Fisiologia
do Sistema Nervoso
Uma afirmação é fundamental quando se procura um ponto de partida para o
entendimento da fisiologia do cérebro e de todo o sistema nervoso:
FIGURA 1: O sistema nervoso processa a informação a partir
da conversão de estímulos sensoriais em estímulos elétricos e químicos.
A principal função do sistema nervoso é captar informação sensorial do
meio externo, analisá-la e enviar informação aos órgãos do corpo para que
respondam à informação que o cérebro recebeu. Isso se dá a partir da conversão
dos estímulos sensoriais (visão, gustação, tato, dor, calor...) em informações
elétricas, que se convertem em informação química na sinapse, novamente em
informação elétrica e assim por diante. Após a tomada de conhecimento da
informação pelo cérebro, o mesmo processo se sucede até atingir o órgão alvo,
onde se converte em energia motora (contração do músculo, liberação de
hormônios, tremores, contração das glândulas do suor).
FIGURA 2: O modelo da lâmpada e da bateria. O problema do espaço entre
os fios,
que impossibilitava a passagem da energia elétrica, foi resolvido pela
colocação de
uma solução iônica, capaz de conduzir a eletricidade ao fio seguinte.
FIGURA 3: Um neurônio funciona de um modo semelhante.
A célula é capaz de gerar estímulos elétricos, que se propagam
pelos axônios até a terminação sináptica. Nessa são despejados
neurotransmissores, que se ligam a receptores do neurônio seguinte,
propagando assim o estímulo.
O modelo da bateria e da lâmpada
Tomando por modelo uma bateria e uma lâmpada (Figura 2). A
bateria é um dispositivo capaz de gerar energia elétrica. A lâmpada consegue
fornecer luz (energia térmica) a partir da passagem da corrente elétrica em seu
interior.
Nos pólos de um desses objetos, há dois fios de cobre. O cobre é um bom
condutor de energia elétrica. Esses fios se prolongam um em direção ao outro
mas sem se tocarem. Os dois objetos estão fixos e irremovíveis e os fios são
inflexíveis. Como seria possível a obtenção de luz, uma vez que fisicamente é
impossível fazer com os fios se toquem?
Uma solução de água e sal resolveria o problema (Figura 2). O sal
(cloreto de sódio) quando diluído em água transforma-se numa solução iônica e
suas cargas permitem a passagem de energia. Desse modo, por meio de um
artifício químico, foi possível à energia elétrica gerada pela bateria
continuar seu caminho até a lâmpada. O calor dissipado pela corrente elétrica
dentro da lâmpada se transforma em energia térmica, em luz. Uma forma de
energia se convertendo em outra, viabilizada pela presença de uma mistura
iônica (água e sal).
Mas o que poderia ser feito modular a intensidade da luz, por exemplo,
como torná-la mais intensa? Algumas soluções seriam possíveis (Figura 3).
1. Concentrar mais o soluto. Quanto mais sal for colocado na
solução, mais íons estarão disponíveis e a energia elétrica pode passar com
mais intensidade.
2. Aumentar a carga da bateria. Quanto mais forte o estímulo
elétrico, maior a intensidade da luz.
3. Aumentar o diâmetro do fio. Quanto maior o calibre do fio, menor
a resistência do mesmo à corrente elétrica até chegar à lâmpada.
4. Escolher um melhor condutor. O ouro, por exemplo, conduz
energia elétrica melhor do que o cobre.
Trazendo esse modelo para o sistema nervoso (Figura 3),
poder-se-ia dizer que a bateria são os corpos
neuronais, capazes de gerar estímulos elétricos. Os fios
condutores dessa energia seriam os axônios. Da
mesma forma que nossos fios convencionais necessitam serem encapados com isolantes(borracha)
para 'canalizar' a corrente elétrica, os axônios são encapados porbainhas
de mielina. As terminações dos fios, muito próximas mas
intocáveis, são as sinapses. No interior da sinapse a
propagação do estímulo se dá por meio de neurotransmissores.
