Mônica Zilmerman
Hermano Tavares
Sheila B Blume
Nady el-Guebaly
Canadian Journal of Psychiatry, volume 48, no. 1, 2003
Clínicos e pesquisadores têm demostrado um interesse cada vez maior em estudar características específicas e tratamentos diferenciados para mulheres usuárias de substâncias.
De acordo com os dados epidemiológicos:
- A prevalência ao longo da vida de transtornos pelo uso de substâncias em mulheres americanas é de 5 a 8 %.
- A idade de início para o uso de substâncias têm diminuído entre adolescentes do sexo feminino, o que aumenta o risco de dependência neste grupo.
- As mulheres são mais sensíveis que os homens aos efeitos fisiológicos do álcool e de outras drogas.
- A progressão entre o primeiro uso da substância, o aparecimento de problemas e a busca por tratamento é mais rápida em mulheres.
- As mulheres geralmente buscam tratamento em ambientes de atendimento médico primário e psiquiátrico geral, ao invés de serviços especializados no tratamento de usuários de drogas.
- A dependência em mulheres tem um importante impacto na gravidez, no neonato e como demonstrado mais atualmente, em toda a família.
Os autores deste artigo revisaram a literatura médica publicada em inglês desde 1990 a fim de se verificar as diferenças entre as comorbidades psiquiátricas presentes em mulheres e homens usuários de drogas e a significância clínica destas diferenças no tratamento.
1. Alcoolismo e comorbidades psiquiátricas
Importantes estudos realizados em amostras da população geral evidenciaram que as mulheres abusadoras de álcool apresentaram maiores índices de comorbidades psiquiátricas quando comparadas ao sexo masculino. As comorbidades mais encontradas em mulheres foram: transtornos ansiosos (fobia social, fobia simples e transtorno de estresse pós-traumático), transtornos do humor (depressão e mania) e dependência de drogas, enquanto que nos homens foi encontrado mais comportamento antissocial. Outro dado notado foi que as mulheres alcoolistas apresentavam um maior número de comorbidades que os homens.
Heltzer e colaboradores observaram altos índices de comorbidade psiquiátrica tanto para mulheres abusadoras quanto dependentes de álcool quando comparadas a homens com os mesmos diagnósticos. Neste estudo, as mulheres alcoolistas apresentaram índices de comorbidade mais elevados do que os homens para: depressão maior, transtornos fóbicos e ansiosos, mania, transtornos relacionados ao uso de drogas e esquizofrenia, por outro lado, os homens apresentaram maiores índices para transtorno obsessivo compulsivo, distimia e transtorno cognitivo; foram encontrados altos índices de comorbidade entre dependência de álcool e jogo patológico sem diferença entre os sexos.
Estudos revisados em amostras clínicas também demonstraram diferenças entre os sexos: as mulheres com transtornos pelo uso do álcool apresentaram maior comorbidade psiquiátrica com transtornos ansiosos, do humor e transtornos alimentares, enquanto que os homens apresentaram maior comorbidade para transtornos de personalidade antissocial e jogo patológico.
2. Drogas e comorbidades psiquiátricas
Dados encontrados no estudo de ECA (Epidemiological Catchment Area) demostraram que 76% dos homens e 65 % das mulheres com abuso ou dependência de drogas, incluindo o álcool, tiveram pelo menos um outro diagnóstico psiquiátrico ao longo da vida, ao excluir abuso e dependência do álcool. As mulheres demonstraram maiores índices de comorbidade para transtornos ansiosos e do humor como: depressão, mania, fobias, transtorno de estresse pós traumático, transtorno obsessivo compulsivo e transtorno do pânico. Os homens, por outro lado, apresentaram maiores índices de comorbidade para transtorno de personalidade antissocial e transtorno de déficit de atenção e hiperatividade.
antissocial 3. Distinção entre o que é primário e secundário
A distinção entre o que é primário ou secundário pode ser definida pela relação temporal que há entre o início de transtornos distintos ou pela relação causal que há entre eles, contudo, no caso das comorbidades com transtornos relacionados ao uso de substâncias, um transtorno psiquiátrico que tem início após um longo período de abstinência da droga é considerado um transtorno independente.
