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10/15/2014

Intoxicação Alcoólica Aguda

Geram preocupação clínica o uso e o abuso de drogas, e este comportamento é resultante de uma interação entre o indivíduo, sua cultura, sua sociedade, a farmacologia e a disponibilidade de certas substâncias.

Atualmente, uma das substâncias mais consumidas com a finalidade de induzir alterações da percepção, da emoção e do comportamento é o álcool etílico, ou etanol. As bebidas alcoólicas são produzidas com essa finalidade, sendo também uma fonte de calorias "vazias'' utilizada pelos grupos marginalizados. 

O local privilegiado para o encontro das consequências danosas do elevado consumo de álcool é o Serviço de Emergência. Aí defrontam-se com alarmante frequência tanto os episódios de intoxicação aguda, quanto intercorrências direta ou indiretamente relacionadas: acidentes de trânsito e atropelamentos, tentativas de suicídio, agressões, acidentes de trabalho, pancreatite aguda, crise de gota, hemorragia digestiva, coma hepático e tantas outras. 

Depreendemos daí ser absolutamente indispensável o entendimento dos aspectos clínicos, sociais e psíquicos do uso do álcool para o atendimento adequado a um número sempre crescente de pacientes. 

Aspectos farmacológicos 

O etanol é um líquido volátil, incolor, ingerido geralmente por autoadministração e é o principal álcool responsável pelos efeitos da alcoolização. Em média, ele é encontrado nas seguintes concentrações: cerveja — 2-6%; vinho — 12-20%; uísque — 43-50%; aguardente — 30-50%. 

O etanol é uma substância altamente difusível tanto em água quanto em lipídios. É rapidamente absorvido a partir do estômago e do intestino para a corrente sanguínea. Sua alta difusibilidade permite a penetração em todos os compartimentos aquosos do corpo, tanto intra quanto extracelulares, em equilíbrio. 

A concentração no sangue reflete a concentração em outras partes do organismo, podendo ser usadas como medidas indiretas as concentrações do ar alveolar e da urina. Dois a 10% do etanol ingerido são eliminados diretamente por difusão pelos rins e pulmões. O restante é metabolizado, sofrendo oxidação, principalmente pelo fígado. 

A velocidade de oxidação é constante para qualquer nível sanguíneo, sendo a quantidade oxidada por unidade de tempo proporcional ao peso corporal e ao fígado. No adulto, a velocidade média de metabolização é de 10 ml/hora ou em torno de 7-10 g de álcool/hora. No não-alcoolista são necessárias aproximadamente 20 horas para redução de um nível de 400 mg% para zero. 

Interações medicamentosas 

Deve-se ter sempre em mente que uma intoxicação alcoólica pode complicar-se pelo uso simultâneo, intencional ou inadvertido, de outras drogas, que muitas vezes atuam sinergicamente com o álcool nos seus efeitos depressores do SNC. Entre elas, destacam-se os sedativos, os hipnóticos, as drogas anticonvulsivantes, os antidepressivos, os analgésicos como o propoxifeno, e os opiáceos. O uso simultâneo de um hipoglicemiante oral pode determinar flutuações imprevisíveis na glicemia, tanto pelo efeito hipoglicemiante do álcool como pela redução da meia-vida da tolbutamida. 

O álcool pode aumentar o metabolismo dos agentes cumarínicos. Seu efeito irritante sobre a mucosa gástrica pode ser responsável pela incidência aumentada de sangramento (hemorragia digestiva alta), quando usado simultaneamente com o ácido acetilsalicílico. 

Dentre as interações, é de bastante importância prática a que ocorre com o dissulfiram, medicamento algumas vezes utilizado no tratamento do alcoolismo. Esta substância altera o metabolismo intermediário do álcool, causando acúmulo de acetaldeído. Os sinais e sintomas surgem 5 a 10 minutos após a ingestão do álcool. Os mais frequentes são: calor e rubor faciais, latejamentos cefálico e cervical, cefaleia pulsátil, dificuldade respiratória, náuseas, vômitos, sudorese, sede, dor torácica, hipotensão, fraqueza, vertigem, confusão mental etc. 

Em relação ao uso do dissulfiram, é importante frisar que a decisão do paciente de tomar ou não o remédio é fator essencial para o tratamento. A decisão de beber ou não passa a ser substituída pela decisão de tomar ou não o medicamento. 

