Patricia Brunfentrinker
Hochgraf1 & Silvia Brasiliano2
É consenso na literatura que a
dependência de substâncias psicoativas permaneceu escondida na maior parte do
mundo por muito tempo (UNODC, 2003). Se considerarmos que desde a metade do
século XVIII já se falava de alcoolismo-doença e a toxicomania foi definida no
século XIX (Bento, 2003), torna-se difícil entender como no período entre 1970
e 1984 só 8% dos sujeitos participantes de pesquisas científicas sobre
alcoolismo eram mulheres e somente 25 estudos sobre dependência verificaram
diferenças entre os sexos no período entre 1984 e 1989 (Toneatto e cols., 1992,
Health Canadá, 2001).
Taxas americanas de alcoolismo de
20,1% para os homens e 8,2% para as mulheres (2,4 homens: 1 mulher) e de outras
drogas de 9,2% dos homens e 5,9% das mulheres (1,5 homens: 1 mulher) ou mesmo
taxas brasileiras de alcoolismo em 17,1% dos homens e 5,7% das mulheres (3
homens: 1 mulher) certamente também não explicam, nem justificam o
desconhecimento que persistiu por tanto tempo das questões relativas às
dependências femininas (Kessler e cols., 1994, Carlini e cols., 2002).
Provavelmente a explicação é
outra: O PRECONCEITO. Estereótipos de maior agressividade, tendência a
promiscuidade, falhas no cumprimento do papel familiar estão mais comumente
associadas às mulheres que aos homens farmacodependentes (Brady e Randall,
1999).
O preconceito da população em
geral e, em particular, das dependentes torna muito difícil o seu acesso aos
centros de tratamento, onde permanecem assim sub-representadas (Blume, 1986,
Health Canadá, 2001). Mais além, esse preconceito, também, transparece nas
atitudes dos profissionais de saúde, que em geral têm muita dificuldade em
diagnosticar dependências em mulheres. Um estudo realizado no John Hopkins
Hospital, verificou que o diagnóstico de alcoolismo era ignorado em 34 a 93%
das pacientes, principalmente das classes sociais mais elevadas (Blume, 1990).
Assim, o que costuma ocorrer é uma
somatória de dificuldades. Pacientes envergonhadas, que procuram ajuda
indiretamente, isto é, com queixas vagas sobre sua saúde física e/ou psíquica,
geralmente com médicos não especializados, que acabam não sendo diagnosticadas.
Nas raras ocasiões em que isso acontece terminam por ser encaminhadas a
serviços de atendimento ao farmacodependente onde predominam os homens e suas
necessidades (Hochgraf e Andrade, 2004).
Decorrente desse quadro,
observamos ainda que o estigma que historicamente se desenvolveu contra a
mulher farmacodependente levou a construção de uma série de mitos (evolui pior
e adere menos aos tratamentos que os homens, por exemplo). Como disse Edwards
(1987) em uma crítica sobre os estudos de dependência feminina: tudo isto não
passa de um amontoado de crendices.
Diferenças entre homens e mulheres
farmacodependentes
Para entendermos melhor a
importância do estudo de mulheres farmacodependentes, bem como a necessidade de
criar programas específicos de tratamento e desenvolver projetos de prevenção
mais eficazes ressaltaremos a seguir algumas características peculiares deste
subgrupo. Levando-se em conta as razões que levam um dependente a iniciar o
uso, temos que as mulheres começam a beber a partir da ocorrência de eventos
vitais significativos (por exemplo, a morte do cônjuge ou uma separação),
diferentemente dos homens, que não apontam um desencadeante especial.
Já no caso da cocaína, elas
referem como motivo para o início de uso: depressão, sentimentos de isolamento
social, pressões profissionais e familiares e problemas de saúde, ao contrário
dos homens que citam os efeitos da intoxicação como motivo (Lex, 1994). Além
disso, as mulheres, em geral, iniciam o uso de drogas levadas pelo companheiro,
enquanto os homens o fazem com os amigos (Henderson e cols., 1994).
Considerando a idade de início de
uso, temos que as mulheres alcoolistas começam a beber tardiamente em relação
aos homens, porém chegam ao tratamento com a mesma idade, mostrando uma
progressão mais rápida do alcoolismo. Ao contrário do que acontece na
dependência de álcool e heroína, as mulheres dependentes de cocaína iniciam o
uso mais precocemente (15,6 vs. 18,5 anos) do que os homens e chegam antes ao
tratamento (24,6 vs. 29,1 anos) (Henderson e cols., 1994, Lex, 1994).
