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5/25/2012

Neurobiologia da Dependência Química


Fisiologia do Sistema Nervoso

Uma afirmação é fundamental quando se procura um ponto de partida para o entendimento da fisiologia do cérebro e de todo o sistema nervoso:

 Descrição: http://apps.einstein.br/alcooledrogas/novosite/imagens/shim.gifFIGURA 1: O sistema nervoso processa a informação a partir
da conversão de estímulos sensoriais em estímulos elétricos e químicos.

A principal função do sistema nervoso é captar informação sensorial do meio externo, analisá-la e enviar informação aos órgãos do corpo para que respondam à informação que o cérebro recebeu. Isso se dá a partir da conversão dos estímulos sensoriais (visão, gustação, tato, dor, calor...) em informações elétricas, que se convertem em informação química na sinapse, novamente em informação elétrica e assim por diante. Após a tomada de conhecimento da informação pelo cérebro, o mesmo processo se sucede até atingir o órgão alvo, onde se converte em energia motora (contração do músculo, liberação de hormônios, tremores, contração das glândulas do suor).

Descrição: http://apps.einstein.br/alcooledrogas/novosite/imagens/shim.gifFIGURA 2: O modelo da lâmpada e da bateria. O problema do espaço entre os fios,
que impossibilitava a passagem da energia elétrica, foi resolvido pela colocação de
uma solução iônica, capaz de conduzir a eletricidade ao fio seguinte.


Descrição: http://apps.einstein.br/alcooledrogas/novosite/imagens/shim.gifFIGURA 3: Um neurônio funciona de um modo semelhante.
A célula é capaz de gerar estímulos elétricos, que se propagam
pelos axônios até a terminação sináptica. Nessa são despejados
neurotransmissores, que se ligam a receptores do neurônio seguinte,
propagando assim o estímulo.

O modelo da bateria e da lâmpada
Tomando por modelo uma bateria e uma lâmpada (Figura 2). A bateria é um dispositivo capaz de gerar energia elétrica. A lâmpada consegue fornecer luz (energia térmica) a partir da passagem da corrente elétrica em seu interior.
Nos pólos de um desses objetos, há dois fios de cobre. O cobre é um bom condutor de energia elétrica. Esses fios se prolongam um em direção ao outro mas sem se tocarem. Os dois objetos estão fixos e irremovíveis e os fios são inflexíveis. Como seria possível a obtenção de luz, uma vez que fisicamente é impossível fazer com os fios se toquem?

Uma solução de água e sal resolveria o problema (Figura 2). O sal (cloreto de sódio) quando diluído em água transforma-se numa solução iônica e suas cargas permitem a passagem de energia. Desse modo, por meio de um artifício químico, foi possível à energia elétrica gerada pela bateria continuar seu caminho até a lâmpada. O calor dissipado pela corrente elétrica dentro da lâmpada se transforma em energia térmica, em luz. Uma forma de energia se convertendo em outra, viabilizada pela presença de uma mistura iônica (água e sal).
Mas o que poderia ser feito modular a intensidade da luz, por exemplo, como torná-la mais intensa? Algumas soluções seriam possíveis (Figura 3).

1.     Concentrar mais o soluto. Quanto mais sal for colocado na solução, mais íons estarão disponíveis e a energia elétrica pode passar com mais intensidade.
2.     Aumentar a carga da bateria. Quanto mais forte o estímulo elétrico, maior a intensidade da luz.
3.     Aumentar o diâmetro do fio. Quanto maior o calibre do fio, menor a resistência do mesmo à corrente elétrica até chegar à lâmpada.
4.     Escolher um melhor condutor. O ouro, por exemplo, conduz energia elétrica melhor do que o cobre.