No entanto, infelizmente é comum em nosso meio a utilização desta droga sem o conhecimento do alcoolista, misturada à comida e às bebidas, para impedir a vontade de beber. Em decorrência da administração da droga e sua interação medicamentosa com o álcool, podemos ter graves problemas cardiovasculares, inclusive com êxito letal. 

Fisiopatologia 

Segundo teorias biológicas, a compulsão de beber até a embriaguez depende de características inatas. A incapacidade de se restringir a uma ou mais doses, conhecida como perda do controle, resultaria de uma reação fisiológica em cadeia, acionada por uma quantidade inicial da droga. Por este ângulo, a perda de controle independeria da vontade, estando subordinada exclusivamente a mecanismos fisiológicos disparados pelo álcool. Sob este enfoque, cabe considerar o alcoolista como sendo vítima de uma doença. 

Tem sido estudada a hipótese de que o alcoolista se caracteriza por uma diferença geneticamente determinada na metabolização do álcool. A biotransformação hepática do acetaldeído seria determinada pela presença ou não de uma enzima (ainda em estudo), que tem maior ou menor afinidade pelo acetaldeído, responsável pela resposta biológica ao álcool. 

Segundo teorias da aprendizagem, alcoolistas são os que aprenderam a lidar com os problemas existenciais por meio do efeito do álcool, onde este pode adquirir propriedades reforçadoras muito potentes, que poderiam explicar a perda de controle. 

Sem negar a ocorrência de alcoolismo secundário, como epifenômeno de um distúrbio psíquico adjacente, a teoria comportamental privilegia a ideia do alcoolismo como comportamento aprendido, que pode desenvolver-se em qualquer pessoa. Um pressuposto muito divulgado é o de que os alcoolistas se caracterizam por determinados traços de personalidade, como dependência, insegurança, passividade e introversão. 

Não há, portanto, uma explicação universal para o alcoolismo. Na gênese desta complexa condição estão diferentes fatores de vulnerabilidade. Todos os que bebem têm a possibilidade de se tornarem alcoolistas. A maior ou menor probabilidade dependerá da interação dos diferentes fatores de vulnerabilidade. 

Sistema nervoso 

É a sede dos principais efeitos do álcool, onde age como potente depressor. Este efeito depressor tende a se iniciar nas áreas mais superiores, progredindo de modo descendente. Chama a atenção nas intoxicações graves o acometimento dos centro respiratório, vasomotor e termorregulador. Resultam daí quadros caracterizados por depressão respiratória, vasodilatação periférica, hipotermia e choque. 

Outro efeito importante da intoxicação seria a diminuição das catecolaminas liberadas com aumento transitório dos níveis circulantes, ocorrendo hiperglicemia, hipertensão leve e dilatação pupilar. 

Trato gastrointestinal 

O efeito da ingestão alcoólica no aparelho gastrointestinal se dá principalmente quanto às funções secretoras e de motilidade. Concentrações altas são poderosos irritantes da mucosa gástrica, levando à hiperemia congestiva e inflamação, e até mesmo a uma gastrite erosiva. Quanto à função hepática, segundo alguns autores, ela não estaria associada a alterações graves. Outros relatam supressão de gliconeogênese e redução da liberação de glicose, podendo levar à hipoglicemia. 

Rins 

Ação no nível do sistema neuroipofisário, inibindo a secreção do hormônio antidiurético. 

Quadro clínico e diagnóstico 

Os dados de anamnese são obtidos a partir do próprio paciente ou de seus acompanhantes. É importante saber a quantidade e o tipo de bebida ingerida, alimentação concomitante ou não, associação com outras drogas, assim como etilismo pregresso e existência de patologias associadas. 

O exame físico deve ser primeiramente direcionado para a avaliação das funções vitais e da necessidade de suporte, depois para os sinais de intoxicação aguda e posteriormente para evidência de patologias e sequelas de uso crônico de álcool. 

Para finalidades médicas, seria ideal a determinação da concentração do álcool no sangue, no ar exalado ou na urina. Respeitando as tolerâncias individuais, a regularidade e a quantidade de ingestão alcoólica, tem-se que: 

· Níveis baixos (50-150 mg%) provocam leves sintomas de intoxicação, com desinibição, euforia, descoordenação motora leve a moderada — estes níveis geralmente não exigem a intervenção do médico; 
· Níveis moderados (150 a 300 mg%) acometem o sistema límbico e o cerebelo, originando sonolência, instabilidade emocional, fala arrastada, ataxia e diminuição das respostas motoras; 
· Níveis acima de 300 mg% acompanham-se de depressão mais acentuada das áreas anteriormente citadas e mais do sistema reticular ativador ascendente. Aumentam as disfunções motoras e cognitivas; há diminuição progressiva do estado de consciência, com letargia, estupor e coma. 

