ao tema. Entre essas, a teoria das neuroadaptações é a mais palpável, detectável em exames de neuroimagem e a responsável pelo surgimento da tolerância e dos sintomas de abstinência da substância.

O consumo prolongado de substâncias psicoativas provoca modificações anatômicas e fisiológicas no cérebro. Tais modificações tornam a droga cada vez mais importante para o indivíduo, uma vez que o novo equilíbrio conta agora com a presença da substância. A partir daí, a ausência da mesma será marcada por sintomas de desconforto, tais como fissura, tremores, suor, aumento da pressão e da temperatura. A busca do prazer vai aos poucos sendo substituída pela busca de alívio dos sintomas de desconforto (síndrome de abstinência). As características desse novo comportamento de busca serão moldadas tanto pela personalidade, quanto pelo ambiente cultural que permeia estes indivíduos. Há duas neuroadaptações mais conhecidas: a tolerância e a síndrome de abstinência, objetos do presente artigo.

Homeostase: tudo no organismo tende ao equilíbrio

Qualquer organismo vivo tem um modus operandi, isto é, um jeito de funcionar geneticamente determinado, que independe da vontade ou mesmo do conhecimento do indivíduo sobre a sua existência. Ninguém pede para sentir sono, liberar hormônio do crescimento, aumentar os batimentos do coração durante o exercício, suar no calor ou tremer no frio. Cabe ao organismo executar tais funções, com a finalidade de adaptar o indivíduo aos novos estímulos que recebe ao longo da vida. Qualquer adaptação às modificações causadas pelo ambiente externo visa à manutenção do equilíbrio fisiológico (homeostase) do organismo. Se há aumento de temperatura, os vasos sanguíneos se dilatam para facilitar a perda de calor e as glândulas secretam gotas de suor para resfriar o corpo. Já no frio, os vasos se contraem e o corpo treme, a fim de produzir calor. Em ambos casos, o corpo se adaptou às modificações externas de temperatura para não prejudicar o equilíbrio da temperatura corpórea.

FIGURA 1: O consumo de substâncias psicoativas provoca alterações neurobiológicas no cérebro. Ao metabolizá-las, o organismo recupera o equilíbrio inicial. O uso prolongado, no entanto, provoca alterações mais profundas no funcionamento cerebral, cuja permanência pode durar meses após a interrupção do consumo.

Ao longo da vida, o organismo não necessitou de substâncias psicoativas para se estabelecer. O álcool, o tabaco, a cocaína, a maconha e a heroína não são essenciais para o seu funcionamento. Frente à presença das mesmas, cria-se um novo padrão fisiológico de funcionamento. O organismo, então, se encarrega de destruí-las e eliminá-las, a fim de restabelecer seu equilíbrio habitual (homeostase). Quando tal presença se mostra ocasional, pontual, esporádica, o organismo apenas se incumbe da tarefa anteriormente descrita. Mas se a presença da substância se torna constante, o organismo produzirá uma série de modificações no cérebro para dificultar a ação das drogas e se aprimorará na destruição e excreção das mesmas. Mas se tais adaptações deixaram o funcionamento do organismo 'mais parecido' com o anterior (sem drogas), o novo modus operandi estabelecido passou a contar com a presença das drogas em seu dia-a-dia. Para isso, também desenvolveu mecanismos que sinalizam ao corpo a redução ou a ausência das mesmas. Desse modo, se de um lado o organismo se tornou mais indiferente à presença droga, também ficou mais sensível a sua falta.

Neuroadaptação: o equilíbrio possível

FIGURA 2: A hipótese de Himmelsbach para a dependência do álcool. O sistema nervoso central funciona em homeostase (equilíbrio). O consumo de álcool provoca alterações na química cerebral, para produzir seus efeitos agudos. Frente ao uso freqüente e prolongado da substância, o organismo provoca adaptações de oposição, com a finalidade de recuperar o equilíbrio perdido. Nessa fase, os efeitos do álcool para dose habitualmente consumida estão diminuídos (tolerância). Com a interrupção do consumo, a adaptação emerge, fazendo surgir uma sintomatologia no sentido oposto aos efeitos do álcool. É a síndrome de abstinência, que durará enquanto o equilíbrio anterior (sem álcool) não for restabelecido.

Segundo Littletton & Harper (1994), "a tolerância implica na capacidade da célula de se adaptar à presença dos agentes farmacológicos em seu ambiente para reassumir uma função relativamente normal. Em outras palavras, uma concentração mais alta da droga será necessária para produzir as mesmas perturbações funcionais que foram produzidas na primeira exposição da célula à droga". Isso é diferente da resistência à droga: as bactérias resistentes aos antibióticos funcionam normalmente com ou sem a presença destas substâncias. Os antibióticos não as afetam bioquimicamente. 

Dessa forma, os autores afirmam que "a dependência celular implica uma adaptação à presença da droga em seu ambiente, mas nesse caso a adaptação é tão severa que a célula não pode funcionar normalmente na ausência da droga. Assim, uma perturbação funcional (síndrome de abstinência) ocorrerá quando da remoção da droga". Para os autores, a neuroadaptação ocasiona tolerância e síndrome de abstinência a partir de um único processo de modificação adaptativa. Essa, no entanto, pode ser didaticamente dividida em neuroadaptação de prejuízo e de oposição.

Adaptação de prejuízo: tolerância

A adaptação de prejuízo consiste no desenvolvimento de mecanismos que dificultem a ação da droga sobre as células, reduzindo, assim, seus efeitos. Isso pode acontecer a partir da redução do número ou da sensibilidade dos receptores à substância em questão ou do aumento da eficiência do corpo na metabolização e eliminação da droga. A partir dessas modificações, a quantidade habitual de droga consumida não provocará no usuário os efeitos positivos que buscava. Para obtê-los de agora em diante, necessitará de doses maiores, capazes de 'romper' as novas barreiras neurobiológicas criadas pelo organismo. Esse aumento causará uma nova neuroadaptação, que implicará em um outro aumento de dose e assim por diante.

Adaptação de oposição: síndrome de abstinência

Apesar de também causar tolerância, a adaptação de oposição está relacionada ao aparecimento da síndrome de abstinência nos dependentes de substâncias psicoativas. Segundo Littletton & Harper (1994), "a adaptação de oposição consiste num mecanismo para derrotar os efeitos da presença da droga através da instituição de uma força oponente dentro da célula. Este tipo de alteração tem claramente um potencial, quanto exposto à remoção da droga, de produzir transtornos funcionais na direção oposta àquela causada originalmente pela droga". Desse modo, nota-se entre os usuários de sedativos uma síndrome de abstinência marcada por inquietação, insônia, aceleração do pensamento e confusão mental. Já entre os de estimulantes, o quadro é geralmente depressivo, com lentificação psicomotora e aumento do sono.

É essencial afirmar que as adaptações de oposição causam um desequilíbrio no sistema nervoso central quando a droga é retirada. Esse desbalanço aparece na forma de sintomas de desconforto, de intensidade variável, geralmente de natureza oposta à droga utilizada. Tais sintomas permanecerão até que o organismo recupere seu equilíbrio anterior, no qual não havia a presença constante da droga. Esse quadro é denominado síndrome de abstinência. A síndrome de abstinência e a tolerância a cada substância serão analisadas dois próximos capítulos.

Esse artigo teve como referência básica o capítulo "Tolerância e dependência celular", de John Littleton & Joyce C. Harper. In: Edwards G, Lader M. A natureza da dependência de drogas. Porto Alegre: Artes Médicas; 1994.