Na maioria das vezes, o transtorno relacionado ao uso de substâncias em homens ocorre primariamente, quando secundário, o transtorno de conduta e o comportamento antissocial são os mais freqüentes. Ao contrário do sexo masculino, as mulheres com transtorno pelo uso de substâncias, geralmente o desenvolvem secundariamente a um transtorno depressivo e/ou ansioso.
3.1. Transtorno psiquiátrico prévio como fator de risco para o início de transtornos relacionados ao álcool
A comorbidade psiquiátrica representa um maior fator de risco para o desenvolvimento de transtornos relacionados ao uso do álcool. Dados extraídos do NCS (National Comorbidity Survey) sugeriram que a depressão é um fator de risco maior para o desenvolvimento de abuso ou dependência de álcool mais em mulheres do que nos homens, enquanto que o estudo ECA evidenciou que a depressão é um fator de risco para um aumento subsequente do uso do álcool principalmente em homens.
O risco para o desenvolvimento de transtornos relacionados ao uso do álcool é maior em mulheres com história de agorafobia, depressão, abuso e dependência de drogas, em homens, o transtorno de personalidade antissocial foi o mais relacionado. O transtorno de estresse pós-traumático também foi considerado fator de risco para o desenvolvimento de transtorno pelo uso de álcool em mulheres particularmente quando atos violentos estão envolvidos.
4. Características clínicas das mulheres com comorbidades psiquiátricas
As mulheres com transtornos relacionados ao uso do álcool e comorbidade depressiva, geralmente procuram tratamento apresentando sintomas menos intensos de alcoolismo do que mulheres que não apresentam depressão. Portanto, a gravidade do quadro clínico em mulheres que apresentam ao mesmo tempo depressão e alcoolismo está principalmente relacionada à sintomatologia depressiva.
Alguns autores verificaram que aproximadamente a metade das mulheres dependentes de cocaína também apresenta transtorno depressivo associado, e em função disto, o funcionamento geral de mulheres dependentes de cocaína sem comorbidade depressiva tende a ser melhor.
O clínico deve olhar atento para as mulheres com transtorno pelo uso de substâncias que combinam dois importantes fatores de risco para ideação suicida e tentativa de suicídio: o risco de tentativas de suicídio serem duas vezes maior em mulheres e o risco aproximadamente quatro vezes maior em indivíduos usuários de substância.
5. Comorbidade psiquiátrica como preditor de resposta ao tratamento
Há evidências de que mulheres com transtorno pelo uso de substâncias e diagnóstico de depressão ao longo da vida apresentam melhor prognóstico, por outro lado, a vigência de depressão no decorrer do abuso ou dependência de qualquer substância está associado a um prognóstico pior independente do sexo, mas ao serem administradas medicações antidepressivas, ocorre uma melhora da resposta ao tratamento do alcoolismo.
O humor depressivo em mulheres com transtornos pelo uso do álcool demonstrou estar associado a episódios de recaída neste grupo apesar dos poucos estudos existentes no assunto. A diferença entre intervenções psicoterapêuticas em mulheres com estas características também precisa ser melhor estudada.
Considerações dos autores
- A maioria dos estudos que avaliam a diferença entre os sexos para as comorbidades psiquiátricas em indivíduos com transtorno pelo uso de substâncias demonstraram maiores escores em mulheres. Uma possível explicação para isso seria : o uso de substâncias entre as mulheres é menos aceito socialmente do que o uso no sexo masculino, portanto, uma mulher que desenvolve dependência de substância representaria um grupo mais susceptível e consequentemente com risco aumentado para desenvolver comorbidades psiquiátricas. Uma outra hipótese seria que as mulheres com transtornos psiquiátricos são mais vulneráveis a usar substâncias ou a se auto-medicarem e portanto com maior risco para desenvolver transtorno pelo uso de substâncias.