Quanto às complicações clínicas
das farmacodependências, observa-se que as mulheres alcoolistas têm uma
morbidade 1,5 a 2 vezes maior do que os homens. As complicações físicas
decorrentes do consumo de álcool (pancreatite, cirrose e neuropatias, entre
outras) também aparecem antes e de forma mais grave nas mulheres. Isso ocorre
provavelmente porque elas: têm mais gordura corpórea proporcionalmente à água
(isto leva a uma alcoolemia maior) e apresentam níveis séricos menores da
enzima álcool-desidrogenase (enzima esta que ajuda a metabolizar o álcool
ingerido), o que faz com que absorvam 30% mais do álcool ingerido que os
homens. Adicionalmente, o ciclo menstrual parece afetar a taxa de metabolização
do álcool, embora ainda não seja claro de que maneira isto acontece (Chow,
1994, Dawson, 1994).
As diferenças fisiológicas entre
homens e mulheres levam a uma vulnerabilidade diferente para outras drogas que
não só o álcool. Por exemplo, drogas lipossolúveis como alguns
benzodiazepínicos teriam meias-vidas mais longas nas mulheres, pois como já foi
dito, elas têm mais gordura corpórea que os homens.
É importante lembrar ainda que
mulheres dependentes experimentam uma variedade de problemas de saúde, que pode
estar relacionada tanto ao uso da droga propriamente dito, como também ao seu
estilo de vida. Apresentam, de forma geral, maior ocorrência de amenorreia, dismenorreia,
infertilidade e doenças sexualmente transmissíveis, entre outras.
Considerando-se os problemas obstétricos, são relatados: frequência aumentada
de trabalho de parto prematuro, anomalias congênitas, retardo de crescimento, descolamento
prematuro de placenta, baixo peso ao nascer, morte neonatal e síndrome de morte
súbita na infância (Dehovitz e cols., 1994, Kain e cols., 1995).
A síndrome fetal pelo uso do
álcool, é um grave problema no Brasil e no mundo. Estima-se que nos Estados
Unidos haja de 1 a 3 casos em 1000 nativivos, e que esta seja a terceira causa
mais frequente de retardo mental em recém nascidos. Esta síndrome pode
apresentar-se como uma má-formação e um retardo mental que varia de leve a
moderado. (Schuckitt, 1991).
Quanto as outras drogas temos que
a cocaína estaria relacionada com os "crack babies": recém-nascidos
com alterações neurocomportamentais, que apresentam um quadro que duraria de 8
a 10 semanas (Lex, 1994). A nicotina levaria as mães fumantes a um risco quase
duas vezes maior que a população geral de terem fetos com anomalias congênitas
(Schuckitt, 1991) e os opióides cuja síndrome de abstinência é mais perigosa
para o feto que para a mãe (Ciraulo e Shader, 1991).
Resumindo, percebe-se que os problemas
de saúde causados pelas drogas diretamente no corpo da mulher, bem como os
efeitos especificamente relacionados à gestação e ao feto devem ser sempre
considerados, até porque são fonte mobilizadora para o tratamento. Observa-se
que as mulheres farmacodependentes apresentam uma mortalidade superior a dos
homens farmacodependentes. Um estudo realizado em Estocolmo com 3910 homens e
962 mulheres alcoolistas, recrutados entre 1962 e 1981 e seguidos até 1983,
mostrou que os homens morrem 3 vezes mais e as mulheres 5 vezes mais do que
seria esperado na população geral (Lindenberg e Agren, 1988, Henderson e cols.,
1994).
Cabe ressaltar que os fatores
genéticos são fundamentais para o desenvolvimento de alcoolismo entre mulheres,
à semelhança do que acontece com os homens. Esses fatores seriam responsáveis
por 50 a 60% da probabilidade de uma mulher vir a ser alcoolista e seriam
igualmente transmitidos por via materna ou paterna (Kendler e cols., 1992,
Kendler e cols., 1994).
