Autores: Maria Lucia O. Souza Formigoni, Saulo Castel
Durante muito tempo, a dependência de álcool e drogas era vista como um desvio de caráter, passando somente nesse século a ser considerada uma doença, avaliada não apenas sob a ótica da moral, mas também sob a da Medicina. Com isso, surgiu a necessidade de se avaliar o fenômeno e as intervenções nele realizadas de acordo com a metodologia científica. As avaliações passaram a ser questionadas quanto à sua reprodutibilidade, sendo substituídas por avaliações padronizadas. Além disso, a necessidade do estabelecimento de uma linguagem comum entre os pesquisadores que trabalham na área também contribuiu para o desenvolvimento de instrumentos padronizados, dentre eles as escalas de avaliação.
Uma avaliação adequada e abrangente é fundamental tanto para o desenvolvimento de um tratamento apropriado, como na pesquisa de problemas relacionados ao uso de substâncias psicoativas e da efetividade das intervenções. No entanto, a utilização de escalas pode ter objetivos diferentes nessas duas situações. Um médico clínico pode estar interessado na utilidade da medida como ferramenta no planejamento do tratamento, enquanto um pesquisador pode estar preocupado com a capacidade do instrumento de quantificar o impacto de uma intervenção. A padronização também permite uniformidade na administração realizada por entrevistadores com diferentes níveis de experiência, treinamento e filosofia (Allen e Fertig, 1995).
Uma avaliação adequada e abrangente é fundamental tanto para o desenvolvimento de um tratamento apropriado, como na pesquisa de problemas relacionados ao uso de substâncias psicoativas e da efetividade das intervenções. No entanto, a utilização de escalas pode ter objetivos diferentes nessas duas situações. Um médico clínico pode estar interessado na utilidade da medida como ferramenta no planejamento do tratamento, enquanto um pesquisador pode estar preocupado com a capacidade do instrumento de quantificar o impacto de uma intervenção. A padronização também permite uniformidade na administração realizada por entrevistadores com diferentes níveis de experiência, treinamento e filosofia (Allen e Fertig, 1995).
Seleção dos instrumentos
A avaliação pode ocorrer em diversas etapas e com diferentes objetivos, existindo uma gama de instrumentos disponíveis para cada situação. A escolha da escala a ser utilizada deve ser norteada por vários aspectos:
a)Objetivo e utilidade clínica - existem diferentes instrumentos desenvolvidos para cada tipo de avaliação específica, uma vez que instrumentos desenvolvidos para determinada finalidade em geral não são adequados quando utilizados para outro tipo de situação.
b) Período de tempo avaliado - há escalas mais adequadas para avaliação de um período recente e outras para períodos mais remotos ou "na vida".
c) População-alvo - embora a maioria das escalas tenha sido desenvolvidas para populações adultas, há outras especialmente destinadas, ou adaptadas, a grupos específicos como adolescentes e crianças, idosos, mulheres, etc.
d) Existência de padrões (normas) - especialmente importante quando se pretende comparar um indivíduo com a população da qual ele é oriundo. Sua importância é menor quando se fazem comparações entre grupos (casos versus controles) ou ocasiões (antes versus depois de uma intervenção).
e)Tipo de administração - alguns instrumentos são aplicados através de entrevista, outros por auto-aplicação. A escolha da forma de administração dependerá das circunstâncias, objetivo e disponibilidade de recursos humanos.
f)Treinamento necessário - varia de acordo com a complexidade das escalas. Enquanto algumas escalas são relativamente robustas, outras requerem um treinamento profundo. Em geral, recomenda-se pelo menos um treinamento básico e um projeto-piloto para garantir a uniformidade da aplicação e o entendimento adequado das questões formuladas.
g)Disponibilidade de escores computadorizados - algumas escalas permitem a aplicação por computador ou a introdução dos dados a fim de obter um escore computadorizado.
h)Custo financeiro - algumas escalas possuem copyright, cobrando taxas pela sua utilização. No entanto, a maioria é de domínio público, requerendo apenas a citação dos autores.
Em relação aos objetivos, pode-se classificar as escalas em oito categorias:
Instrumentos para triagem - destinados à identificação de indivíduos que provavelmente apresentam problemas relacionados ao uso/abuso de álcool ou outras drogas. Nesses instrumentos, dá-se mais ênfase àqueles com maior sensibilidade, enquanto nos instrumentos de diagnóstico uma grande especificidade é fundamental.
