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8/01/2015

Filhos de alcoólatras


Para compreender o sofrimento dos filhos de alcoólatras, a pesquisadora Eliana Mendonça Vilar evitou o enfoque patológico do modelo biomédico e defende que esses jovens não seriam fatalmente deficitários, como sugere a literatura

Interessada em investigar como os filhos de alcoólatras encaram a dependência dos pais, a psicóloga Eliana Mendonça Vilar defendeu a tese de doutorado Filhos de Baco: adolescência e sofrimento psíquico associado ao alcoolismo paterno.

O estudo faz parte do programa de pósgraduação em Psicologia Clínica da Universidade de Brasília (UnB). Segundo Eliana, as famílias de alcoólatras são disfuncionais porque perdem, ao menos de forma provisória, a capacidade de resolução de seus conflitos. São como uma grande dinastia que se organiza em torno da doença alcoolismo - já considerada uma pandemia mundial, associada a um grande desequilíbrio social e familiar do mundo contemporâneo.

De acordo com a especialista, essa doença não é apenas transmissível do ponto de vista genético, mas também está relacionada ao padrão patológico de funcionamento da família, que passa a viver em um clima de grande instabilidade e insegurança, ameaçado constantemente pelo ciclo embriaguez e sobriedade. 

Tal clima de tensão favorece o aparecimento de múltiplas formas de violência. Nesta entrevista à revista Psique, Eliana afirma ter notado, depois de trabalhar com grupos de ajuda a alcoólatras por 15 anos, que os adolescentes se sentem culpados pela condição dos pais e têm dificuldades de crescer e se tornar adultos independentes - motivo pelo qual eles costumariam repetir o comportamento paterno: enquanto os meninos abusam de substâncias, as meninas acabam se envolvendo com alcoólatras na fase adulta.

Esses jovens precisariam de pelo menos um interlocutor saudável para discutir a sua condição, já que eles também têm de lidar com outros problemas, como a pobreza, a violência urbana e os abusos sexuais. Para compreender o sofrimento dos filhos de alcoólatras, a pesquisadora evitou o enfoque patológico do modelo biomédico. Ela defende que esses jovens não seriam fatalmente deficitários, como sugere a literatura. Pelo contrário, eles possuem criatividade para crescer com as adversidades.

Filhos de alcoolistas não devem, necessariamente, ser encarados como futuros alcoolistas, já que este enfoque evidencia uma ideologia médica determinista...

Eliana Vilar - Infelizmente, a literatura médica sofre influência do modelo biológico. As doenças acabam sendo reduzidas a sinais e sintomas. Nesse modelo, filhos de alcoolistas são encarados como pessoas deficitárias e com sintomas psicológicos e psiquiátricos graves que se manifestam na escola, na sociedade e na família. 

São considerados mais vulneráveis ao fracasso escolar, à gravidez na adolescência e à delinquência. O foco na doença, e não nas pessoas, acaba gerando uma "patologização" dessa dinâmica imatura. Esquecemos de observar as pessoas e passamos a desacreditar nas mudanças e no potencial de superação, principalmente dos jovens. 

Na verdade, a Psicologia, ainda infelizmente, está mais centrada na patologia do que na saúde. Temos um vocabulário científico enorme para falar de doença e nem tão grande para abordar a saúde. Em minha atuação clínica, encaro essas famílias como grandes parceiras. Geralmente, as mais doentes são as que ensinam mais. O foco na saúde é estratégico e necessário, até porque, sempre aposto no grande potencial criativo do ser humano.

Infelizmente, a literatura médica sofre influência do modelo biológico. As doenças acabam sendo reduzidas a sinais e sintomas. A Psicologia está mais centrada na patologia

Esses filhos preservam a capacidade de gerir e lidar com desafios da adolescência? 

Eliana - Sem dúvida, muitos adolescentes filhos de alcoolistas conseguem manter uma visão positiva de si mesmos, do mundo e do futuro. Conseguem ter uma elaboração crítica. O fato de não culparem o pai está ligado à capacidade de compreensão do caráter patológico do alcoolismo e de seus sintomas graves e progressivos. 