Trazendo esse modelo para o sistema nervoso (Figura 3), poder-se-ia dizer que a bateria são os corpos neuronais, capazes de gerar estímulos elétricos. Os fios condutores dessa energia seriam os axônios. Da mesma forma que nossos fios convencionais necessitam serem encapados com isolantes(borracha) para 'canalizar' a corrente elétrica, os axônios são encapados porbainhas de mielina. As terminações dos fios, muito próximas mas intocáveis, são as sinapses. No interior da sinapse a propagação do estímulo se dá por meio de neurotransmissores. Os neurotransmissores viabilizam a propagação do estímulo elétrico gerado pelo neurônio ligando-se areceptores, localizados na membrana do neurônio seguinte. Para modular a intensidade do estímulo, esses receptores podem variar em número (fio mais ou menos calibroso) ou em sensibilidade à presença do neurotransmissor (fio de cobre ou de ouro). Por fim, a lâmpada equivale ao resultado da ordem enviada pelo sistema nervoso aos órgãos do corpo. Por exemplo, ao captar do ambiente um aroma agradável de comida, o cérebro prepara o organismo para receber o alimento, ordenando a secreção da saliva e do suco gástrico para digeri-lo. A intensidade das secreções dependerão do tamanho da fome e do quanto se gosta daquele tipo de comida.

A sinapse e os neurotransmissores

Neurotransmissores são substâncias liberadas na sinapse após a chegada de um estímulo elétrico. Eles são produzidos pelas mitocôndrias (localizadas próximas ao botão sináptico) e armazenados em vesículas (Figura 4). A chegada do estímulo elétrico provoca a fusão das membranas da vesícula com as membranas do terminal do axônio (membrana pré-sináptica), liberando os neurotransmissores. Esses se ligam aos receptores, localizados na membrana do neurônio seguinte (membrana pós-sináptica) (Figura 5).
Quando estimulados pelos neurotransmissores, os receptores despolarizam a membrana do neurônio, isto é, geram um novo estímulo elétrico. Desse modo, uma informação enviada na forma de um estímulo elétrico converteu-se em informação química, que em seguida foi novamente convertida em estímulo elétrico.


Descrição: http://apps.einstein.br/alcooledrogas/novosite/imagens/shim.gifFIGURA 4: A sinapse é o local onde a informação é transferida de um neurônio para o outro. Nas proximidades da terminação, os axônios perdem sua bainha de mielina e se dividem em numerosos ramos terminais [figura à esquerda]. A parte 'desencapada' da terminação do axônio se dilata para formar o botão sináptico [figura à direita], que aumenta a área de contato. Na sinapse a informação elétrica é convertida em informação química, por meio da liberação de neurotransmissores. Os neurotransmissores são produzidos pelas mitocôndrias e armazenados em vesículas, posicionadas próximas à membrana do axônio. Os neurotransmissores possuem funções específicas, podendo ser, por exemplo, inibitórios ou excitatórios. Sua presença na sinapse estimula a membrana do neurônio seguinte, e se propaga o estímulo elétrico original. FONTE (imagem e texto): Netter F. Fisiologia e neuroanatomia funcional. SP: Lemos Ed. 1997.

Vários tipos de substâncias atuam como neurotransmissores, podendo ser elas hormônios (hormônios tireóideanos, hipofisários, insulina), aminoácidos (glicina, glutamato, GABA), aminas (noradrenalina, serotonina, dopamina) e a acetilcolina. Cada neurotransmissor tem uma mensagem específica para o neurônio seguinte. Quanto mais neurotransmissores forem liberados na fenda (tal qual o sal no modelo da bateria e da lâmpada), mais intenso o estímulo será. Quanto mais receptores estiverem disponíveis na membrana do neurônio (calibre do fio) e quanto mais sensíveis eles forem àquele neurotransmissor (metal condutor), com mais intensidade o estímulo se dará. Portanto a quantidade de neurotransmissores secretados na fenda sináptica, o número e a sensibilidade dos receptores são importantes mecanismos para regular a intensidade de um estímulo.

FIGURA 5: A neurotransmissão. A chegada de um estímulo elétrico [1] faz com que a vesícula de neurotransmissores se funda à membrana pré-sináptica [2], provocando liberação destes [3]. Na fenda sináptica, os neurotransmissores se ligam ao seu receptor específico [4], que despolariza a membrana pós-sináptica, propagando o estímulo elétrico [5]. O organismo, logo após a propagação do estímulo, retira rapidamente o neurotransmissor da fenda. Isso acontece de três maneiras: abomba de recaptação recupera ativamente os neurotransmissores liberados [6] e os armazena novamente [7]. Enzimas presentes na fenda destroem os neurotransmissores [8]. Os neurotransmissores saem da fenda espontaneamente (difusão) [9].

