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4/01/2015

DROGAS E RELIGIÃO PARTE II: RITUAIS EXTÁTICOS CRISTIANIZADOS






FIGURA 1: Hari-hari segura um cogumelo Amanita [à esquerda], enquanto um ídolo asteca está posicionado sob a proteção de um cogumelo [à direita]. Os povos da Antigüidade acreditavam nas plantas psicoativas como um presente dos deuses, capazes de transportar seu espírito a planos divinos.

Remonta ao fim do nomadismo o consumo de plantas psicoativas pelo homem com o intuito do congraçamento com o divino (PARTE I). O desejo de passear pelo mundo dos deuses, elevar a condição espiritual e buscar novos elos de união grupal sempre estiveram presentes em tais práticas. As plantas capazes de propiciar essa experiência passaram a ser vistas como um presente dos deuses, uma ponte presenteada por eles para facilitar o acesso do homem a seu mundo. 

Os rituais extáticos eram guiados por seres capazes de se aventurar incólumes às impurezas espirituais que essa experiência proporcionava. Eram estes os curandeiros, pajés, mestres, sacerdotes ou, como se habituou denominar a todos esses nos dias de hoje, os xamãs. Alguns exemplos dessa prática são o consumo de cogumelos do gênero Amanita pelos sibérios e hindus durante a pré-história e o consumo de cogumelos do gênero Psilocibe pelos maias e astecas.

No entanto, o aparecimento das religiões judaico-cristãs modificou os paradigmas religiosos da humanidade. A crença passou a girar em torno de um único Deus, criador do Céu e da Terra, onipresente e onipotente, cuja palavra fora revelada e difundida por profetas e sacerdotes. Não cabia nessa crença a reencarnação ou contato com espíritos. Sob essa nova perspectiva importância das plantas psicoativas nos rituais religiosos desapareceu. 

A Igreja Católica medieval considerava tais ritos um desejo de contatar o demônio e punia rigorosamente os hereges que praticavam tais liturgias. A aceitação do Judaísmo, do Cristianismo e do Islamismo dentro dos limites dos antigos Impérios Persa e Romano baniu boa parte dos rituais religiosos extáticos da região.

FIGURA 2: O pitoresco: os nativos americanos pelo pincel europeu. O encontro do colonizador branco, fiel a um único Deus, com os nativos, panteístas e politeístas, provocou a emergência de novas religiões, que combinaram aspectos de ambas.

O peiote em dois momentos: in natura com vários botões e florescências [superior] e o mescal (botão seco) [inferior], modo pelo qual é consumido.

O peiote

O peiote (Lophophora williamsii) é um cacto capaz de adquirir diferentes formatos, de acordo da idade e das condições ambientais de crescimento. Em geral, desenvolvem-se de modo contíguo, a partir do nascimento de botões. A primeira ilustração científica apareceu em 1847. A planta contém um alcalóide alucinógeno, o 3,4,5-trimetoxifeniletilamina. Como os botões secos para o consumo são chamados de mescal, o alcalóide recebeu o nome de mescalina.

Os Grandes Descobrimentos reeditaram esse choque cultural. O europeu cristianizado encontrou civilizações que cultuavam diversos deuses e utilizavam plantas psicoativas para alcançarem experiências extáticas. O consumo de tais plantas foi duramente reprimido e valores cristãos, introduzidos. 

Entre os povos conquistados, alguns indivíduos, apesar de aceitarem a fé cristã como seu novo paradigma religioso, continuavam a cultuar suas raízes religiosas nativas. Outros aceitaram aparentemente a religião européia e praticavam seus rituais pagãos às escondidas. Houve, ainda, nativos cristianizados que reencontraram a fé de seus ancestrais tardiamente.

Entre as várias formas de sincretismo religioso que se estruturaram ao longo dos séculos de colonização européia na América, duas chegaram aos nossos dias de modo bastante organizado e complexo: a Igreja Nativa Americana e o Santo Daime. Santos católicos e o Cristo fundiram-se aos deuses, espíritos ancestrais e entidades da natureza, que compunham o panteão das divindades dos povos conquistados. Tal sincretismo não resultou apenas da vontade nativa de praticar sua religião, mas também devido às semelhanças entre ambas crenças.