Outro dado importante é que mulheres
alcoolistas têm mais comorbidade que os homens alcoolistas (65% das mulheres
vs. 44% dos homens) e que as mulheres da população geral (31% das alcoolistas
vs. 5% das outras mulheres) (Anthony e Helzer, 1991). Entre estas, as mulheres
apresentam frequentemente comorbidade com transtornos depressivos e ansiosos,
diferentemente dos homens que apresentam maior comorbidade com transtornos de
personalidade (Hochgraf, 1995). Essas diferenças não são tão claras para as
outras drogas que não o álcool, embora haja fortes indícios que esta relação
também ocorra com dependentes de cocaína. Os transtornos afetivos podem começar
antes, durante ou após o início da farmacodependência, porém depressões severas
começam geralmente antes do início do problema com drogas.
Outra comorbidade importante nas
mulheres farmacodependentes são os transtornos alimentares. Um estudo de 1998
(Tracy e cols., 1998) verificou que mulheres com abuso de álcool e cocaína
estão mais propensas a terem transtornos alimentares que a população geral,
sendo as drogas muitas vezes usada para controle de peso. Holderness e cols.
(1994) em uma revisão de 51 estudos relacionados à comorbidade entre
transtornos alimentares e farmacodependências, apontam que essa associação é
mais forte em relação à bulimia nervosa e comportamentos bulímicos que à
anorexia nervosa.
Parecem haver semelhanças
comportamentais entre as pessoas dependentes de substâncias psicoativas e
àquelas com transtornos alimentares. Estas semelhanças envolvem perda de
controle, preocupação com a substância, uso da substância para lidar com o
estresse ou sentimentos negativos, tendência a manter o comportamento em
segredo, manutenção do uso apesar das consequências sociais negativas
(isolamento) e prejuízos profissionais (Hatsumaki e cols., 1982).
Verificando outras comorbidades,
Lejojeux e cols. (1999) observaram que 38% de uma amostra de 79 pacientes
alcoolistas apresentavam transtorno do controle de impulso: 19 (24,5%)
transtorno explosivo intermitente, 7 (8,9%) jogo patológico, 3 (3,8%)
cleptomania e 1 (0,8%) tricotilomania.
É clara, hoje em dia, a
importância de ser cuidadoso em relação às comorbidades eventualmente presentes
entre os pacientes, já que estas podem alterar o curso e o prognóstico das
farmacodependências propriamente ditas. Esse é o caso das mulheres alcoolistas
com comorbidade depressiva, que uma vez tratadas da última, tendem a ficar
abstinentes com maior facilidade.
Tratamento: Uma experiência
brasileira
As mulheres farmacodependentes
apresentam, em geral, companheiros também dependentes e que na maioria das
vezes opõem-se ativamente ao tratamento, diferentemente das esposas dos homens
farmacodependentes que, frequentemente, são as grandes estimuladoras para que
estes procurem ajuda. De qualquer forma, as mulheres podem contar com o
incentivo dos pais e dos filhos para o tratamento (Hochgraf, 1995). De
forma ampla, as mulheres enfrentam uma série de barreiras para chegar e
permanecer no tratamento, sejam estruturais (falta de creche e ajuda legal),
pessoais (falta de emprego e dependência financeira) e/ou sociais (estigma
social e oposição do companheiro) (Hodgins e El-Guebaly, 1997).
Como forma de superar estas
barreiras vem-se propondo o desenvolvimento de programas específicos para
mulheres. Isto significa desenvolver e implementar estratégias integradas que
sejam particulares e responsivas às necessidades de gênero, o que é
completamente diferente de simplesmente "transformar em só para mulheres"
um serviço desenhado e implantado para homens! (Grella e cols., 1999, UNODC,
2003).
É praticamente consensual que
abordagens em programas exclusivamente femininos são superiores aos mistos
(Brasiliano e Hochgraf, 1999, Orwin e cols., 2001, Ashley e cols., 2003).
Portanto, serviços de atendimento que incluam assistência social, jurídica,
atendimento familiar, profissionais que trabalhem questões ligadas à autoestima,
ao corpo (nutricionistas, terapeutas ocupacionais, dentre outros), grupos de
terapia só de mulheres, onde possam ser discutidas questões afetivas e
interpessoais e não somente aquelas ligadas diretamente à droga terão uma
chance maior de ser bem sucedidos (Hodgins e El-Guebaly, 1997, Simpson e cols.,
1997, Stein e Cyr, 1997 Como afirma Davis (1994), programas exclusivos para
mulheres devem preocupar-se muito mais com o fato das pacientes serem mulheres
do que propriamente farmacodependentes.