- Foram observadas algumas diferenças entre homens e mulheres para transtornos psiquiátricos específicos: os transtornos depressivos e ansiosos foram mais encontrados em mulheres, enquanto que transtorno de personalidade antissocial e transtorno pelo uso de substâncias foram mais comuns entre os homens, contudo, deve-se ter em mente que outras comorbidades comuns como jogo patológico, transtornos alimentares, transtornos de déficit de atenção e hiperatividade, assim como outros transtornos de personalidade que não o transtorno de personalidade antissocial, geralmente não estão incluídas nos estudos, o que pode enviesar alguns resultados.
- É de extrema importância que os clínicos tenham o conhecimento das diferenças entre homens e mulheres no momento de tratar seus pacientes com dependência de substâncias associada a outros transtornos psiquiátricos, principalmente pelo aumento do risco de tentativas de suicídio em mulheres com diagnósticos comórbidos.
- Para os casos de comorbidade psiquiátrica, a comunicação entre os profissionais de saúde é essencial, mulheres com transtorno pelo uso de substâncias e comorbidades clínicas geralmente estão mais associadas a condições físicas graves e consequentemente mais susceptíveis a receber medicações potencializadoras, tais como, tranquilizantes e analgésicos.
- Mulheres com transtornos ansiosos ou do humor, concomitantes ou não aos transtornos pelo uso de substâncias, necessitam de estudos com maior tempo de seguimento, somente desta maneira poderemos compreender melhor a relação entre estes transtornos e evitar sintomas potenciais de recorrência.
- Grande parte dos estudos em drogas foram realizados em usuários de álcool, logo, estima-se que as diferenças encontradas para ambos os sexos devam ocorrer para outras drogas, contudo, mais estudos devem ser realizados para se confirmar esses achados.
- A distinção entre depressão primária ou secundária é particularmente importante para as mulheres usuárias de substâncias. Alguns autores recomendam que os clínicos deveriam esperar pelo menos 3 ou 4 semanas de abstinência antes que o diagnóstico de depressão seja estabelecido, contudo, na opinião dos autores, uma história cuidadosa deve ser realizada e na presença de antecedente depressivo o tratamento imediato é imperioso. O tratamento com antidepressivos também pode ser realizado em pacientes cuja comorbidade apresenta curso crônico, sintomas depressivos persistiram durante episódios prévios de abstinência ou história familiar de transtorno do humor.
- Muitos medicamentos são metabolizados pelo fígado, logo, a monitorização da função hepática é essencial, principalmente em mulheres cuja dependência alcoólica desenvolve um maior comprometimento hepático para quantidades reduzidas de álcool consumido.
- Para outros transtornos psiquiátricos como: jogo patológico, esquizofrenia e transtornos alimentares o tratamento deve ser realizado concomitantemente independente se primário ou não.
- Como o transtorno depressivo e o transtorno de estresse pós traumático demonstraram estar associados a um risco aumentado para o desenvolvimento de uso de substâncias em mulheres, o tratamento adequado destes transtornos podem prevenir a ocorrência de transtornos pelo uso de substâncias.
- Não está totalmente claro de que maneira diagnósticos psiquiátricos atuais ou remotos influenciam na resposta ao tratamento, contudo foram encontradas evidências de que um transtorno depressivo adequadamente tratado melhora a resposta ao tratamento em mulheres.
- Quando a comorbidade depressão e alcoolismo está presente em mulheres o prognóstico é melhor do que quando a comorbidade inexiste e o oposto ocorre no sexo masculino, porém, ainda necessitamos de estudos que analisem melhor esta relação já que estas diferenças foram encontradas em estudos de curta duração e desapareceram em estudos mais longos.