A Igreja Nativa Americana

O peiote (Lophophora williamsii) é consumido milenarmente entre os povos nativos do México. Os astecas já conheciam suas propriedades alucinógenas e a utilizavam com propósitos religiosos. A civilização que se notabilizou pelo consumo da planta foram os huichóis. Os huichóis descendem dos astecas. Como habitavam os altiplanos mexicanos de Sierra Madre, permaneceram isolados por longos períodos da civilização hispânica e mantiveram mais fortes as tradições de seu povo, oriundas do período pré-colombiano. 

FIGURA 3: O caçador de peiotes e seu aparato. O ritual da coleta do peiote tem profundas raízes com a maneira como os caçadores primitivos viam o mundo. Os huichóis acreditam que o Criador encarnou no cervo e no peiote. O peiote simboliza o coração do cervo e por isso deve ser 'caçado' com uma flecha e comido cru.

FIGURA 4: O deus-cervo, encarnação do Criador. O coração do cervo é devorado pelos coites, irmãos mais velhos dos huichóis. Para essa civilização, o peiote simboliza o coração do cervo e comê-lo cru faz renascer o lobo que habita seu espírito. Autor: Jose Benitez Sanchez (http://www.math.csusb.edu).

Os huichóis, tal como os cristãos, acreditavam que seu Deus, por compaixão, viera à Terra para salvar seu povo. Para os cristãos, ele se mostrou na forma de um homem, que morreu, mas ressuscitou para salvar seu povo. Para os huichóis seu Deus morreu e reencarnou em forma de peiote, criado para dar mais sabedoria aos homens.

Os huichóis e os carrizos introduziram o hábito de consumir o peiote entre as tribos norte-americanas (Figura 5), em especial entre os comanches, que habitavam as planícies do Texas e Oklahoma. Esse encontro se deu por volta do século XVII e resultou no surgimento da Igreja Nativa Americana duzentos anos depois

FIGURA 5: Área habitada pelos huichóis e carrizos (vermelho) no final do século XIX e as prováveis rotas dos comanches pela região, através das quais entraram em contato com o consumo do peiote. http://www.history.uiuc.edu

Na transição para o século XIX, as tribos comanche e kiowa de Oklahoma encontravam-se em reservas indígenas. Outrora orgulhosas de seu passado guerreiro e autônomo, estavam naquela época vencidas e restritas a territórios demarcados. Nesse ambiente, o peiote começou a ser consumido por essas tribos. 

O intuito era buscar um contato com espíritos ancestrais, recuperar suas identidades culturais e revigorar os laços de união entre os membros da tribo. Influências cristãs compuseram os rituais do peiote, provenientes da ação de missionários religiosos presentes nas reservas indígenas. Em pouco tempo, não só os comanches e kiowas, mas também os delawares, caddos, cheyennes, arapahos, poncas, otos, pawnee, osage e outras tribos mais faziam rituais de peiote.

O grande difusor do peiotismo foi Quanah Parker (Figura 6). líder comanche de Oklahoma ajudou a espalhar o ritual do peiote para outras tribos do estado e conferiu a essa nova instituição um caráter intertribal. O rápido crescimento do peiotismo em Oklahoma e no Texas chamou a atenção dos missionários, que passaram a defender sua proibição. Os índios, no entanto, souberam se articular politicamente em seus estados e contaram com a ajuda de descendentes integrados à 'cultura branca', inclusive professores universitários.

Por volta da primeira década do século XX o peiotismo ganhou respaldo governamental para existir. Atualmente, há cerca de oitenta capelas espalhadas pelo país, congregando cerca de duzentos e cinqüenta mil pessoas. O canto em língua nativa é o principal modo de expressão dos cultos, acompanhado por instrumentos de percussão e entremeados por meditação. A cerimônia dura toda a noite e é acompanhada pelo consumo de peiote. A Igreja não possui clérigos. A Bíblia é lida em grupo e cada um a interpreta livremente. A moral é essencialmente cristã. O consumo de álcool é proibido para os membros do grupo.