Nesta linha, temos no Brasil, o
Programa de Atendimento à Mulher Dependente Química (PROMUD) que pertence ao
Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da
Universidade de São Paulo. Este programa foi desenvolvido em 1996 a partir de
uma tese que comparava 115 mulheres e 115 homens dependentes de álcool em um
tratamento misto e tradicional cujas conclusões foram (Hochgraf, 1995):
1. Tanto os homens como as mulheres, que
permaneceram no tratamento, evoluíram de forma semelhante, melhorando no 1o.
mês e mantendo essa melhora até o 6o. mês.
2. Mulheres e homens alcoolistas tiveram uma
taxa de aderência baixa, porém semelhante.
A partir desses resultados e da
literatura especializada, em novembro de 1996 fundamos o PROMUD baseado no
tripé: ensino, assistência e pesquisa. No que diz respeito à assistência, todas
as pacientes que entram no PROMUD são sistematicamente avaliadas, entram em um
processo de convocação quando faltam e recebem um termo de consentimento
pós-informação.
Após uma triagem cuidadosa feita
por um médico e um psicólogo, tendo a paciente acima de 17 anos, diagnóstico de
dependência de substâncias psicoativas pelo DSM IV, morando em São Paulo,
podendo comparecer uma vez por semana ao hospital e querendo ajuda, é agendada
a primeira consulta em um prazo máximo de um mês. Essa primeira consulta é
feita por um psiquiatra que, após anamnese rigorosa, exame físico e psíquico,
detecção de comorbidades, encaminhamento para tratamento de complicações
clínicas, inicia o tratamento medicamentoso que porventura se faça necessário e
principalmente começa um programa de prevenção de recaídas.
Todas as pacientes são
encaminhadas para grupos de terapia de base psicanalítica, acompanhamento
nutricional, aconselhamento legal e, quando possível, grupos de arteterapia e
orientação familiar.
Estudos sobre a taxa de
permanência no PROMUD revelaram que nos primeiros anos, embora houvesse um
aumento significativo na aderência em 6 meses das pacientes alcoolistas (57%
comparativamente a 34,8% em um tratamento misto) o mesmo não ocorria com as
mulheres dependentes de outras drogas que não o álcool (Brasiliano e Hochgraf,
1999). Entre as diferentes hipóteses explicativas para esse resultado
percebeu-se que para as mulheres mais jovens, em sua maioria dependentes de
crack, seria importante ter casais de terapeutas (um terapeuta homem e uma
terapeuta mulher) ao invés de somente terapeutas mulheres como parecia ser
fundamental para as alcoolistas, mais velhas (Brasiliano, 2003). Além disto,
parecia muito importante também ter uma nutricionista, que pudesse abordar as
questões relativas ao corpo e à autoestima com as quais elas pareciam bastante
preocupadas (Hochgraf e Andrade, 2004).
Essas mudanças tiveram um impacto
significativo sobre as taxas de permanência no tratamento após 6 meses (de
43,9% de uma amostra mista para 65,17% no PROMUD) e após um ano, quando se
observou que, independentemente da droga utilizada, a aderência era de cerca de
50%, comparativamente a 20% em tratamento tradicional misto quanto ao sexo
(Hochgraf, 2003).
Com relação à evolução,
verificou-se que 50% das alcoolistas e 47% das dependentes de outras drogas
estavam abstinentes após 6 meses sendo, que outras 30% de ambos os grupos
tinham pelo menos reduzido seu consumo. Estes números também se repetiam nas
escalas de avaliação de outras áreas de funcionamento que não só o consumo
(relações familiares, ocupacionais e lazer) (Hochgraf, 2000).
Conclusão
Embora venha aumentando a detecção
de mulheres farmacodependentes, ainda há poucos estudos que esclareçam suas
reais necessidades, tanto para o desenvolvimento de programas de tratamento,
quanto para programas de prevenção. No entanto, não há mais dúvidas que elas
constituem um grupo com características tão diferentes dos homens que se torna
impossível generalizar resultados de um grupo para outro.








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