Os neurotransmissores viabilizam a propagação do estímulo elétrico gerado pelo
neurônio ligando-se areceptores, localizados na membrana do
neurônio seguinte. Para modular a intensidade do estímulo, esses receptores
podem variar em número (fio mais ou menos calibroso) ou em sensibilidade
à presença do neurotransmissor (fio de cobre ou de ouro). Por fim, a lâmpada equivale
ao resultado da ordem enviada pelo sistema nervoso aos órgãos do corpo. Por
exemplo, ao captar do ambiente um aroma agradável de comida, o cérebro prepara
o organismo para receber o alimento, ordenando a secreção da saliva e do suco
gástrico para digeri-lo. A intensidade das secreções dependerão do tamanho da
fome e do quanto se gosta daquele tipo de comida.
A sinapse e os neurotransmissores
Neurotransmissores são substâncias liberadas na sinapse após a chegada
de um estímulo elétrico. Eles são produzidos pelas mitocôndrias (localizadas
próximas ao botão sináptico) e armazenados em vesículas (Figura 4). A
chegada do estímulo elétrico provoca a fusão das membranas da vesícula com as
membranas do terminal do axônio (membrana pré-sináptica), liberando os
neurotransmissores. Esses se ligam aos receptores, localizados na membrana do
neurônio seguinte (membrana pós-sináptica) (Figura 5).
Quando estimulados pelos neurotransmissores, os receptores despolarizam a
membrana do neurônio, isto é, geram um novo estímulo elétrico. Desse
modo, uma informação enviada na forma de um estímulo elétrico converteu-se em
informação química, que em seguida foi novamente convertida em estímulo
elétrico.
FIGURA 4: A sinapse é o local onde a informação é
transferida de um neurônio para o outro. Nas proximidades da terminação, os
axônios perdem sua bainha de mielina e se dividem em numerosos ramos terminais
[figura à esquerda]. A parte 'desencapada' da terminação do axônio se
dilata para formar o botão sináptico [figura à direita],
que aumenta a área de contato. Na sinapse a informação elétrica é convertida em
informação química, por meio da liberação de neurotransmissores. Os
neurotransmissores são produzidos pelas mitocôndrias e armazenados em
vesículas, posicionadas próximas à membrana do axônio. Os neurotransmissores
possuem funções específicas, podendo ser, por exemplo, inibitórios ou
excitatórios. Sua presença na sinapse estimula a membrana do neurônio seguinte,
e se propaga o estímulo elétrico original. FONTE (imagem e texto): Netter F.
Fisiologia e neuroanatomia funcional. SP: Lemos Ed. 1997.
Vários tipos de substâncias atuam como neurotransmissores, podendo ser
elas hormônios (hormônios tireóideanos, hipofisários, insulina), aminoácidos
(glicina, glutamato, GABA), aminas (noradrenalina, serotonina, dopamina) e a
acetilcolina. Cada neurotransmissor tem uma mensagem específica para o neurônio
seguinte. Quanto mais neurotransmissores forem liberados na fenda (tal qual o
sal no modelo da bateria e da lâmpada), mais intenso o estímulo será. Quanto
mais receptores estiverem disponíveis na membrana do neurônio (calibre do fio)
e quanto mais sensíveis eles forem àquele neurotransmissor (metal condutor),
com mais intensidade o estímulo se dará. Portanto a quantidade de
neurotransmissores secretados na fenda sináptica, o número e a sensibilidade
dos receptores são importantes mecanismos para regular a intensidade de um
estímulo.
FIGURA 5:
A neurotransmissão. A chegada de um estímulo elétrico [1] faz com que a
vesícula de neurotransmissores se funda à membrana pré-sináptica [2],
provocando liberação destes [3]. Na fenda sináptica, os
neurotransmissores se ligam ao seu receptor específico [4], que
despolariza a membrana pós-sináptica, propagando o estímulo elétrico [5].
O organismo, logo após a propagação do estímulo, retira rapidamente o
neurotransmissor da fenda. Isso acontece de três maneiras: abomba de
recaptação recupera ativamente os neurotransmissores liberados [6]
e os armazena novamente [7]. Enzimas presentes na fenda destroem os
neurotransmissores [8]. Os neurotransmissores saem da fenda
espontaneamente (difusão) [9].