FIGURA 6: Quanah Parker. Líder comanche do estado de Oklahoma, considerado um dos grandes difusores do peiotismo entre as tribos ameríndias dos Estados Unidos.http://www.history.uiuc.edu

FIGURA 7: Dois momentos da Igreja Nativa Americana: [à esquerda] comissão de peiotista reunida com o comitê médico durante a Convenção Constitucional de Oklahoma, que autorizou consumo do peiote no estado (1907) e [direita] capela da Igreja em Oklahoma durante os anos 50. http://www.history.uiuc.edu

A chacrona ou rainha [à esquerda] e o caapi ou cipó do jagube [à direita]

A ayahuasca

A palavra ayahuasca significa vinho da alma. A bebida possui dezenas de outros nomes, tais como iajé, cipó, daime, vegetal, caapi. Diversas plantas podem ser utilizadas, com o intuito de provocar reações específicas ou dependendo das tradições de cada tribo. Duas plantas, no entanto, são essenciais: o cipó do jagube (Banisteriopsis caapi) e a chacrona ou rainha (Psychotria viridis). 

A chacrona é rica em um alucinógeno denominado dimetiltriptamina (DMT). Uma vez no organismo, o DMT é destruído por uma enzima chamada monoaminoxidase (MAO). O cipó, no entanto, é rico em harmalina, que bloqueia a ação da MAO, potencializando a ação do DMT no cérebro.

O Santo Daime

O consumo da ayahuasca entre os povos indígenas da bacia amazônica está presente entre as tribos indígenas da bacia amazônica há cerca de 2000 anos. Não há evidências concretas acerca de sua origem. A palavra deriva do quéchua, idioma oficial do império inca, e significa vinho da alma. Os incas conheciam a ayahuasca e a utilizavam com propósitos místico-religiosos. Alguns acreditam que talvez tenham eles os responsáveis pela propagação do consumo da bebida entre outras tribos.

Uma lenda corrente (Figura 8) afirma que durante a invasão espanhola que marcou o fim do império inca, comandada pelo conquistador espanhol Francisco Pizarro (1532-1534), o imperador inca Atahualpa foi preso e assassinado. Um de seus irmão, o príncipe Hayauasca, se refugiou em Machu-Picchu e depois alcançou a floresta. Conhecedor do preparo da bebida sagrada dos deuses incas ensinou-o a outras tribos, que a batizaram com seu nome.

Mesmo havendo desacordo entre as evidências milenares de consumo e a lenda do príncipe Hayauasca, a lenda revela a importância da bebida como um elo de ligação entre os incas e seu passado glorioso (agora em ruínas) e a intenção de buscar um vínculo de união entre as nações subjugadas. Uma propriedade espiritual que nunca poderia ser tomada por qualquer conquistador.


FIGURA 8: A lenda a ayahuasca. Conhecida pelos incas há milhares de anos e considerada por esse a bebida sagrada dos deuses, foi levada a outras tribos da Amazônia pelo príncipe Hayauasca, que fugiu do massacre espanhol que vitimou seu irmão mais velho, o imperador Atahualpa.

 
FIGURA 9: O nascimento do Daime. O maranhense Raimundo Irineu Serra partiu rumo ao Acre seguindo o fluxo migratório dos retirantes da seca, rumo à extração da borracha amazônica. Na Basiléia (AC) integrou a Força Expedicionária do Marechal Rondon e entrou em contato com os povos indígenas e conheceu a ayahuasca. Segundo seus relatos, durante uma de suas experiência com a "bebida que causava visões" lhe apareceu Nossa Senhora da Conceição, que lhe ensinou os fundamentos da doutrina do Daime e o hinário. Tornou-se o Mestre Irineu.
FIGURA 10: Padrinho Sebastião. Assumiu a frente o movimento daimista após a morte de Mestre Irineu. Fundou a Vila Céu do Mapiá, centro religioso do Daime. Foi também o protagonista da popularização do culto pelo país.


O consumo da ayahuasca permaneceu vivo entre as tribos indígenas amazônicas, mesmo após a chegada dos conquistadores luso-espanhóis. O hábito, no entanto, continuava exclusivo das nações indígenas e era visto pela população das cidades e povoados como algo demoníaco, capaz de causar visões amedrontadoras e capazes de levar a loucura. 

Essa situação começou a modificar com a chegada do século XX (Figura 9). Nessa época, a extração da borracha se constituiu numa atividade altamente lucrativa e atraiu uma grande quantidade de retirantes da seca nordestina. Nesse mesmo período, o Brasil se preocupava em demarcar suas fronteiras e ocupar os territórios do norte do país. O Marechal Cândido Rondon realizou várias expedições à Amazônia, levando o telégrafo e fazendo contato com nações indígenas.

