
Esse artigo foi escrito tendo como referência Antônio Escohotado. História de las drogas (vol. 1). Madrid: Alianza Editorial; 1996.
FIGURA 1: O homem do neolítico. Nas inscrições rupestres da região do Altai (Mongólia), o homem percebe-se dotado de uma capacidade suis generis, que o diferenciava de outras espécies. O poder de raciocinar lhe permitiu domesticar animais, entender o ciclo de vida das plantas e começar a imaginar a continuidade desta após a morte. http://www.rupestre.net/tracce/
O estado presente é algo que pode ser mantido pelo alimento ou modificado pelo fármaco.
Hipócrates
O alimento é vencido pelo corpo, o fármaco vence o corpo.
Galeno
Há muito, a ação modificadora da mente provocada pelas plantas psicoativas fora notada pelo homem. Mais do que isso, a qualidade de tal ação já pertencia a suas investigações. Com a descoberta da agricultura durante o período neolítico (9000 - 500 a.C.) as plantas adquiriram um papel central na vida do homem. Graças às plantas, a vida humana deixou de ser nômade e exclusivamente dependente das forças da natureza.
O homem percebeu que a vida se alternava em ciclos naturais. Provavelmente por volta desse mesmo período tornou-se comum entre as diversas culturas que se estabeleciam ao longo dos grandes rios o temor universal à impureza e o desejo de purificação ritual. Junto a esse temor e desejo reinava a idéia de que as enfermidades eram castigos divinos. Para os assírios shertu significava ao mesmo tempo doença, castigo e cólera divina.
Cientes agora do poderio dos deuses, os homens não podiam mais ficar de braços cruzados, esperando pela intervenção desses, capazes de espalhar pelo mundo pragas, doenças, secas e enchentes que ameaçavam diretamente sua vida. Era fundamental assumir um comportamento ativo frente a esse mal. Surgiu assim, o sacrifício. Essa instituição religiosa nunca mais deixou de acompanhar a cultura dos mais diferentes povos que viveram e vivem sobre a Terra.


FIGURA 2: O sacrifício humano entre os astecas. Uma maneira de garantir aos sobreviventes a prosperidade, aplacando a fúria dos deuses. O sacrifício de prisioneiros de guerra era uma forma de agradecimento e 'divisão' com os deuses de suas conquistas. http://pygmalionproject.tripod.com/princess.html
Os sacrifícios podem ser entendidos de duas maneiras: como uma forma de expiação dos males, isto é, para aplacar a fúria dos deuses e garantir a chegada de um futuro promissor, sem catástrofes naturais ou doenças; ou como uma forma de confraternização com o divino, um agradecimento pelas graças concebidas.
O primeiro caso aparece nas oferendas de alimentos, animais e mesmo vidas humanas em troca da sobrevivência daquele grupo. Esse 'truque' simbólico tinha como objetivo garantir uma aliança de paz entre os deuses e os homens. Em troca de alguma coisa, esses seres poderosos e onipotentes ajudariam, ou simplesmente não incomodariam a existência humana e suas obras agrícolas.
Já o segundo ainda é comum nos dias de hoje, mesmo que desprovido de apelo religioso. Um exemplo corriqueiro são as festas que se seguem às colheitas: festa da uva, festa do trigo, dentre outras. Nos Estados Unidos, o Dia de Ação de Graças é motivo de comemoração nacional. Além do culto religioso, em agradecimento à colheita farta daquele ano, refeições festivas comemoram a chegada do alimento, que os abastecerá durante todo o inverno.
Em meio a tudo isso, encontra-se um sacrifício animal: o peru, que simboliza a ocasião e tem presença obrigatória nas mesas das famílias norte-americanas. Apesar de hoje ser comprado congelado e temperado nas boas casas do ramo, o consumo do peru traz consigo o desejo do homem de participar de um ritual que não só estabelece um nexo entre o humano e o divino, como também uma unidade mais alta entre os membros do grupo.


FIGURA 3: Ambas modalidades de sacrifício estão presentes no ritual cristão de modo mais civilizado e simbólico. O sacrifício humano daquele que 'deu sua vida para nos salvar', converteu-se em uma cerimônia de confraternização, onde a carne tornou-se pão e o sangue tornou-se vinho. Cena Bíblica (Raimundo de Oliveira), 1964


A necessidade do homem de se relacionar com o divino e seu mundo aparentemente mágico, misterioso e ameaçador fez surgir a figura do feiticeiro, do curandeiro, do xamã, do sacerdote, do pajé e outros tantos nomes que designam uma só função: viajar pelo sobrenatural, absorver as impurezas e as enfermidades do mundo e trazer a seu grupo a esperança da vida, sem que para isso precisasse ser aniquilado ou sacrificado.
Encontra-se aí a relação entre as primeiras formas de religião e o consumo de drogas. Para se ter uma ideia, a palavra fármaco deriva do grego (pharmak) e significa aquilo que o poder de transladar as impurezas. A vítima dos sacrifícios oferecidos aos deuses (fosse ela vegetal, animal ou humana) era chamada pelos gregos de pharmakós. O alimento utilizado durante as cerimônias de comunhão era chamado de phármakon.
Essa última palavra passou a integrar a terminologia médica grega e chegou até nossos dias com o nome de fármaco, remédio, medicamento. Para os gregosphármakon era aquilo que poderia causar o bem ou o mal, a vida ou a morte. Nunca uma coisa ou outra. Esse conceito deixou de ser central quando se pronuncia a palavra fármaco nos dias hoje, mas todos sabem que qualquer fármaco pode trazer a cura quando utilizado 'conforme a prescrição médica', mas pode causar intoxicações e mesmo a morte se utilizado de maneira errônea.


