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5/26/2012

Neurobiologia da Dependência Química


O Sistema de Recompensa
A compreensão global e consensual acerca dos mecanismos pelos quais a substâncias psicoativas levam à dependência ainda está no começo. Fatores das mais variadas naturezas participam desses processos tornando limitadas abordagens a partir de um único foco. Por que indivíduos conseguem o convívio eventual com a substância, sem prejuízo de seus compromissos sociais, ao passo que outros o fazem de maneira abusiva e desestruturada? Por que os sintomas de abstinência parecem ser menos intensos em ambientes protegidos? Por que aqueles que buscam uma substância psicoativa têm propósitos tão distintos no que querem sentir?
O entendimento neurobiológico, em sua área de atuação, procura elucidar como as drogas e sua interação com um organismo vivo são capazes de direcioná-lo para um uso contínuo, muitas vezes desprovido de limites, onde a preocupação maior é estar em contato com a substância e seus efeitos físicos e psíquicos.


FIGURA 1: O sistema de recompensa. "Estruturas que compõem o sistema límbico têm um papel crucial na expressão das emoções e na atividade do sistema de recompensa do cérebro (área tegmental ventral e nucleus accumbens). A experiência do prazer e a modulação da recompensa acontecem a partir de uma 'cascata' de recompensa, ou seja, um encadeamento de neurônios que interagem dentro do sistema límbico, por meio de diversos neurotransmissores. O consumo prolongado de drogas altera o regime desses últimos. A deficiência de um ou mais neurotransmissores (em especial a dopamina) pode suplantar a sensação de bem-estar por ansiedade, mal-estar e fissura por uma substância capaz de aliviar tais sintomas negativos." American Scientist

O sistema de recompensa
Os neurônios se organizam em sistemas de neurotransmissão. Os sistemas são especializados em determinadas funções e se integram e interagem com outros sistemas. Dentro de um sistema predomina um neurotransmissor, responsável pela transmissão de informações, tanto para o cérebro, quanto para os órgãos efetuam as ordens provenientes do sistema nervoso central. A partir da década de cinqüenta os pesquisadores começaram a identificar sistemas cada vez mais específicos no sistema nervoso.
Nesse período, o psiquiatra americano James Olds (1922 - 1976), durante experimentos com eletrodos posicionados em cérebros de ratos, descobriu acidentalmente que os animais se sentiam atraídos por choques elétricos que estimulavam a região cerebral estudada por Olds. Chegavam a desinteressar por outras atividades prazerosas, como a alimentação, para se dedicarem exclusivamente à busca de tal estímulo. Olds havia posicionado os eletrodos em um sistema de neurotransmissão de dopamina, denominado sistema mesolímbico-mesocortical. Ele o batizou de sistema de recompensa do sistema nervoso central. Abriu-se um novo campo para o entendimento das bases neurobiológicas da dependência química.
O sistema dopaminérgico e a busca da recompensa


FIGURA 2: A dopamina é o neurotransmissor envolvido no sistema de recompensa. Ela é sintetizada e armazenada em vesículas. Com a chegada de um estímulo elétrico, as vesículas se fundem à membrana do neurônio e a dopamina é despejada na sinapse. Na fenda sináptica, a dopamina se liga aos receptores dopaminérgicos. Uma parte da dopamina é recolhida da sinapse pela bomba de recaptação, afim de armazená-la para que possa reutilizada novamente.