Com níveis muito altos (em torno de 500 mg%), predominam o acometimento bulbar com aprofundamento do coma, hipotermia, hipotensão e depressão respiratória. A morte ocorre raramente, estando associada à ingestão concomitante de outros depressores e aos comas prolongados (8-10 h); ao ocorrer, geralmente sobrevém a morte por parada respiratória. 

Em alguns indivíduos hipersensíveis, pode ocorrer o que se denomina intoxicação alcoólica patológica, provavelmente associada à epilepsia do lobo temporal. Após uso de pequenas quantidades de álcool, manifesta-se agitação extrema, acompanhada de confusão mental, desorientação e, às vezes, grande violência. Geralmente segue-se amnésia. 

A constelação de dados da anamnese e do exame físico deve guiar a escolha dos exames complementares, laboratoriais e radiológicos. Testes como o hemograma, a análise da urina, glicemia, ureia e creatinina podem revelar grosseiramente anormalidades renais, hepáticas ou metabólicas. 

Os eletrólitos séricos devem ser monitorados nos pacientes que necessitam de hidratação parenteral. Medidas seriadas dos gases arteriais podem mostrar-se necessárias à avaliação e ao controle da função respiratória. 

Diagnóstico diferencial 

Cetoacidose diabética; intoxicações exógenas; acidentes vasculares cerebrais; traumatismos cranioencefálicos; hipoglicemia; outros comas metabólicos. O alcoolismo associa-se a inúmeros distúrbios do sistema nervoso central, cardiovasculares (arritmias, distúrbios de condução, hipertensão, miocardiopatia alcoólica), gastrointestinais, hematológicos, metabólicos, desnutrição, risco aumentado de infecção, interação com outras drogas, etc. 

Tratamento 

Intoxicação alcoólica não-complicada 

Não requer tratamento e geralmente segue-se uma recuperação completa. Os indivíduos que se mostrarem muito deprimidos deverão receber suporte psicológico até a recuperação, uma vez que se sabe que cerca de 25% das tentativas bem-sucedidas de autoextermínio se acompanham de níveis alcoólicos elevados. 

Estupor alcoólico

Geralmente é de curta duração e, caso os níveis vitais permaneçam estáveis, não se justificam medidas específicas. O paciente deve ser mantido em observação para sinais avançados de depressão do SNC. É útil a administração de tiamina — 100 mg, intramuscular. 

Intoxicação patológica

O tratamento do episódio agudo consiste na injeção muscular de benzodiazepínicos. O tratamento a longo prazo exige a total abstinência, somada à terapia anticonvulsivante, nos casos diagnosticados como epilepsia do lobo temporal. 

Intoxicação alcoólica sintomática

Caso o paciente esteja inquieto, hiperexcitado, agressivo, deve-se usar a contenção e, se necessário, devem-se empregar sedativos, com a cautela de não aumentar a depressão do SNC. Recomenda-se o diazepam, 10 mg IM, ou a clorpromazina, 25-50 mg IM. A hidratação parenteral deve ser instituída quando necessário, e fazendo-se com o uso de tiamina, 100 mg IM. 

Coma alcoólico

O tratamento do coma alcoólico é direcionado principalmente no sentido de manutenção das funções vitais. Se possível, o paciente deve ser monitorado e tratado em Centro de Terapia Intensiva, pois esta é uma condição que apresenta risco imediato de vida. Devemos pedir auxílio do laboratório para a correção adequada dos distúrbios metabólicos que se instalam quase sempre. 

Medidas gerais 

· Manter o paciente em decúbito lateral para evitar aspiração de secreções; 
· Aquecer o paciente; 
· Avaliar periodicamente sinais vitais e intervir de acordo com a necessidade; 
· Monitoração da PVC para reposição hídrica adequada; 
· Passar sonda nasogástrica para lavagem até seis horas após a ingestão, e para descompressão do estômago; 
· Manter vias aéreas permeáveis; 
· Oxigenoterapia, e em alguns casos intubação orotraqueal. 

