Introdução.
Durante as próximas seis semanas as bases
biológicas da dependência química serão discutidas em capítulos consecutivos.
Para torná-lo didático e acessível a todos os leitores, uma introdução ao
conceito da dependência química e algumas noções básicas de anatomia e
fisiologia do sistema nervoso central serão apresentadas. Nos capítulos
subseqüentes, será analisada a neurobiologia da dependência de modo geral e em
seguida de cada substância, incluindo a síndrome de abstinência e os efeitos do
uso agudo e crônico sobre o sistema nervoso. Esperamos, assim, divulgar o
conhecimento dessa nova fronteira de investigações sobre a dependência química
para o maior número possível de interessados.
Os povos primitivos consideravam as doenças o
resultado de possessões espirituais, de um castigo dos deuses ou obra do
demônio. Para os
assírios shertu significava ao mesmo tempo doença,
castigo e cólera divina. A grande
transformação aconteceu durante a Antigüidade Clássica, na Grécia: Hipócrates
(460-377a.C.), até então um sacerdote do Templo de Asclépio (deus da Medicina),
rompeu com a crença da influência dos deuses na gênese das doenças e propôs que
as causas naturais originavam as enfermidades e por isso essas deveriam ser
tratadas por meios naturais. A partir de então a Medicina deixou de ser uma
religião para se tornar uma ciência.
Uma importante contribuição para o entendimento das
doenças surgiu no século XVII com o médico inglês Thomas Sydenham (1624-1689).
Sydenham acreditava na existência de espécies mórbidas, isto é,
formas típicas de doença que se repetiam de modo semelhante nos indivíduos.
Assim, propunha que as doenças fossem observadas e descritas exaustivamente,
com o intuito de acumular informações afins. Foi o nascimento da nosologia,
ramo da medicina que estuda e classifica as doenças.
Pequeno dicionário nosológico
Anatomia
patológica
Ramo
da medicina que estuda as alterações anatômicas introduzidas nas células e
tecidos pelo processo da doença
Etiologia
Ramo
da medicina cujo objeto é a pesquisa e a determinação das causas e origens de
uma determinada doença.
Fisiologia
Estudo
das funções e do funcionamento normal dos seres vivos, especialmente dos
processos físico-químicos que ocorrem nas células, tecidos, órgãos e sistemas
dos seres vivos sadios
Fisiopatologia
Estudo
das alterações funcionais dos seres vivos durante a presença de uma determinada
doença.
Nosologia
Ramo
da medicina que estuda e classifica as doenças.
Patogenia
Modo
de origem ou de evolução de qualquer processo mórbido.
Semiologia
Ramo
da medicina dedicado ao estudo do melhor meio e modo de se examinar um doente,
especialmente de se verificarem os sinais e sintomas.
Sinal
Achado
da investigação clínica que pode ser constatado independentemente da descrição
do doente (tosse, pus, inchaço, corte, febre, suor)
Sintoma
Achado
da investigação clínica que pode ser constatado apenas com o auxílio descritivo
do doente (dor, anestesia, formigamento, mal-estar)
O século XIX ficou conhecido como o Século da
Ciência. Um dos grandes marcos do período foi a descoberta dos germes. Até
então, achava-se que muitas doenças eram causadas pelo ar poluído e que as
larvas brotavam espontaneamente de seres em putrefação. A partir das
descobertas do século XIX, doença passou a ser vista como um modo de
viver anormal, mas sem diferença dos processos fundamentais que mantêm a
vida. Isto quer dizer fundamentalmente o seguinte: a doença é um
processo dinâmico, onde uma determinada causa(infecção por bactérias,
contusões, fogo) [etiologia], por meio de algum mecanismo (proteínas
da bactéria, impacto físico, impacto térmico) [patogenia], provoca
alterações no funcionamento do corpo (alterações circulatórias,
digestivas, neurológicas) [fisiopatologia] e eventualmente causa
lesões reversíveis (inflamação do fígado, fraturas) ou
irreversíveis (cicatrizes, retração do órgão) [anatomia
patológica]. Essas alterações se manifestam sob a forma de sinais (febre,
inchaço, tosse, pus) e sintomas (dor, fraqueza,
indisposição) [semiologia]. Todo esse processo possui uma evolução
dentro das características de cada doença.
O conceito atual de doença estava quase pronto. A
contribuição final veio a partir da segunda metade do século XX: a
valorização da totalidade e da individualidade daquele que vivencia a doença.
A totalidade significa que o todo é algo mais do que a soma das partes que o
constituem. A atenção à individualidade se preocupa com o papel que o processo
da doença desempenha em cada enfermo. Cada indivíduo apresentará os mesmos
sintomas, porém, de modo mais ou menos grave e vivenciado das mais diferentes
maneiras.