Eles devem ser de aplicação rápida, não requerendo muito treinamento dos aplicadores. Para selecionar um instrumento desse tipo, deve-se levar em consideração também a disponibilidade de pessoal para providenciar o feedback e encaminhamento dos casos detectados. Há grande variabilidade de tamanho, abrangência e sofisticação nesses instrumentos: desde aqueles com apenas quatro questões, como o CAGE, até escalas computadorizadas com 350 itens, levando a variações no tempo de aplicação de 1 minuto a meia hora. São exemplos de instrumentos de triagem: AUDIT, CAGE, DUSI, MAST, POSIT, T-ACE. Alguns deles foram traduzidos e validados para o português (Masur e Monteiro, 1983; Wittchen et al., 1991, De Micheli e Formigoni, 1997).
Instrumentos para diagnóstico - permitem um diagnóstico formal ou quantificação dos sintomas, de acordo com os principais sistemas diagnósticos. A maioria dos instrumentos é destinada a adultos, com tempo de administração muito variável (entre 5 minutos e 5 horas). A escolha do instrumento dependerá principalmente do objetivo: se pesquisa ou acompanhamento clínico. Há instrumentos baseados em sistemas diagnósticos dimensionais, isto é, que consideram o distúrbio parte de um continuum e, portanto, passível de quantificação.
Outros instrumentos são categoriais, definindo o distúrbio baseado na presença de um grupo de sintomas. O sistema diagnóstico mais utilizado nos Estados Unidos é o DSM (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders, da American Psychiatric Association), que se encontra atualmente na 4a edição (1994). Esse sistema é consistente com a CID [Classificação Internacional das Doenças, da Organização Mundial de Saúde (OMS), que se encontra na 10a edição]. A maioria das escalas diagnósticas foi baseada no DSM-III-R, sendo as principais: ADS, CIDI, DrInC, RDS, SADD, SADQ, PRISM (anteriormente denominada SCID-A/D) e CIWA-A.
A escolha do instrumento deve ser baseada no construto que precisa ser medido e no objetivo (clínico ou pesquisa) da avaliação. A adequação do instrumento à população avaliada e a existência de medidas de validade e confiabilidade também devem ser consideradas. Dependendo do tipo de abordagem terapêutica, algumas escalas podem ser mais vantajosas, por fornecerem dados complementares. Por exemplo, o RDS e a TRI avaliam a preocupação do indivíduo com o controle sobre o consumo, o que pode ser extremamente útil para abordagens cognitivo-comportamentais. Por outro lado, entrevistas extremamente estruturadas como o DIS-II-R, a AUDADIS e o PRISM são especialmente úteis em pesquisas epidemiológicas. Alguns desses instrumentos foram traduzidos para o português, entre eles o ADS, o SADD e o CIDI (Jorge e Masur, 1986, Miranda et al., 1990).
Instrumentos para avaliação do consumo de álcool e drogas - destinados a caracterizar e/ou medir a quantidade, freqüência, intensidade e padrão do consumo. Esses instrumentos têm sido utilizados tanto em pesquisa como na clínica. Eles diferem em relação ao período de tempo pesquisado, podendo sofrer influência da atitude do entrevistador e do tempo decorrido entre a ocasião da aplicação e a época de consumo pesquisada.
Alguns instrumentos são dirigidos ao consumo recente, outros referem-se ao último ano ou ao consumo na vida. Ao escolher esse tipo de medidas é necessário ter claro qual será a utilidade daquela informação, qual o período de interesse, quanto tempo o entrevistador disporá para realizar a entrevista e qual o nível de precisão dos dados de que necessita. Em geral, essas escalas avaliam a quantidade e a freqüência do consumo.
Uma questão fundamental é a confiabilidade do relato. Apesar de alguns autores relatarem a negação do consumo pelos dependentes de álcool ou outras drogas, muitos estudos têm demonstrado que, sob circunstâncias adequadas, as informações colhidas são reais. As circunstâncias que favorecem o relato adequado são: o respondente não estar sob efeito de álcool ou outras drogas por ocasião da entrevista, segurança do sigilo da resposta, ambiente adequado e não-constrangedor e clareza na formulação das questões. Além disso, como a memória influencia muito a coleta desses dados é conveniente a inclusão de lembretes (por exemplo, a utilização de diários padronizados), que auxiliam a acurácia da medida.