Um psiquismo mais saudável lhe permite buscar boas referências com outro adulto na família ou na escola. A manutenção de boas relações preserva o sentimento de autoestima e diríamos que muitos acabam por se mostrar bastante maduros, sensíveis e desenvolvidos. Chamamos esses adolescentes de resilientes, porque se tornam pessoas melhores diante das grandes adversidades. Resílio é um conceito da física e significa voltar à forma original. Esses adolescentes conseguem realizar de forma plena todo um potencial.

Você sugere que o sofrimento pode ser útil em termos existenciais e psicológicos, que esses adolescentes possuem uma imensa resiliência. Era isso que você buscava em sua pesquisa?

Eliana - O meu interesse central era compreender os mecanismos e as estratégias saudáveis presentes nesse grupo de adolescentes. A literatura sobre o tema é controversa, ora associa resiliência com algumas características e traços individuais, ora associa resiliência com ambientes e contextos saudáveis. 

Na verdade, acredito que tanto a inteligência quanto a criatividade de alguns adolescentes, além de algum aspecto da realidade, se unam e integrem, o que possibilita uma resposta mais efetiva e saudável ao sofrimento. O sofrimento pode e deve ser considerado como um valor e uma oportunidade de crescimento. 

Nesse caso, não precisa ser mascarado e negado. Nossa sociedade acaba por gerar inúmeros mecanismos de medicalização do sofrimento, o que impede o crescimento das pessoas. Não existe poesia sem dor. Temos saúde quando conseguimos integrar em nossa personalidade aspectos negativos da vida. Como diz Viktor Frankl, aprendemos a sofrer além de, é claro, aprendermos a amar e a criar.

Quais as estratégias de enfrentamento de problemas desses adolescentes? 

Eliana - O alcoolismo ainda é visto como um defeito de caráter, um desvio moral. Os alcoolistas são culpabilizados por uma sociedade profundamente ambivalente, que estimula a embriaguez de forma insistente, mas que também discrimina, sobretudo o alcoolista pobre, bebedor de cachaça, e que acaba sendo mais condescendente com os bebedores de bebidas mais nobres. 

Se os filhos de alcoolistas não construírem uma visão de mundo mais crítica e autônoma, acabam por reproduzirem a lógica de uma sociedade alienada e doentia. O modelo de doença não é considerado e é substituído por um modelo moralista ainda hegemônico entre profissionais de saúde.

Por um lado há o mito da juventude baseado em valores hedonistas que enfatizam o prazer, a liberdade, a beleza e a alegria; por outro, há a face que é o lado obscuro da adolescência vivenciado pelos filhos de alcoolistas. O que dizer sobre esse paradoxo?

Eliana - Optei por trabalhar com um grupo bastante vulnerável que na verdade funcionaria de forma óbvia como um grande porta-voz, revelador e amplificador desse lado obscuro da adolescência, já que escolhi trabalhar com adolescentes da periferia, filhos de alcoolistas, discriminados. O inusitado é a nossa capacidade e possibilidade de suspeitarmos de verdades estabelecidas e preconcebidas. A surpresa é lidar com o novo e com o inusitado. 

O hedonismo de nossa sociedade aprisiona bastante a visão de mundo dos jovens e é bom lembrar que, cada vez mais, encontramos adultos que não podem ou não conseguem amadurecer, são os chamados "adultescentes", que necessitam da fantasia ou da ilusão de uma juventude eternamente feliz. Na verdade, a felicidade caminha com a dor e o sofrimento, não são incompatíveis. Para muitos é um "mico" admitir suas fragilidades e dores.

O foco na doença, e não nas pessoas, acaba gerando uma "patologização" dessa dinâmica imatura. Esquecemos de observar as pessoas e passamos a desacreditar potencial de superação, principalmente dos jovens

Qual o papel da escola na vida desses adolescentes? 

Eliana - A escola, tão esvaziada, poderia criar espaços de reflexão e de superação de preconceitos, principalmente do autopreconceito, o mais nocivo deles, tornando-se verdadeiramente formativa e não apenas informativa. A saída seria uma pedagogia mais humanista que gerasse o diálogo e não segregasse os alunos problemas. Muitas vezes, o fracasso escolar representa um pedido de socorro mudo e estancado. 

