Autor: Paulo J. Cunha
Introdução
A cocaína é uma substância psicoativa que atua no sistema de recompensa cerebral (brain reward system), através da recaptação de neurotransmissores tais como a noradrenalina, serotonina e dopamina. Embora outros neurotransmissores também estejam envolvidos no processo, acredita-se que o bloqueio da recaptação da dopamina leva a um aumento da concentração deste neurotransmissor na fenda sináptica (espaço entre os neurônios), fenômeno responsável pelas sensações de euforia e prazer associadas ao uso da droga (Nathan et al., 1998).
Em longo prazo, no entanto, acredita-se que ocorra uma diminuição na disponibilidade de neurotransmissores e comprometimento de receptores, processos que podem estar associados à anedonia (ausência de prazer), ansiedade, diminuição da energia e vários problemas cognitivos (Lacayo, 1995; Cadet e Bolla, 1996; Baumann et al., 2004). Este texto tem o objetivo de revisar os principais achados neste campo, assim como o impacto das alterações neuropsicológicas no tratamento dos dependentes de cocaína.
Efeitos neuropsicológicos crônicos do uso da cocaína
Em uma época em que a cocaína era vista pela sociedade médica como uma droga incapaz de provocar dependência, Washton et al. (1984) realizaram um levantamento, a partir de um serviço de ajuda telefônica para usuários de cocaína, englobando 500 indivíduos, que detectou não apenas problemas sociais, físicos e psicológicos, como também uma prevalência alta de queixas cognitivas: a parcela de 65% referiu dificuldade de concentração e 57% relatou problemas de memória.
Anos depois, vieram os estudos com bases mais sólidas e com a utilização de testes neuropsicológicos. Ardila et al. (1991) estudaram 37 dependentes de cocaína, internados, com a média de 30 dias em abstinência, usando uma bateria neuropsicológica básica e comparando os resultados com tabelas normativas dos testes.
Encontraram um prejuízo neuropsicológico moderado nos pacientes, em tarefas de memória verbal, visual, atenção, nomeação e capacidade de abstração. Foi observado também que quanto maior a quantidade de uso da droga durante a vida, pior o desempenho neuropsicológico.
Berry et al. (1993) estudaram 16 dependentes de cocaína, internados para tratamento, em dois momentos: 72 horas e 14 dias após a abstinência, comparando-os a 21 controles, pareados em idade, sexo, raça e educação. Verificaram que o uso recente de cocaína estava relacionado a prejuízos na memória, habilidades viso-espaciais e concentração, durante a fase inicial da retirada da droga, e que estes persistiam por pelo menos duas semanas após a cessação do uso.
A despeito de os dois grupos terem obtido uma melhoria significativa na maioria das medidas neuropsicológicas, os sujeitos dependentes falharam em demonstrar um grau de recuperação similar aos controles, principalmente nas tarefas de velocidade viso-motora, memória e concentração.
Strickland et al. (1993) estudaram pacientes dependentes de cocaína internados, buscando avaliar a relação entre fluxo sangüíneo cerebral e o funcionamento neuropsicológico desses sujeitos, após um período significativo de abstinência à droga (pelo menos seis meses).
Os pacientes apresentaram alterações no fluxo sangüíneo cerebral e disfunção cognitiva persistente, particularmente em tarefas que requeriam sustentação da atenção, concentração, novas aprendizagens, memória visual e verbal, fluência verbal e integração viso-motora. Os déficits neuropsicológicos observados foram associados com o padrão multifocal de hipoperfusão cerebral constatado pelos exames de SPECT.
Rosseli e Ardila (1996), em um estudo realizado com 183 participantes, sendo 63 sujeitos controles, 59 dependentes de várias drogas e 61 dependentes de cocaína, em abstinência de pelo menos dois meses, encontraram déficits cognitivos moderados associados ao uso crônico de cocaína e de várias drogas, principalmente de memória, atenção, abstração e flexibilidade cognitiva (funções executivas).
Selby e Azrin (1998) pesquisaram 60 dependentes de cocaína, 101 de álcool e 56 de várias substâncias, comparando-os a 138 indivíduos controles. Não foi encontrada diferença significativa entre o desempenho dos dependentes de cocaína e o resultado dos indivíduos controles. Nota-se que o tempo de abstinência foi bem maior que nos outros estudos, pois compreendeu um período médio de 36 meses (três anos).
Bolla et al. (1999) investigaram 30 usuários de cocaína e os compararam a 21 indivíduos. Os resultados sugeriram déficits em funções executivas, viso-percepção, velocidade psicomotora e destreza manual. Quanto maior o uso desta droga (gramas por semana), maior o decréscimo do funcionamento em testes neuropsicológicos, principalmente em funcionamento executivo, viso-percepção, velocidade psicomotora e destreza manual.