Algumas das escalas mais utilizadas para avaliação do consumo de álcool são: QFV (quantidade e frequência - Cahalan et al., 1969), NIAAA QF (Armor et al., 1978), Lifetime Drinking Hissory (Skinner and Sheu, 1982; Sobell et al., 1988), Comprehensive Drinker Profile (Miller e Marllat, 1984), Computerized Lifestyle Assessment (Skninner, 1984). Para o consumo de outras drogas, tem sido utilizada história de uso de drogas psicoativas (Wilkinson et al., 1987; Galduróz e Andreatini, 1992) e de drogas pré-tratamento (Martin et al., 1991). Para avaliação das consequências associadas ao uso de álcool têm sido utilizados o SADD (Raistrick et al., 1983) e a ADS (Skinner et al., 1984) e, para drogas, o DAST (Skinner, 1982).
Instrumentos para avaliação dos comportamentos associados ao consumo de álcool e drogas - há instrumentos especialmente destinados à análise das situações de uso, ou risco, como o IDS e o IDTS (respectivamente, Inventário de situações de beber e do uso de drogas de Annis et al., 1987 e 1991, Silva et al., 1995), outros para análise da auto-eficácia SCQ - Questionário da confiança em situações (Annis e Graham, 1988) e DASES (Escala de auto-eficácia para evitar drogas, de Martin, 1992) ou da capacidade de enfrentamento (CBI - Inventário dos comportamentos de enfrentamento, Litman et al., 1983).
Instrumentos para avaliação do comprometimento de outras áreas - incluem-se nesse grupo escalas destinadas a avaliar especificamente áreas como Estado empregatício, financeiro, moradia, problemas legais, bem-estar psicológico, capacidade cognitiva, relacionamento familiar e social, história familiar de dependência de substâncias psicoativas, etc. Instrumentos usados para esse fim incluem: ASI, SADD, ADS, DAST, M-SMAST e F-SMAST, FES, FAM, SCL-90.
Instrumentos para planejamento do tratamento - há instrumentos destinados a auxiliar no desenvolvimento de um plano de tratamento, levando em consideração não só os aspectos diretamente relacionados ao uso de substâncias, mas também outros problemas. Isso é muito importante para permitir o estabelecimento de metas de curto, médio e longo prazo adequadas à realidade de cada paciente, buscando uma correspondência entre suas necessidades e as intervenções oferecidas. Incluem-se nesse grupo de instrumentos escalas para avaliar a prontidão ou disponibilidade para mudança, as expectativas dos efeitos das drogas, a auto-eficácia, a perda de controle, a história familiar de dependência de álcool e outras drogas e as condições sociais. Destacam-se entre esses instrumentos: ASI, T-ASI, FTQ, IDS, SCQ.
Instrumentos para análise do processo de tratamento - destinados a auxiliar o entendimento do processo de tratamento, incluindo a sua estrutura, as metas iniciais e intermediárias, etc. Muitos dos instrumentos utilizados para esse objetivo possuem poucos dados psicométricos, tendo sido utilizados num limitado número de estudos. Alguns deles se propõem a avaliar características gerais dos programas, incluindo sua estrutura, características dos profissionais e dos clientes, serviços oferecidos, políticas adotadas, etc. Destaca-se entre eles o TSR (McLellan et al., 1992).
Instrumentos para avaliação de resultados - destinados a avaliar os resultados finais do tratamento. Poucos instrumentos foram desenvolvidos especificamente com essa finalidade, como o DrInC (Miller et al., 1995), LDQ (Raistrick et al., 1994) e a ESA (Andrade, 1991). Além desses, instrumentos desenvolvidos para avaliação da gravidade e planejamento do tratamento têm sido utilizados para avaliação dos resultados. O exemplo mais comum é a ASI (McLellan et al., 1992). Uma característica a ser valorizada nesses instrumentos é a capacidade de detecção de mudanças. Vários trabalhos têm sido realizados para avaliar essa capacidade.
A escolha final dos instrumentos a serem utilizados deve levar em conta ainda a existência de tradução e a validação em nosso meio. é importante lembrar que a tradução feita pelo pesquisador, ainda que com bons conhecimentos da língua original na qual foi concebida a escala, deve ser complementada por revisão cuidadosa e tradução reversa (back translation).
A validação em nosso meio é um procedimento complexo e deve levar em consideração as variáveis culturais envolvidas. Cabe lembrar que a área de distúrbios por uso de substâncias psicoativas é bastante suscetível a essas variáveis (Room et al., 1996).
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