O sistema de recompensa (dopaminérgico) está presente desde os mamíferos mais primitivos. Ele tem participação fundamental na busca de estímulos causadores de prazer, tais como alimentos, sexo, relaxamento. Por meio do reforço positivo da recompensa, obtida durante essas experiências, o organismo é impelido a buscá-las repetidas vezes. Cria-se uma memória específica para isso. O sistema de recompensa, desse modo, é um importante mecanismo de autopreservação.
Dopamina, drogas e recompensa
A dopamina é o neurotransmissor sintetizado dentro do sistema de recompensa. Para sua síntese é necessária a presença do aminoácido tirosina. Por meio da enzima tirosina hidroxilase, a tirosina é transformada em forma em DOPA (3,4 - hidroxifenilalanina). A dopamina tem sua origem na descarboxilação da DOPA. Em seguida, é armazenada nas vesículas dos terminais pré-sinápticos para ser liberada na fenda após um estímulo neuronal. Esse estímulo pode ser a torta predileta, um carinho, uma conversa com amigos, enfim, situações que certamente valerão a pena serem repetidas.
Uma vez liberada na fenda, atua sobre os receptores dopaminérgicos, cujo efeito é uma sensação de bem-estar e euforia. Rapidamente após a ligação com os receptores dopaminérgicos, a dopamina é retirada da fenda. Isso sé dá por meio de três processos básicos: [1] difusão da dopamina para fora da fenda sináptica, [2] destruição por enzimas e [3] recaptação para o pré-sináptico de onde fora liberada. Ali, será estocada para ser liberada novamente. A recaptação é realizada pela bomba de recaptação, transportadores dopaminérgicos, encarregados de captar parte da dopamina liberada na fenda sináptica e devolvê-la ao terminal pré-sináptico a fim de ser reciclada.
Anatomia da recompensa
O sistema dopaminérgico possui três tratos considerados como os mais importantes, de grande interesse para o entendimento da neurobiologia da dependência química. Um destes é o trato mesolímbico-mesocortical, que se projeta a partir da área tegmental ventral (ATV) para a maior parte do córtex frontal (funções psíquicas superiores) e sistema límbico (emoção) e parece ser a via dopaminérgica relacionada à recompensa. Estudos têm demonstrado relação íntima entre algumas estruturas cerebrais e a recompensa. O nucleus accumbens e a área tegmental ventral parecem moderar o estímulo à recompensa, induzido por substâncias psicoativas.
Recompensa e dependência
Grande parte da propriedade aditiva das drogas está na ativação do sistema dopaminérgico. Isso pode ser feito de modo direto ou indireto. Substâncias psicoativas como a cocaína e a anfetamina agem diretamente sobre esse sistema, enquanto a nicotina e os opiáceos estimulam-no indiretamente. As causas naturais que normalmente estimulam o sistema de recompensa chegam a aumentar em até 100% sua atividade. Na vigência de substâncias psicoativas, no entanto, essa atividade ser 1000 vezes maior.
Cocaína
A cocaína, estimula diretamente o sistema recompensa, ligando-se à bomba de recaptação de dopamina e bloqueando sua ação. Conseqüentemente, mais dopamina permanecerá na fenda sináptica. Há um aumento da concentração, do tempo de permanência e da intensidade de ação da dopamina sobre os seus receptores. O resultado é um quadro de euforia e prazer muito mais intenso do que as situações que estimulam o sistema naturalmente. Isso reforça a busca pela substância psicoativa, a fim de satisfazer a necessidade da recompensa desencadeada.


Figura 3: A cocaína bloqueia a bomba de recaptação de dopamina. Como resultado, a dopamina permanece mais tempo na fenda e se liga aos receptores com mais intensidade. Isso causa uma sensação de euforia e bem-estar de grande intensidade e reforça o desejo por um novo consumo.

A cocaína também tem grande afinidade pelo sistema de neurotransmissão de serotonina, responsável pela modulação do humor , o controle dos impulsos e capaz de estimular também o sistema de recompensa. A ação da cocaína nesse sistema também se dá por meio do bloqueio da recaptação de serotonina. A afinidade da cocaína por essa bomba de recaptação é muito mais intensa se comparada aos antidepressivos que atuam nesse mesmo sítio.
Anfetaminas e Ecstasy
As anfetaminas e o ecstasy atuam sobre o sistema de recompensa induzindo a liberação maciça de dopamina na fenda, em uma quantidade muito maior do que a observada em estímulos naturais. Ela também inibe a recaptação, mas numa intensidade muito menor, se comparada à cocaína. De qualquer forma, o resultado final é um excesso de dopamina, que será removida com mais dificuldade, deixando-a agir mais tempo sobre os receptores e produzindo efeitos de euforia mais intensos.


FIGURA 4: Uma das diferenças entre o ecstasy e as outras anfetaminas modificadas é sua afinidade pelo sistema serotoninérgico, cuja ação lhe confere suas propriedades alucinógenas. O sistema serotoninérgico está amplamente conectado em todo o sistema nervoso. Os neurônios responsáveis pela produção de serotonina encontram-se agrupados no núcleo da rafe. O ecstasy bloqueia a recaptação da serotonina e a mantém atuando sobre os receptores por mais tempo e de forma intensificada. NIDA.

O ecstasy, além de atuar diretamente sobre o sistema de recompensa, tem especial afinidade pelo sistema serotoninérgico, de provêm seus efeitos alucinógenos e sinestésicos ("sons têm cores e cores têm sons"). O sistema serotoninérgico, quando estimulado, também atua positivamente sobre o sistema de recompensa, aumentando ainda mais o efeito euforizante produzido por este.
Nicotina
A nicotina estimula o sistema de recompensa de maneira indireta. Ela é capaz de se ligar aos receptores do um sistema de neurotransmissão conhecido por sistema colinérgico. A ligação aos receptores nicotínicos estimula a liberação de outro neurotransmissor, de natureza excitatória, conhecido por glutamato. O glutamato é capaz de estimular a liberação de dopamina no sistema de recompensa.
Outra ação da nicotina está na inibição do sistema GABA. Ao contrário do sistema glutamato (excitatório), esse sistema é capaz inibir todos os outros sistemas do cérebro, inclusive o de recompensa. Estando o sistema GABA bloqueado pela nicotina, a sensação de bem-estar e euforia proporcionada pelo consumo de cigarros torna-se ainda mais intensa, duradoura e causadora de dependência.
Opiáceos


