SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA
Talvez a síndrome de abstinência seja o fenômeno mais conhecido relacionado à dependência química. Apesar de difundida, o valor da síndrome de abstinência para o desenvolvimento e a manutenção da dependência é pouco compreendido. Cientistas afirmam que "não é apenas o prazer o responsável pelo surgimento da dependência. Ao contrário, a evitação dos sintomas de desconforto (síndrome de abstinência) é o grande propulsor da manutenção do uso. Tais sintomas decorrem provavelmente de alterações neurobiológicas na estrutura anatômica dos neurônios. Essas alterações acabam por bloquear o efeito euforizante da droga: o indivíduo deixa de sentir o prazer de outrora, mas continua impelido a buscar a droga, uma vez que seu corpo se adaptou a sua presença e sentirá sua falta em caso de abstinência da mesma."
FIGURA 1: Qualquer substância psicoativa é capaz de causar sintomas de abstinência, variando em intensidade de acordo com o tipo de substância, a intensidade e tempo de consumo.
A dependência é justamente o final dos áureos tempos. É o estabelecimento de uma nova realidade: biológica (neuroadaptações), psicológica (impulsividade pelo consumo) e social (o consumo vai se tornando mais importante que o tudo mais). A evitação dos sintomas de abstinência é um dos moldadores desse novo estilo de vida. A abstinência é um sinal concreto dessa nova realidade. É do conhecimento geral que um dependente fica mais nervoso nos primeiros dias de tratamento. Os amigos e familiares 'dão um desconto' aos descontroles, ao mau humor daqueles que decidiram abandonar o consumo de alguma substância. Os principais medicamentos destinados ao tratamento da dependência química visam ao alívio destes sintomas.
Pouco tempo atrás, as drogas pesadas eram aquelas consideradas capazes de causar síndrome de abstinência. A presença dos sintomas era um sinal de "dependência física". A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmava nos anos setenta que para a cocaína havia "falta de dependência física e, por conseguinte, de uma síndrome de abstinência característica quando se suprime a droga".
Tais conceitos caíram em desuso na literatura científica voltada ao estudo da dependência química. Atualmente, sabe-se que qualquer substância é capaz de provocar alterações no funcionamento neurobiológico dos indivíduos, que ocasionam sintomas de desconforto durante a falta da mesma. Por outro lado, a dependência não pode ser olhada apenas pelo lado físico, psíquico ou social. Só existe dependência se houver a combinação dos três fatores.
A neurobiologia da síndrome de abstinência de qualquer substância está relacionada a modificações nos circuitos neuronais ativados pelo consumo. Conforme já citado em artigos anteriores os neurônios se interconectam por meio de sinapses, dentro das quais secretam neurotransmissores. Esses últimos se ligam a receptores específicos e provocam reações químicas, capazes de gerar um novo estímulo elétrico. É assim que a informação viaja pelo organismo humano. Há neurotransmissores encarregados de propagar informações excitatórias, inibitórias, de dor, prazerosas, de comando para o funcionamento dos órgãos, e muitas outras. Em condições normais, há um rígido balanço entre todas essas forças.
O uso contínuo de uma substância, no entanto, ativa sistemas com mais intensidade do que outros. Por exemplo, o álcool e os tranqüilizantes (sedativos) concentram sua ação nos sistemas inibitórios (GABA), enquanto a cocaína, a nicotina e as anfetaminas (estimulantes), atuam preferencialmente nos sistemas excitatórios (glutamato, noradrenalina e dopamina). A fim de manter "o rígido balanço" entre as forças do sistema nervoso, o organismo se neuroadapta e torna menos os sistemas menos sensíveis a ação da droga. Dessa maneira, ao ser estimulado pelo consumo, esse sistema não desequilibrará a composição de forças que regem o funcionamento do cérebro.
Porém, quando o consumo é interrompido, o sistema neuroadaptado, desensibilizado e enfraquecido pelas neuroadaptações provocam um novo desbalanço, no sentido aposto aos sintomas que a droga provocava no organismo. Esse desbalanço se manifesta na forma da síndrome de abstinência. Desse modo, o consumo de sedativos torna o sistema inibitório menos sensível à ação da droga.
FIGURA 2: Do neurônio aos sintomas. As neuroadaptações decorrentes do uso continuado de substâncias se configuram em sintomas de mal-estar físico e psíquico na ausência do uso da droga: a síndrome de abstinência.
Frente a sua retirada, haverá superioridade do sistema excitatório, marcado por sintomas de abstinência como insônia, inquietação, irritabilidade, tremores, aumento dos batimentos cardíacos e da temperatura do corpo. Do outro lado, os estimulantes desencadeiam uma síndrome de abstinência marcada por aumento do sono, lentificação, tédio e sintomas depressivos.
A fissura, considerada um sinal de abstinência, pode ser entendida a partir da diminuição da dopamina dentro do sistema de recompensa. Durante a fissura, a lembrança do prazer e do desejo do consumo aparecem dentro de um quadro de desconforto físico e psíquico. Voltar a consumir a substância é vista pelo usuário como a melhor alternativa para aliviar essa situação. Saber lidar com a fissura é um grande passo para a consolidação da abstinência.
A importância dos sintomas de abstinência se reflete não apenas no desenvolvimento da dependência, mas também no sucesso do processo de abandono do consumo e na construção de um novo estilo de vida, incompatível com o uso de drogas. As principais abordagens medicamentosas e psicoterápicas disponíveis atualmente visam a aliviar sintomas, motivar a mudança, prevenir recaídas e criar novas habilidades para lidar com as dificuldades da vida, principalmente 'resolvidas' pelo consumo de drogas. Qualquer uma delas vê a síndrome de abstinência como o primeiro obstáculo ao processo do tratamento.
Enquanto houver queixas de abstinência estas deverão ser consideradas o principal obstáculo: elas são um sinal de que a droga ainda afeta e limita a existência biológica, psicológica e social do indivíduo. Eis a importância desse fenômeno, que de modo algum deve ser banalizado ou diminuído pela difusão que vem sofrendo dia-a-dia.
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