Os adolescentes precisam aprender a se expressar e a falar de si. Para isso, eles precisam de bons ouvintes, o que é raro. Eles são exigentes, não aceitam e não se vinculam a adultos incoerentes. Muitas vezes, na escola, o que prepondera é uma pedagogia opressora e silenciadora dos potenciais de seus aprendizes. 

O potencial de mudança dos jovens é proporcional aos sentimentos de indignação e não aceitação submissa ao status quo. As escolas, na verdade, estão carentes, mas muitas vezes escutamos histórias bonitas em que um professor consegue cuidar verdadeiramente de seus alunos.

Como a violência presente na vida familiar e no contexto social se infiltra no padrão de relacionamento e de comunicação desses adolescentes?

Eliana - A comunicação deixa de ser aberta e plena, passando a ser defensiva e camuflada. Os filhos de alcoolista apresentam uma comunicação confusa, em função dos seus próprios conflitos. Os adolescentes se tornam silenciados. Quanto mais patológico é um ambiente, mais aprisionada a pessoa se torna. As brigas se repetem. Quando falamos para um alcoolista não beber, estamos na verdade emitindo um juízo de valor disfarçado em um conselho que funciona como um convite. 

Podemos observar o empobrecimento do afeto e a banalização de situações graves. O medo e a vergonha impedem que esses jovens consigam dar novo significado às suas experiências traumáticas. A comunicação é marcada pela culpa, pelo silêncio e pelo segredo. O medo do próprio pai alcoolista está associado a situações de grande risco vividas na infância. 

Tudo é muito inseguro, instável e fugidio. Alguns estudos atribuem o sucesso dos Alcoólicos Anônimos ao padrão de comunicação de seus membros. Eles se elogiam e se recriam. A linguagem é uma dimensão poderosa capaz de estruturar a realidade e as relações. 

Toda terapia é focada na palavra e na comunicação verbal e não verbal do terapeuta e do paciente. Toda comunicação representa um comando, uma possibilidade... A palavra não serve apenas para informar, mas pode curar ou adoecer. O homem embriagado não se comunica, se isola e morre.

Quando o assunto é alcoolismo, existe certo psicologismo, isto é, uma tendência da psicologia de tornar patológicos certos fenômenos Que extrapolam a esfera teórica... 

Eliana - Para compreender o sofrimento humano é preciso muita empatia e disponibilidade para o outro. Na Psicologia não se fala em caridade, em solidariedade. Busquei estudar bastante Filosofia, isso me deu respostas melhores que a própria Psicologia, principalmente o existencialismo, que coloca o sofrimento como condição inevitável de nossa existência. 

Somos condenados a sermos livres, como nos diz Sartre, e somos os únicos seres conscientes de nossa própria morte. A tradição da Psicologia clássica é classificar as pessoas, nomear suas patologias. Isso é que eu chamei de psicologismo. Sou avessa a diagnósticos rotulantes e enclausurantes. As pessoas reagem bem quando são tratadas com humanismo, respeito e empatia. 

Tudo bem: existem as pessoas que consideramos neuróticas com traços evidentes de ansiedade, de passividade, de dependência e descontrole. Alguns autores falam da existência de uma personalidade pré-alcoólica ou pré-mórbida. Como se alguns traços favorecessem o aparecimento futuro do alcoolismo. Podemos observar isto em algumas famílias. 

É como se pudéssemos dimensionar o risco de aparecimento em algumas crianças ou adolescentes, o que justifica ações preventivas. Por outro lado, não existem só as neuroses, há também o abandono, o sofrimento real, a doença, o desamor. Enfim, todo o mal-estar de nossa sociedade.

Muitos adolescentes filhos de alcoolistas conseguem manter uma visão positiva de si mesmos, do mundo e do futuro. Um psiquismo mais saudável lhe permite buscar boas referências


O ritual de ingestão de álcool ainda carrega simbolismo de virilidade e masculinidade?

Eliana - Sem dúvida que sim! E isso é muito prejudicial para os rapazes e as moças. É muito difícil para um jovem dizer que não bebe. A abstinência não é bem-vista, como se a pessoa abstinente fosse inadequada ou tivesse algum problema por não aceitar as normas do grupo. 