Cunha et al. (2004) pesquisaram 15 dependentes de cocaína, em tratamento, com a média de duas semanas de abstinência à droga, comparando-os a um grupo controle (n=15), pareado em diversas variáveis, como idade, gênero, nível sócio-econômico, lateralidade, etnia e nível intelectual. Os resultados apontaram diferenças estatisticamente significantes em atenção, memória (visual e verbal), aprendizagem, funções executivas e fluência verbal fonológica.
Em suma, é possível observar que o uso da cocaína está associado a alterações principalmente de atenção, memória e funções executivas. Há, ainda, efeitos relacionados à dose, ou seja, quanto maior o uso da droga (gramas na semana), piores os déficits encontrados, achado que contribui de maneira significativa para o estudo da relação de causalidade entre uso de cocaína e danos cognitivos (Bolla et al., 1999).
Os prejuízos neuropsicológicos iniciam-se nos primeiros dias de abstinência e persistem mesmo após seis meses de abstinência. Nesta fase, são encontrados ainda problemas na atenção, concentração, novas aprendizagens, memória visual e verbal, fluência verbal e integração viso-motora, assim como na perfusão (circulação sanguínea) cerebral (Strickland et al., 1993).
Por outro lado, em estudo realizado com três anos de abstinência à cocaína, não foram encontradas alterações, o que sugere que após um longo período de abstinência, é possível que a atividade neuroquímica e cerebrovascular retorne aos níveis anteriores de funcionamento, e desta forma as capacidades neuropsicológicas também (Selby e Azrin, 1998).
Alterações na tomada de decisões em dependentes de cocaína
De acordo com a Associação Psiquiátrica Americana (APA), a principal característica do dependente químico é a recorrência do comportamento de uso da droga, a despeito de suas conseqüências negativas, sejam na área social, psicológica ou legal (APA, 1994). O indivíduo apresenta uma série de comportamentos, que acabam levando-o a um processo de “autodestruição”, muitas vezes sem volta.
De posse deste conhecimento, pesquisadores passaram a avaliar o comportamento de dependentes de cocaína em um teste inovador, denominado Iowa Gambling Task (IGT), que simula situações de ganhos e perdas na vida real, com o objetivo de avaliar como o indivíduo processa o recebimento de recompensas e punições, tanto de longo como de curto prazo.
O indivíduo deve selecionar as cartas com o mouse, uma por vez, de qualquer um dos conjuntos, até que o jogo chegue ao final (após 100 escolhas). Depois de virar cada carta, a pessoa recebe uma quantia em dinheiro, fato anunciado imediatamente na tela, sendo a quantia variável de acordo com o conjunto escolhido. Depois de virar algumas cartas, os indivíduos recebem dinheiro, mas devem pagar uma penalidade, que também é anunciada após a escolha e varia de acordo com o conjunto.
Os sujeitos recebem a informação de que:
1) o objetivo do jogo é ganhar o máximo possível de dinheiro;
2) eles estão livres para escolher. Enquanto nos conjuntos A e B os ganhos imediatos são maiores, as perdas em longo prazo são mais expressivas ainda. Já as escolhas das cartas provenientes dos grupos C e D levam a ganhos baixos, porém estão associadas a perdas menores em longo-prazo.
O cálculo da pontuação final é feito através do Netscore, que representa a soma de escolhas dos grupos de cartas “vantajosas”, menos a soma das escolhas das cartas “desvantajosas” [(C+D)-(A+B)]. No total, há um saldo positivo quando o indivíduo escolhe mais cartas nos blocos C e D, ao passo que o saldo se torna negativo se o indivíduo escolher mais cartas oriundas dos blocos A e B.
O IGT foi inicialmente desenhado com o intuito de examinar o processo de tomada de decisões em pacientes com lesões cerebrais em córtex pré-frontal (CPF) (Bechara et al., 1994). Após lesão em CPF, especialmente em áreas órbito-frontais, indivíduos com personalidade normal tendem a apresentar conduta social desajustada, bem como sérios problemas na tomada de decisões e na execução de ações, que repetidamente levam a conseqüências psicossociais negativas (Damasio et al., 1990).
Um dos exemplos mais conhecidos deste tipo de infortúnio é Phineas Gage (para maiores detalhes, consultar Damasio, 1996). Tal como Gage e outros pacientes com lesões em CPF, sabe-se que, na maioria das vezes, dependentes de cocaína apresentam alterações de comportamento e personalidade semelhantes.
Ademais, estudos de neuroimagem estrutural e funcional têm apontado disfunções em CPF em dependentes de cocaína, no período de abstinência, que podem estar na base das alterações comportamentais vivenciadas pelos usuários (Volkow et al., 1988; Fein et al., 2002; Matochik et al., 2003; Bolla et al., 2004; Goldstein et al. 2004).
Alguns pesquisadores já utilizaram o IGT na avaliação de dependentes de drogas, tendo encontrado resultados interessantes e promissores. Grant et al. (2000) estudaram um grupo de 30 abusadores de múltiplas drogas, que tiveram o seu desempenho comparado com 24 sujeitos-controle.