Critérios diagnósticos da síndrome dependência de
substâncias psicoativas.
Compulsão para o consumo
A experiência de um desejo incontrolável de
consumir uma substância. O indivíduo imagina-se incapaz de colocar barreiras a
tal desejo e sempre acaba consumindo.
Aumento da tolerância
A necessidade de doses crescentes de uma
determinada substância psicoativa para alcançar efeitos originalmente obtidos
com doses mais baixas.
Síndrome de abstinência
O surgimento de sinais e sintomas de desconforto,
de intensidade variável, quando o consumo de substâncias psicoativas cessou ou
foi reduzido.
Alívio ou evitação da abstinência pelo aumento do
consumo
O consumo de substâncias psicoativas visando ao
alívio dos sintomas de abstinência. Como o indivíduo aprende a detectar os
intervalos que separam a manifestação de tais sintomas, passa a consumir a
substância preventivamente, a fim de evitá-los.
Relevância do consumo
O consumo de uma substância torna-se prioridade,
mais importante do que coisas que outrora eram valorizadas pelo indivíduo.
Estreitamento ou empobrecimento do repertório
A perda das referências internas e externas que
norteiam o consumo. À medida que a dependência avança, as referências voltam-se
exclusivamente para o alívio dos sintomas de abstinência, em detrimento do
consumo ligado a eventos sociais. Além disso passa a ocorrer em locais onde sua
presença é incompatível, como por exemplo o local de trabalho.
Reinstalação da síndrome de dependência
O ressurgimento dos comportamentos relacionados ao
consumo e dos sintomas de abstinência após um período de abstinência. Uma
síndrome que levou anos para se desenvolver pode se reinstalar em poucos dias,
mesmo o indivíduo tendo atravessado um longo período de abstinência.
Dependência química e doença
O conceito de dependência química como uma doença
que possui uma causa provocadora de alterações ao funcionamento do cérebro, que
se manifestam por meio de sinais e sintomas específicos começou a ser definido
a partir do século XX. Em primeiro lugar, surgiram conceitos baseados em
descrições psicopatológicas. A idéia era encontrar uma descrição que se
servisse para todos os dependentes. Nos anos cinqüenta e sessenta, autores como
E. M. Jellineck (1890-1963), observaram que os dependentes poderiam ser agrupados
em classes distintas, dependendo das características de cada um. Nos anos
setenta e oitenta, o grupo londrino do National Addiction Centre liderado
por Griffith Edwards combinou e ampliou os conceitos anteriores e chegou ao que
utilizamos hoje: existe um grupo de sinais e sintomas que são
observados em níveis variados de gravidade em qualquer dependente. Não
existe a dicotomia dependente e não-dependente, tampouco diferentes tipos
específicos, mas sim uma síndrome de dependência, baseada em
sinais e sintomas, cuja gravidade
varia ao longo de uma linha contínua.
De síndrome à doença. A tez amarelada
sugere uma síndrome ictérica, tendo o fígado como o órgão
responsável por tal disfunção. Síndrome é um conjunto de sinais e sintomas
relacionados à disfunção de um órgão, cuja causa e mecanismos patológicos são
desconhecidos. Para que a síndrome ictérica se configure em uma doença é
preciso determinar [1] que agente causou a disfunção e por que via de
transmissão (etiologia); [2] como causou e por que mecanismos
fisiológicos (patogenia & fisiopatologia); [3] as lesões que causou
no órgão acometido (anatomia patológica) e [4] como essas lesões
repercutiram na forma de sinais e sintomas clínicos (sintomatologia).
Porque se utiliza o termo 'síndrome' de dependência
Na figura um homem de tez amarelada demonstra
claramente a vigência de uma dor que lhe causa grande sofrimento. Sua posição,
trazendo o tórax para frente e mantendo o abdômen elevado e tenso, procura
minimizar a intensidade da dor que o acomete (posição antálgica). A pele
amarelada é um sinal denominado icterícia. A icterícia é
depósito de bilirrubina na pele e mucosas do corpo. O responsável pela
metabolização e eliminação da bilirrubina é ofígado. O excesso de
bilirrubina no corpo, sinaliza que o fígado não está dando conta de
metabolizá-la e eliminá-la como deveria. Isso é tudo que se pode deduzir a
partir desta imagem. Quando se consegue determinar um conjunto de
sinais e sintomas provenientes da disfunção de um determinado órgão, mas cuja
causa é ou ainda está indefinida, dizemos trata-se de uma síndrome.
Na pintura de Odd Nerdrum, o máximo que se pode dizer é que o convalescente
possui umasíndrome ictérica.