Outro fator regulador importantíssimo é a remoção do neurotransmissor da fenda sináptica. Quanto mais tempo o neurotransmissor permanecer na sinapse, maior será o estímulo propagado. Desse modo, é importante que ele seja retirado rapidamente da fenda. A remoção dos neurotransmissores se dá pela [1] saída espontânea do neurotransmissor para o meio externo (difusão), [2] destruição do neurotransmissor por enzimas, [3] recuperação dos neurotransmissores por meio de bombas de recaptação, para serem re-armazenados em vesículas e reaproveitados (Figura 5). As bombas de recaptação merecerem destaque, por estarem envolvidas no mecanismo de ação da cocaína, da anfetamina e do ecstasy no cérebro, como será visto adiante.

O estímulo elétrico

Já é sabido que o cérebro é um órgão elétrico. Isto é, as informações que recebe e envia para o meio ambiente, são transmitidos por meio de impulsos elétricos e químicos. A informação química é transmitida por meio da interação de neurotransmissores e receptores. No sistema nervoso, os estímulos elétricos são chamados de potenciais de ação. Os potenciais de ação são gerados pela diferença de concentração de íons misturados aos líquidos de dentro e de fora da células nervosas. Os íons possuem carga elétrica positiva ou negativa.

Em qualquer mistura, há sempre a tendência ao equilíbrio, isto é, as partículas sempre alcançam uma distribuição semelhante (homogênea) por todo o líquido. Isso pode ser facilmente percebido quando se faz suco em pó. Inicialmente a cor do pó se concentra numa porção do líquido e aos poucos vai se espalhando (se difundindo), até deixar o líquido com uma cor única (homogênea). Esse fenômeno natural é denominado difusão.

As células neuronais são delimitadas por membranas. As membranas impedem que moléculas grandes (como as proteínas) entrem e saiam da célula, mas seus buracos são muito grandes para impedirem o livre trânsito dos íons. Como partículas de uma mistura, eles tendem a se misturar igualmente dentro e fora da célula.
As membranas das células, no entanto, possuem uma estrutura denominada bomba de sódio (Na+) e potássio (K+) (Figura 6). Essa bomba (tal como uma bomba de dragagem) coloca para fora o máximo possível de sódio e coloca para dentro o máximo possível de potássio (veja uma animação). O interior da célula possui proteínas com cargas negativas, que são muito grandes para atravessarem a parede das membranas e ficam retidas. Para compensar essa carga negativa, os íons cloreto (Cl-) vão naturalmente para fora da célula (difusão).
Qual o resultado final. Dentro do neurônio há mais sódio e proteínas com cargas negativas. Fora do neurônio há mais potássio e cloreto. Devido a esse diferencial elétrico criado pela bomba de sódio e potássio e pela presença das proteínas com cargas negativas, o interior do neurônio é cerca de 70 milivolts (mV) mais negativo que o meio extracelular.


FIGURA 6: Na figura à esquerda vê-se a distribuição dos íons (eletrólitos), elementos químicos dotados de cargas elétricas, dentro e fora das células. Vê-se de pronto que o interior das células é mais rico em potássio e o exterior, em sódio. Isso acontece devido a existência da bomba de sódio e potássio (clique na figura à direita para ver uma animação), que retira ativamente (ou seja, com gasto de energia) o sódio da célula e o troca por potássio extracelular. Isso torna o interior da célula mais negativo.

A propagação do estímulo elétrico (despolarização)

A pele possui receptores especializados para detectar estímulos táteis. Isso quer dizer que esses receptores são capazes de converter estímulos mecânicos em elétricos. Quando eles recebem tal estímulo do meio ambiente (por exemplo, uma picada de pernilongo), ocorre um fenômeno chamado despolarização.