Outro fator regulador importantíssimo é a remoção do
neurotransmissor da fenda sináptica. Quanto mais tempo o neurotransmissor
permanecer na sinapse, maior será o estímulo propagado. Desse modo, é
importante que ele seja retirado rapidamente da fenda. A remoção dos
neurotransmissores se dá pela [1] saída espontânea do neurotransmissor
para o meio externo (difusão), [2] destruição do neurotransmissor por
enzimas, [3] recuperação dos neurotransmissores por meio de bombas
de recaptação, para serem re-armazenados em vesículas e reaproveitados
(Figura 5). As bombas de recaptação merecerem destaque, por estarem
envolvidas no mecanismo de ação da cocaína, da anfetamina e do ecstasy no
cérebro, como será visto adiante.
O estímulo elétrico
Já é sabido que o cérebro é um órgão elétrico. Isto é, as
informações que recebe e envia para o meio ambiente, são transmitidos por meio
de impulsos elétricos e químicos. A informação química é transmitida por meio
da interação de neurotransmissores e receptores. No sistema nervoso, os
estímulos elétricos são chamados de potenciais de ação. Os
potenciais de ação são gerados pela diferença de concentração de íons
misturados aos líquidos de dentro e de fora da células nervosas. Os íons
possuem carga elétrica positiva ou negativa.
Em qualquer mistura, há sempre a tendência ao equilíbrio, isto é, as
partículas sempre alcançam uma distribuição semelhante (homogênea) por todo o
líquido. Isso pode ser facilmente percebido quando se faz suco em pó.
Inicialmente a cor do pó se concentra numa porção do líquido e aos poucos vai
se espalhando (se difundindo), até deixar o líquido com uma cor única
(homogênea). Esse fenômeno natural é denominado difusão.
As células neuronais são delimitadas por membranas. As membranas impedem
que moléculas grandes (como as proteínas) entrem e saiam da célula, mas seus
buracos são muito grandes para impedirem o livre trânsito dos íons. Como
partículas de uma mistura, eles tendem a se misturar igualmente dentro e fora
da célula.
As membranas das células, no entanto, possuem uma estrutura denominada bomba
de sódio (Na+) e potássio (K+) (Figura 6). Essa
bomba (tal como uma bomba de dragagem) coloca para fora o máximo possível de
sódio e coloca para dentro o máximo possível de potássio (veja uma animação). O interior da célula possui proteínas
com cargas negativas, que são muito grandes para atravessarem a parede das
membranas e ficam retidas. Para compensar essa carga negativa, os íons cloreto
(Cl-) vão naturalmente para fora da
célula (difusão).
Qual o resultado final. Dentro do neurônio há mais sódio e proteínas com
cargas negativas. Fora do neurônio há mais potássio e cloreto. Devido a esse
diferencial elétrico criado pela bomba de sódio e potássio e pela presença das
proteínas com cargas negativas, o interior do neurônio é cerca de 70 milivolts
(mV) mais negativo que o meio extracelular.
FIGURA 6:
Na figura à esquerda vê-se a distribuição dos íons (eletrólitos), elementos
químicos dotados de cargas elétricas, dentro e fora das células. Vê-se de
pronto que o interior das células é mais rico em potássio e o exterior, em
sódio. Isso acontece devido a existência da bomba de sódio e potássio (clique na figura à direita para ver uma animação), que
retira ativamente (ou seja, com gasto de energia) o sódio da célula e o troca
por potássio extracelular. Isso torna o interior da célula mais negativo.
A propagação do estímulo elétrico (despolarização)
A pele possui receptores especializados para detectar estímulos táteis.
Isso quer dizer que esses receptores são capazes de converter estímulos
mecânicos em elétricos. Quando eles recebem tal estímulo do meio ambiente (por
exemplo, uma picada de pernilongo), ocorre um fenômeno chamado despolarização.