FIGURA 5: Asclépio, deus grego da Medicina cuida de doentes em um de seus templos. O cuidado médico na Grécia era realizado por sacerdotes de Asclépio, que acreditavam que a doença era obra dos deuses. Um de seus discípulos, Hipócrates, discordou da ideia e iniciou uma medicina baseada na observação dos fenômenos da natureza.


FIGURA 6: O Bacanal. Exemplo clássico dos sacrifícios que intencionavam a comunhão com o divino. Com a chegada da primavera, os gregos interrompiam por cinco dias suas atividades e se entregavam a festas voluptuosas para comemorar a colheita da uva e agradecer ao deus do vinho, Baco, a chegada da bebida. Esses rituais, que permitiam aos homens um sobrevoo pelo mundo dos deuses, também eram uma válvula de escape para o estresse e o sofrimento cotidiano..
Até o aparecimento de Hipócrates não havia separação entre a técnica médica e a magia. Desse modo tudo aquilo que fosse capaz de modificar os estados de ânimo era considerado milagroso, um sinal do divino. As plantas capazes de proporcionar tal efeito passaram a ser tratadas pelos sacerdotes como enteógenas, ou seja, aquilo que engendra deus dentro de si, que gera o divino.
Até o aparecimento de Hipócrates não havia separação entre a técnica médica e a magia. Desse modo tudo aquilo que fosse capaz de modificar os estados de ânimo era considerado milagroso, um sinal do divino. As plantas capazes de proporcionar tal efeito passaram a ser tratadas pelos sacerdotes como enteógenas, ou seja, aquilo que engendra deus dentro de si, que gera o divino.
Essas plantas passaram a ser uma ferramenta fundamental para que os curandeiros realizassem suas operações lustrais, divinatórias ou de intervenção na realidade, pois para isso era preciso que alcançassem estados alterados da consciência. Não que tal consumo necessariamente se desse durante os rituais, mas pertenciam ao seu processo de aprendizagem espiritual.
O consumo de tais substâncias era capaz de excitar o corpo e aniquilar a consciência crítica. Nas palavras de Escohotado, a conjugação desse ato com a música e a dança "produziam um frenesi extático, que promovia a liberação do eu, cujo espaço era ocupado por um espírito tanto mais redentor, quanto menos se parecesse com a lucidez".
Essa forma de experiência é conhecida por possessão espiritual. Uma entidade se servia do corpo do sacerdote para comunicar aos homens coisas do ouro mundo que se repercutiam na realidade em curso. As substâncias utilizadas nesse tipo de ritual eram fundamentalmente sedativas (entorpecentes), como o álcool, o ópio e as plantas anticolinérgicas.



FIGURA 7: A possessão espiritual. O curandeiro acima podia ser possuído por espíritos animais. Tal poder, permitia-lhe aplacar a fúria desses seres (que de outro modo certamente recairia sobre os homens), ou utiliza-los em rituais curativos, divinatórios ou de purificação. Substâncias psicoativas eram utilizadas para desencadear esse transe de possessão. www.hermitagemuseum.com

FIGURA 8: Os citas, povos nômades da Ásia que atingiram a Europa no século IVa.C. utilizavam os cogumelos Amanita muscaria para alcançar o divino em rituais de confraternização extática.
Havia também, o consumo de drogas com a finalidade de buscar experiências extáticas. Entre essas, encontram-se os alucinógenos, como os cogumelos sagrados, que possuíam baixa toxicidade e grande atividade visionária. A ideia era produzir um transe capaz de possuir o divino e não ser possuído por ele. Ao invés de buscar informações espirituais capazes de postergar a morte, o êxtase tinha por objetivo alcançar na plenitude espiritual uma forma de ressurreição, de renascimento, um novo pacto com a vida.
Apesar de distante da realidade contemporânea, que aborda as drogas de maneira prosaica ou traduzida em alcaloides e mecanismos de atuação neurobiológicos, muitos dos rituais originados pelo consumo dessas substâncias permanecem vivos em nosso cotidiano e algumas religiões ainda aplicam o consumo de substâncias psicoativas para celebrar suas liturgias. A compreensão da maneira como a humanidade vem consumindo substâncias psicoativas ao longo dos tempos talvez amplie o entendimento contemporâneo sobre as drogas e auxilie na descoberta de soluções menos apaixonas e reducionistas para essa questão milenar.








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