Muitos rapazes se sentem mais seguros para buscarem uma aproximação com o sexo oposto por meio de alcoolizações precoces. Aliás, o álcool é a droga cujo uso mais cresce em nossa sociedade, afetando pessoas cada vez mais novas. A idade média de iniciação no álcool é de 12 anos de idade. A mídia, de forma irresponsável, ainda associa nas propagandas a bebida com grandes ícones de poder e virilidade. 

As multinacionais são os grupos que mais se beneficiam e não se responsabilizam pelo problema, afinal, é uma droga lícita que onera de forma grave a sociedade. A Antropologia nos diz que os grupos humanos sempre buscaram substâncias entorpecentes. Na nossa sociedade, a droga, para os homens, está mais associada a homicídios e a problemas legais e, no caso das mulheres, está mais associada a problemas familiares. 

As mulheres alcoolistas são geralmente abandonadas pelos maridos. Não existe diferença de consumo de álcool entre adolescentes, ou seja, as meninas estão bebendo cada vez mais, parecem estar competindo também neste quesito com os rapazes. Há uma briga de espaço, uma terrível briga de poder.

As filhas de alcoolistas sofrem de forma diferente? Qual a diferença do sofrimento de viver esta situação na família entre meninos e meninas? 

Eliana - As questões de gênero permeiam a própria gênese do alcoolismo e sua progressão. As mulheres são as principais vítimas dos homens embriagados. Muitos meninos ainda necessitam de uma identificação com os pais alcoolistas. As meninas filhas de alcoolistas tendem a sacrificar mais as suas escolhas afetivas, enquanto os meninos tendem a sacrificar mais o próprio corpo, já que sintomas como delinquência e toxicomania ainda são mais masculinos. 

Os sintomas tipicamente femininos estão associados ao prolongamento de sofrimentos amorosos, como gravidez na adolescência, união conjugal com alcoolistas e depressão. Elas têm medo de serem abandonadas e não amadas como a mãe; e os meninos têm muito medo do fracasso e do futuro. Entretanto, o que é comum para os dois sexos na adolescência é a grande dificuldade de realizar um processo de individualização da própria personalidade por uma diferenciação do ego.

O sofrimento pode e deve ser considerado como um valor e uma oportunidade de crescimento. Temos saúde quando conseguimos integrar em nossa personalidade aspectos negativos da vida

Você encontrou indicadores de uma personalidade saudável nesses jovens. Quais seriam esses indicadores? 

Eliana - Os indicadores de saúde mais evidentes são a capacidade de absorção do sofrimento, a livre expressão de seus sentimentos, o potencial sublimatório e artístico, a capacidade de sentir tristeza e raiva, lucidez, autocontrole e a esperança no futuro. Tudo isso se traduz em uma maior vitalidade, energia e ausência de autopiedade ou autocomiseração.

Quais os próximos passos em sua pesquisa, após a constatação de que os filhos de alcoolistas não são necessariamente tão problemáticos quanto os pais (ou têm maior resiliência)? 

Eliana - Sem dúvida, os resultados da tese indicam a necessidade de maiores investimentos, tanto das políticas públicas de saúde, quanto de fomento à pesquisa e formação de recursos humanos preparados para o fortalecimento e o estímulo de posturas mais resilientes. Sabemos que os jovens representam um grupo de grande vulnerabilidade e de risco, e por outro lado, respondem com mais facilidade e agilidade aos nossos empenhos. 

Os custos humanos, sociais e financeiros associados ao problema do álcool são extensos e podem ser diminuídos se trouxermos maior visibilidade para o problema e criarmos ambientes e indivíduos mais resilientes. Resiliência está associada a uma melhor qualidade de referências, de diálogo, de cuidado e de enfrentamento dos problemas. É preciso superar a vergonha, a culpa e o medo e ajudar os filhos de alcoolistas a buscarem uma maior autonomia pessoal. O adolescente precisa se sentir como um grande protagonista de sua família, de sua escola e de sua sociedade.
 
A mídia pode contribuir e a elaboração de uma legislação mais rigorosa pode mudar bastante o panorama atual. Outros países tiveram boas experiências com pequenas mudanças em termos de políticas públicas, em relação ao uso e abuso de álcool, por exemplo: restrição do horário de venda do álcool, idade mínima para compra de 21 anos, aumento do preço, restrição do horário de propagandas de cerveja, fortalecimento da fiscalização e maiores investimentos na assistência.

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