O interior de suas células é mais negativo que o exterior, a custa do
trabalho da bomba de sócio e potássio. As membranas de suas células, porém,
possuem canais (Figura 5) que permitem a entrada
e saída rápida de íons que a bomba de sódio e potássio tornara desiguais. Com a
chegada do estímulo, esses canais são abertos e o interior da célula vai se
tornando positivo. Isso gera opotencial de ação (estímulo
elétrico). O interior da célula que era de -70mV vai para +20mV. Nesse ponto,
os canais se fecham e a bomba volta trocar íons sódio por potássio, tornando o
interior da célula novamente negativo (repolarização). Esse fenômeno vai
se propagando ao longo do axônio até a sinapse. Seria como se o axônio fosse
uma carreira de pólvora inflamada e a despolarização a chama que a percorre. A
chama é a despolarização. Tudo o que estiver atrás da chama já se repolarizou.
O que estiver adiante são membranas ainda em repouso. Quando esse estímulo
elétrico chega à sinapse as vesículas de neurotransmissores são liberadas na
fenda. O neurotransmissor se liga aos receptores que despolarizam a membrana do
neurônio seguinte. E o estímulo elétrico segue.
FIGURA 7:
A despolarização da membrana. Nas imagens acima, a descarga elétrica caminha ao
longo do axônio até chegar ao botão sináptico, onde provocará a liberação de
neurotransmissores. Esses, ao se ligarem ao receptores, despolarizarão a
membrana do neurônio seguinte.
Especificidade
Apesar de qualquer neurônio funcionar da mesma maneira, cada um
desempenha funções específicas no sistema nervoso. Há neurônios
especializados em receber os estímulos do meio ambiente e encaminhá-los à
medula. Ali, outra classe de neurônios recebe essas informações e as encaminha
ao cérebro. O cérebro, por fim, tomará conhecimento da natureza do estímulo e
lhe enviará uma resposta.
FIGURA 8:
Os neurônios desempenham funções específicas dentro do sistema nervoso. Há
neurônios encarregados da coleta de informações (visão, olfato, gustação, tato,
audição). Na medula, estão os responsáveis pelo envio destas às principais
regiões do cérebro. No cérebro elas serão comparadas com estímulos e
experiências anteriores, serão arquivadas, vivenciadas. A chegada do estímulo
ao cérebro provocará uma reação, que se converterá em uma resposta motora e
psíquica.
Mas uma determinada função não é desempenhada por uma única célula, mas
sim por um grupo de neurônios semelhantes. Desse modo, neurônios semelhantes
se agrupam formando sistemas de neurotransmissão. Dentro de
um sistema, o conjunto decorpos neuronais é denominado núcleo ou gânglio,
enquanto o conjunto de axônios é chamado trato. O
quadro de força de uma casa pode servir de modelo. Suponha-se que as fiações
saídas do quadro pudessem ser organizadas em fios de iluminação, de
aquecimento, de aparelhos de áudio, de aparelhos de vídeo, de eletrodomésticos
de cozinha. O ponto do quadro de onde saem os fios de iluminação seria
denominado núcleo de iluminação. Já o cano que reúne todos esses fios, o trato
da iluminação.
Há incontáveis sistemas de neurotransmissão (quadro 1), todos
absolutamente integrados. Em geral desempenham mais de uma função dentro do
sistema nervoso e quase nunca com exclusividade. Dentro de cada sistema, pode
haver divisão em outros menores e mais especializados ainda. Há sempre
combinações, modulações e interferências recíprocas.
Sistemas
de neurotransmissão do sistema nervoso
SISTEMA FUNÇÃO
NO SNC
GABA-A INIBIÇÃO (SEDAÇÃO)
GLUTAMATO (NMDA) EXCITAÇÃO (ESTÍMULO), MEMÓRIA
OPIÓIDE PRAZER, ANALGESIA, INIBIÇÃO
SEROTONINÉRGICO HUMOR, IMPULSOS
DOPAMINÉRGICO RECOMPENSA, PRAZER
NORADRENÉRGICO SISTEMA NERVOSO AUTÔNOMO
Colocados os principais aspectos anatômicos e funcionais do sistema
nervoso, o mecanismo neurobiológico da dependência será o próximo tópico. Nesse
serão apresentadas as repercussões para o sistema nervoso, decorrentes da
presença constante de uma substância no organismo.