Várias causas relacionadas ao fígado são capazes de
levar à síndrome ictérica. Entre estas, estão a exposição a agentes tóxicos,
como o chumbo, o uso pesado de álcool, reações adversas aos medicamentos,
reações auto-imunes e a infecção pelos vírus da hepatite. No caso dos vírus, há
um modo de transmissão. O vírus da hepatite A é transmitido por
alimentos contaminados ou por gotículas de saliva. Já os vírus da hepatite B e
C são transmitidos pelo contato sexual ou pelo sangue contaminado. Por meio da
história clínica, do exame físico e de exames laboratoriais é possível saber o
que causou, ou seja, a etiologia desta doença.
As células do fígado (hepatócitos) desempenham
diversas funções. Estão, também, dispostas anatomicamente de maneira a
facilitar tal desempenho. Os fatores etiológicos causadores de icterícia atacam
os hepatócitos e desconfiguram sua disposição (arquitetura). Isso pode
acontecer que maneira direta (ação tóxica do chumbo ou álcool sobre a célula)
ou indireta (células de defesa atacam os hepatócitos infectados pelo vírus).
Com o auxílio da fisiologia, é possível saber não apenas o que causou
(etiologia), mas também, o que (patogenia) e como (fisiopatologia)
se causou, ou seja, quais foram os mecanismos que ocasionaram aquela doença.
Os mecanismos fisiopatológicos podem levar ao
surgimento de lesões. No caso da hepatite, a lesão são a morte dos hepatócitos
(necrose) e a desconfiguração de sua arquitetura. As lesões são a manifestação
anatômica dos mecanismos fisiopatológicos da doença no organismo humano (anatomopatológico).
O fígado conseguereverter a lesão causada pelo agente
etiológico até certo ponto. Caso lesão seja muito extensa, a recuperação do
órgão éirreversível e a evolução da doença pode deixar
marcas (seqüelas) ou ser fatal.
A presença da lesão anatomopatológica causa alterações
no funcionamento do organismo, que procura se adaptar a esta
para sobreviver e prejudicar o mínimo possível o funcionamento dos outros
órgãos. Muitos hepatócitos morreram. Os restantes têm dificuldade para
metabolizar a bilirrubina no sangue. O excesso de bilirrubina no sangue é
incompatível com a vida. Desse modo, armazená-la na pele e nas mucosas dos
órgãos é uma saída temporária para contornar a situação. Portanto, a presença
da lesão e as adaptações do corpo a sua presença repercutem clinicamente na
forma de sinais e sintomas específicos (sintomatologia).
As ilustrações permitem, assim, o entendimento do
conceito de síndrome e doença. Na primeira, há
apenas a descrição de sinais e sintomas relacionados a um determinado órgão. Na
segunda, além da sintomatologia, é possível determinar a causa exata
(etiologia), o mecanismo gerador do mal (patogenia) e a natureza da lesão
(anatomopatologia) que levou ao surgimento dos sinais e sintomas observados
(sintomatologia).
Por isso fala-se em síndrome de dependência:
há uma sintomatologia tipicamente observada em qualquer dependente, seja ela
mais ou menos grave. Esses sinais e sintomas (sintomatologia) provavelmente
derivam de alterações anatômicas (anatomopatologia) localizadas no cérebro e causadas
pela presença constante da droga no organismo. Mas o que levou o indivíduo à
busca constante da droga (etiologia) não pode ser atribuído a uma única causa.
Além disso, não se conhece totalmente os mecanismos que levam a essas
alterações (fisiopatologia), tampouco a natureza exata das lesões
(anatomopatologia). A neurobiologia procura elucidar as dúvidas contidas nesses
campos, isto é, as alterações anatômicas produzidas pelo consumo continuado de
substâncias psicoativas, as alterações anatômicas ocasionadas e a repercussão
clínica destas.
Portanto, se há sinais e sintomas que se repetem
numa classe de indivíduos (os dependentes), então deve haver modificações no
cérebro que justifiquem tal fenômeno. Deve haver uma base
neurobiológicapara a dependência química. A neurociência vem se
dedicando a desvendá-la desde os anos cinqüenta. Meio século depois, alguns
modelos foram propostos e serão discutidos aqui. A dependência química é um
fenômeno complexo, ocasionada por diversos fatores de natureza biológica, psicológica
e social. Desse modo jamais será explicada, tampouco reduzida a um modelo
neurobiológico. A existência deste modelo, no entanto, consolida a
visão da dependência química como uma síndrome nosológica e abre novas
fronteiras para a descoberta de uma farmacoterapia específica e efetiva para o
tratamento e alívio da sintomatologia e das complicações clínicas da mesma.