Nessa época, chegou à região da Basileia (Acre) um nordestino da cidade de São Vicente Ferrer (Maranhão) chamado Raimundo Irineu Serra, que buscava em posto na extração do látex (Figura 9). Irineu acabou por integrar a equipe do Marechal Rondon e entrou em contato com diversas tribos indígenas. Com elas, aprendeu a preparar a "bebida que causava visões". Ao consumi-la passou a ver cruzes, ao invés de imagens demoníacas conforme haviam lhe prevenido. 

Passou, então, a estudar a bebida. Durante uma de suas experiências apareceu-lhe uma mulher (Clara), que se dizia ser Nossa Senhora da Conceição, a Rainha da Floresta. A santa marcou um novo encontro com Irineu na floresta para dali a oito dias. Nesse período deveria apenas comer macaxeira insossa e tomar ayahusca. No oitavo dia, a santa retornou, entregou a Irineu os fundamentos da doutrina da ayahuasca e entregou a ele seu mundo espiritual.

Ao fundamentar o consumo da ayahuasca com base no cristianismo, mestre irineu passou a chamá-la Daime: "'daime' paz, 'daime' saúde, 'daime' felicidade!" A doutrina do Daime foi recebida pelo mestre na forma de hinos, que pregavam o amor à natureza e consagram o mundo vegetal e o planeta como o cenário sagrado da nossa mãe-terra. A conversão da ayahuasca em Santo Daime conferiu-lhe a bebida uma doutrina religiosa sincrética, com influências nativas, afro-brasileiras e cristãs. Sua popularização era apenas uma questão de tempo.

Em 1930, Mestre Irineu mudou-se para Rio Branco (AC), onde fundou a Igreja do Alto Santo. Em 1945, fundou o Centro de Iluminação Cristã Luz Universal (CICLU) , que chegou a congregar 500 membros efetivos. Permaneceu em Rio Branco até a sua morte, em 1971.

Se o Daime teve um fundador, teve também um difusor. Após a morte de Mestre Irineu, um de seus principais discípulos, o seringueiro Francisco Mota Melo continuou o trabalho do mestre (Figura 10). Em 1973, fundou na margem esquerda do rio Purus a comunidade Vila Céu do Mapiá e dentro desta organizou sua entidade religiosa, o Centro Eclético da Fluente Luz Universal Raimundo Irineu Serra (CEFLURIS). Com mais de 100 casas, o Mapiá é o hoje o centro do daimismo. 

Com a morte de Padrinho Sebastião, seu filho, Padrinho Alfredo, o substituiu. Padrinho Sebastião foi o responsável pela propagação do Daime na capital Brasília e nos estados da Paraíba, São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, além de países no exterior como Argentina, Chile, Estados Unidos, Alemanha, Holanda e Japão.

O presente artigo teve como intuito apontar exemplos vivos do consumo religioso de substâncias psicoativas. A cristianização de tais rituais atualizou sua linguagem e possibilitou a sobrevivência desses até os dias de hoje. O culto aos membros ancestrais, aos elementos da natureza e o desenvolvimento espiritual constituem o eixo central dessas religiões. 

Tanto o governo brasileiro quanto o norte-americano permitem o consumo da ayahuasca e do peiote, dentro do contexto religioso organizado por ambas. O surgimento de empreendimentos turísticos a esses locais e de apresentações sintéticas das substâncias (farmausca), fora do contexto religioso, vem chamando a atenção das autoridades, mas ainda não há resoluções claras nesse sentido.

FIGURA 11: Francisco Montes Shuña. A origem da ayahuasca e da chacrona.

Paulo César Amaringo. As janelas do Céu.

As mirações

A ingestão da ayahusca visa a proporcionar vidências, comunicação com espíritos, alívio físico e psíquico, curas, dentro de um ritual que não só estabelece um nexo entre o humano e o divino, como também uma unidade mais alta entre os membros do grupo. O ritual envolve todo o ciclo de vida das plantas, seu preparo pelos membros e o consumo grupal. A manifestação musical, através do canto dos hinários e o bailado, é o ponto central da liturgia daimista. As cerimônias se estendem por horas e o Daime é consumido ao longo da ocasião.

Êxtase da revelação, o momento em que o daimista recebe as visões, que são ao mesmo tempo consideradas reais e numinosas, é denominado mirações. É o momento em que o pensamento é sentido como uma vibração capaz de modelar, criar, curar e alcançar telepaticamente outras mentes e planos espirituais.

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