Após os devidos ajustes estatísticos, o grupo encontrou um desempenho significativamente pior dos abusadores de drogas em relação aos controles no IGT. Bechara et al. (2001) estudaram o desempenho de 41 dependentes de estimulantes e álcool nesta tarefa, comparando-os a 40 sujeitos normais e cinco pacientes com lesão conhecida em CPF.
Foi encontrado prejuízo significativo nos abusadores em relação aos controles, sendo que 61% deles situaram-se dentro da faixa de desempenho esperada para os pacientes lesionados. Em nosso meio, foram avaliados dependentes de cocaína e os resultados foram similares aos dos estudos internacionais.
Ao longo das 100 tentativas, enquanto os indivíduos do grupo controle tendiam a escolher cada vez mais cartas dos grupos “vantajosos” (C+D), os dependentes de cocaína falharam em aprender efetivamente com as conseqüências futuras de suas ações, mantendo-se presos aos efeitos imediatos (A+B), o que os levou inevitavelmente a perdas maiores de longo-prazo, algo semelhante ao que ocorria na vida pessoal (Cunha et al., 2005). Entretanto, de acordo com Bartzokis et al. (2000), é provável que a avaliação dos riscos melhore na medida em que o tempo de abstinência à cocaína aumenta.
Impacto dos déficits cognitivos no tratamento
A maioria dos tratamentos atualmente reconhecidos como eficazes para a dependência se baseia no emprego de estratégias cognitivo-comportamentais, em que o uso do processamento mental é um mediador para a mudança de comportamentos. Assim, aqueles dependentes de cocaína que não conseguem compreender as intervenções (ex: análise funcional, treinamento de habilidades), tendem a obter pouco sucesso ou abandonar o tratamento precocemente.
Aharonovich et al. (2003) acompanhou 18 dependentes de cocaína, não-deprimidos, durante tratamento baseado em terapia cognitivo-comportamental (TCC), após terem respondido a uma bateria de testes cognitivos por computador. Os resultados indicaram que aqueles que completaram o tratamento de 12 semanas, haviam obtido pontuação melhor no início da avaliação, quando comparados àqueles que desistiram antes de completar o programa.
Os dados fornecem subsídios para a compreensão de que determinados déficits cognitivos podem afetar a aderência ao tratamento e a abstinência à cocaína. De fato, é razoável e faz sentido pensar que os usuários de cocaína que não conseguem compreender as intervenções da TCC estão mais propensos ao abandono do tratamento (Aharonovich et al., 2003).
O mesmo grupo de pesquisadores prosseguiu com as investigações, agora com uma amostra maior (n= 56 dependentes de cocaína), e percebeu que os resultados não foram afetados por outros fatores como depressão, dados sócio-demográficos ou intensidade do uso de droga (Aharonovich et al., 2006).
Os autores defendem a elaboração de estratégias específicas para os pacientes, no sentido de melhorar a aderência ao tratamento. De fato, parece que isso pode dar certo. Maude-Griffin et al. (1998) avaliaram 128 usuários de cocaína (crack), oriundos de programas ambulatoriais e de internação para tratamento de dependência de cocaína e perceberam, no geral, superioridade da TCC quando comparada ao método de 12 passos, utilizado em grupos como os Narcóticos Anônimos (NA).
Entretanto, quando os pesquisadores analisaram sub-grupos da amostra, perceberam que o sucesso do tratamento parecia depender do funcionamento cognitivo e características individuais dos pacientes. Os dependentes de cocaína que possuíam melhor nível de abstração, por exemplo, tendiam a obter melhores taxas de sucesso na TCC, quando comparados àqueles com pior nível de abstração.
Estes, por sua vez, tendiam a obter mais sucesso quando submetidos a tratamento baseado em estratégias de NA, quando comparados aos indivíduos com alto nível cognitivo. Tais resultados estão em consonância com os Princípios Gerais de Tratamento das Dependências Químicas do National Institute on Drug Abuse (NIDA, 1999), que defende a utilização de estratégias direcionadas às características individuais de cada paciente.
Conclusões
O uso de cocaína está associado a efeitos prejudiciais, de longo-prazo (crônicos), em várias funções cognitivas, principalmente em atenção, memória, funções executivas e na tomada de decisões. As alterações cognitivas parecem estar associadas predominantemente a problemas de funcionamento do CPF do cérebro, e podem, por sua vez, interferir negativamente na aderência e aumentar as chances de recaída dos pacientes.
Este complexo de sintomas parece estar na base das dependências, e, por isso, considera-se de extrema valia a busca por adaptações nas técnicas comportamentais e investigação de estratégias farmacológicas mais eficazes para o seu tratamento. Acredita-se que o tratamento voltado para as características individuais dos pacientes, incluindo o funcionamento cognitivo, pode ser muito mais efetivo, por levar à diminuição das chances de recaída e melhorar a aderência ao programa de acompanhamento.
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