FIGURA 5: Os opiáceos são capazes de estimular receptores opióides. Esses, por sua vez, estão conectados ao sistema de recompensa e são capazes de estimulá-lo diretamente. NIDA

Há uma grande concentração de receptores opiáceos ao redor da área tegmental ventral e do nucleus accumbens. O organismo possui receptores naturais para os opiáceos (heroína, dolantina, morfina, codeína e outros). Há três classes de receptores opióides envolvidos no surgimento de dependência aos opiáceos: receptores um, delta e kappa. O primeiro, no entanto, é o responsável pelos efeitos de bem-estar experimentados durante o consumo de opiáceos.
Os opiáceos ativam o sistema de recompensa de maneira indireta por meio de duas ações. A primeira consiste na ligação dos opiáceos com os receptores opióides dentro do sistema de recompensa. A ligação faz com que um sinal seja enviado para liberar dopamina. O sistema GABA inibe a liberação de dopamina. Os opiáceos, no entanto, bloqueiam a ação desse sistema. Desse modo, os efeitos da dopamina tornam-se mais potentes e duradouros.
Álcool


FIGURA 6: Algumas substâncias psicoativas são capazes de estimular diretamente o receptor GABA-A, em especial o álcool, os benzodiazepínicos e os barbitúricos. A ação inibitória do sistema GABA, quando estimulado em baixas doses por essas substâncias, alivia a ansiedade e provoca bem-estar.

O álcool atua sobre o sistema de recompensa indiretamente, por meio de sua ação no sistema glutamato (excitatório), GABA (inibitório), opióide (prazer e analgesia) e serotonina (humor e controle dos impulsos). Todos esses sistemas são capazes de interferir no sistema de recompensa. Ao inibir o sistema glutamato e estimular o sistema GABA, produz uma sensação de relaxamento, modulada pelo sistema de recompensa. Sua ação sobre a serotonina também produz uma sensação de euforia e bem-estar, predicativos que levam os indivíduos a desejarem novas experiências com a substância.
Alguns estudos apontam para a ação do álcool sobre o sistema opióide. O álcool parece atuar positivamente sobre os receptores opióides mu e negativamente sobre os receptores delta. Estudos com animais demonstraram que aqueles que não possuíam receptores delta ingeriram álcool com mais avidez e descontrole. Já a estimulação dos receptores mu aumentava a procura por álcool entre esses animais. Desse modo, o sistema opióide atua diretamente sobre o sistema de recompensa e está associado ao desenvolvimento da dependência.
Alguns indivíduos parecem possuir déficits na neurotransmissão de dopamina . O álcool, de alguma forma, consegue sanar essa deficiência. Para esses indivíduos, o consumo de álcool pode ter sua origem como uma forma de 'automedicação', ou seja, uma forma de mantê-lo relaxado, tranqüilo, uma que tais estados não acontecem naturalmente entre eles. Ficam, assim, extremamente predispostos ao desenvolvimento da dependência.
Tranqüilizantes (benzodiazepínicos e barbitúricos)
A ação de ambos sobre o sistema de recompensa é indireta, através da ação das substâncias sobre o sistema GABA. Tal ação produz redução da ansiedade e relaxamento. Tais efeitos seriam reforçadores e contribuem para o surgimento da dependência.
Maconha


FIGURA 7: Há evidências da capacidade do THC em estimular o sistema de recompensa a partir dos sistemas canabinóide e opióide. NIDA.

O princípio ativo da maconha, o D -9-THC possui receptores específicos dentro do sistema de recompensa. Há uma grande concentração destes ao redor da área tegmental ventral, do nucleus accumbens e do hipocampo. Não se sabe até o momento, porém, como o THC estimula o sistema de recompensa. Um das teorias vigentes postula que o THC, ao se ligar ao seu receptor específico dentro do sistema de recompensa, faz com essa ligação envie um sinal que estimula a liberação de dopamina e provoca os efeitos de bem-estar e relaxamento observados. O THC, provavelmente, é capaz de estimular o sistema opióide, que por sua vez estimula o sistema de recompensa.
Neuroadaptações
O sistema de recompensa produz bem-estar e euforia quando estimulado, aumentando o desejo de repetir tais sensações. Ele parece ser a estrutura central no desenvolvimento da dependência entre os usuários de substâncias psicoativas. No entanto, não é apenas o prazer o responsável pelo surgimento da dependência. Ao contrário, a evitação dos sintomas de desconforto (síndrome de abstinência), entre eles a fissura, é o grande propulsor da manutenção do uso. Tais sintomas decorrem provavelmente de alterações neurobiológicas na estrutura anatômica dos neurônios, por exemplo, redução de terminações nervosas e receptores. Essas alterações permanecem meses após a interrupção do consumo. Elas, também, acabam por bloquear o efeito euforizante da droga: o indivíduo deixa de sentir o prazer de outrora, mas continua impelido a buscar a droga, uma vez que seu corpo se adaptou a sua presença e sentirá sua falta em caso de abstinência da mesma.