O interior de suas células é mais negativo que o exterior, a custa do trabalho da bomba de sócio e potássio. As membranas de suas células, porém, possuem canais (Figura 5) que permitem a entrada e saída rápida de íons que a bomba de sódio e potássio tornara desiguais. Com a chegada do estímulo, esses canais são abertos e o interior da célula vai se tornando positivo. Isso gera opotencial de ação (estímulo elétrico). O interior da célula que era de -70mV vai para +20mV. Nesse ponto, os canais se fecham e a bomba volta trocar íons sódio por potássio, tornando o interior da célula novamente negativo (repolarização). Esse fenômeno vai se propagando ao longo do axônio até a sinapse. Seria como se o axônio fosse uma carreira de pólvora inflamada e a despolarização a chama que a percorre. A chama é a despolarização. Tudo o que estiver atrás da chama já se repolarizou. O que estiver adiante são membranas ainda em repouso. Quando esse estímulo elétrico chega à sinapse as vesículas de neurotransmissores são liberadas na fenda. O neurotransmissor se liga aos receptores que despolarizam a membrana do neurônio seguinte. E o estímulo elétrico segue.

FIGURA 7: A despolarização da membrana. Nas imagens acima, a descarga elétrica caminha ao longo do axônio até chegar ao botão sináptico, onde provocará a liberação de neurotransmissores. Esses, ao se ligarem ao receptores, despolarizarão a membrana do neurônio seguinte.

Especificidade

Apesar de qualquer neurônio funcionar da mesma maneira, cada um desempenha funções específicas no sistema nervoso. Há neurônios especializados em receber os estímulos do meio ambiente e encaminhá-los à medula. Ali, outra classe de neurônios recebe essas informações e as encaminha ao cérebro. O cérebro, por fim, tomará conhecimento da natureza do estímulo e lhe enviará uma resposta.


FIGURA 8: Os neurônios desempenham funções específicas dentro do sistema nervoso. Há neurônios encarregados da coleta de informações (visão, olfato, gustação, tato, audição). Na medula, estão os responsáveis pelo envio destas às principais regiões do cérebro. No cérebro elas serão comparadas com estímulos e experiências anteriores, serão arquivadas, vivenciadas. A chegada do estímulo ao cérebro provocará uma reação, que se converterá em uma resposta motora e psíquica.

Mas uma determinada função não é desempenhada por uma única célula, mas sim por um grupo de neurônios semelhantes. Desse modo, neurônios semelhantes se agrupam formando sistemas de neurotransmissão. Dentro de um sistema, o conjunto decorpos neuronais é denominado núcleo ou gânglio, enquanto o conjunto de axônios é chamado trato. O quadro de força de uma casa pode servir de modelo. Suponha-se que as fiações saídas do quadro pudessem ser organizadas em fios de iluminação, de aquecimento, de aparelhos de áudio, de aparelhos de vídeo, de eletrodomésticos de cozinha. O ponto do quadro de onde saem os fios de iluminação seria denominado núcleo de iluminação. Já o cano que reúne todos esses fios, o trato da iluminação.

Há incontáveis sistemas de neurotransmissão (quadro 1), todos absolutamente integrados. Em geral desempenham mais de uma função dentro do sistema nervoso e quase nunca com exclusividade. Dentro de cada sistema, pode haver divisão em outros menores e mais especializados ainda. Há sempre combinações, modulações e interferências recíprocas.

Sistemas de neurotransmissão do sistema nervoso

SISTEMA                                              FUNÇÃO NO SNC
GABA-A                                                INIBIÇÃO (SEDAÇÃO)
GLUTAMATO (NMDA)                      EXCITAÇÃO (ESTÍMULO), MEMÓRIA
OPIÓIDE                                              PRAZER, ANALGESIA, INIBIÇÃO
SEROTONINÉRGICO                       HUMOR, IMPULSOS
DOPAMINÉRGICO                            RECOMPENSA, PRAZER
NORADRENÉRGICO                        SISTEMA NERVOSO AUTÔNOMO

Colocados os principais aspectos anatômicos e funcionais do sistema nervoso, o mecanismo neurobiológico da dependência será o próximo tópico. Nesse serão apresentadas as repercussões para o sistema nervoso, decorrentes da presença constante de uma substância no organismo.