Tratamento medicamentoso

Reposição de volume e eletrólitos. A hipotensão geralmente responde bem à expansão de volume e oxigenoterapia; uso de vasopressores (p. ex., Dopamina), caso haja persistência de hipotensão severa ou choque; soro glicosado a 5% — 40-80 ml EV; tiamina — 100 mg, IM; soro glicosado a 50% — 160-200 ml, associado a 20 mg de piridoxina, diluídos em 500 ml de soro glicosado isotônico, é preconizado para acelerar o metabolismo da droga; tratamento sintomático das crises convulsivas (se houver), com diazepam, 10 mg EV, com o devido cuidado para não deprimir ainda mais a respiração; bicarbonato de sódio — para corrigir a acidose, de acordo com a gasometria. 

Síndrome aguda de abstinência do álcool

Indivíduos dependentes de álcool que passam longos períodos bebendo podem desenvolver uma reação clínica severa, denominada síndrome aguda de abstinência do álcool, quando reduzem ou suspendem a ingestão alcoólica. Seus sintomas são produzidos por: hiperirritabilidade cortical e/ou descarga beta-adrenérgica do tronco cerebral. 

A hiperirritabilidade cortical resulta em desorientação, alucinações e convulsões, enquanto a descarga beta-adrenérgica do tronco cerebral leva a agitação, alterações vasomotoras e tremores. Os dois mecanismos não são firmemente associados, podendo haver predominância de um ou de outro padrão. 

Havendo concomitância de alterações corticais e de tronco cerebral, temos o tipo mais grave de abstinência alcoólica, que é o delirium tremens, sendo esta uma emergência médica com índice de mortalidade em torno de 15%, se não tratada adequadamente. 

Quadro clínico

Desorientação, alucinações, tremores, sudorese profusa, taquicardia e taquisfigmia, instabilidade de pressão e temperatura. Dores musculares, parestesias e crises convulsivas são frequentes. 

Tratamento 

Utilização de droga de ação prolongada que tenha tolerância cruzada com o álcool. Benzodiazepínicos são as drogas de escolha. Em casos moderados, clordiazepóxido, 75-100 mg VO, quatro vezes ao dia, e doses decrescentes subsequentes. Tem sido indicado o uso de benzodiazepínicos full dose na abstinência grave (isto é, 10 mg EV, seguidos de 5 mg EV a cada 5 minutos), até que o paciente esteja calmo. Às vezes são necessárias doses de até 100 mg para acalmar um paciente. Após acalmado, o paciente é mantido com 5 mg EV a cada quatro horas, podendo este esquema ser necessário por dois a quatro dias. Manter observação rigorosa dos sistemas respiratório e cardiovascular. 

· Nas crises convulsivas, utiliza-se o diazepam EV
· Reposição hidreletrolítica
· Tiamina
· Aquecimento do paciente
· Controle rigoroso de infecções (quase sempre presentes)
· Apoio físico e psicológico

Comunicação com o alcoolista 

O profissional de qualquer área, ao lidar com o alcoolista, precisa saber o quanto ele bebe e com que frequência, ou em que situações o ato de beber se torna inevitável. Tais questões, embora possam ser importantes para definir a intoxicação, não levam muito longe no que se refere à compreensão do problema. As causas ou explicações do alcoolismo estão enraizadas na vida sóbria da pessoa, ou talvez, melhor falando, no estilo de sobriedade do sujeito. Ele é excessivamente sóbrio entre uma intoxicação e outra. Ou pode ser que ele sofra por sua própria sanidade e lhe seja intolerável ser mais sadio do que as pessoas que o cercam. De qualquer forma, o estado alcoólico é uma espécie de corretivo para um determinado estilo de estado sóbrio. 

O estado sóbrio recebe a aprovação cultural, mas é insustentável para a pessoa, pois a coloca em uma realidade que a encara com seriedade talvez excessiva. A rendição à intoxicação é um atalho para uma alternativa mais ou menos bem-sucedida de um estado mental mais aceitável. 

O alcoolismo depende da existência de estados dissociados na pessoa. O alcoolista procura evitar a rendição ao álcool pensando por negativas, em vez de pensar por afirmativas. Neste ponto, podemos inferir algumas regras simples sobre o que comunicar ou não comunicar ao paciente para ajudá-lo um pouco, ou pelo menos para não aumentar a confusão interna em que ele já vive. Reforçar o estado sóbrio aumenta a necessidade de beber.

Se você convidar o alcoolista a ter "mais responsabilidade'' ou a "levar a vida mais a sério'', ele concordará com você. É isto mesmo que ele faz quando está sóbrio, e é isto que o leva a beber. Dá melhor resultado convidá-lo a uma "vida sóbria'' menos carregada de obrigações, deveres sociais, desafios etc. Solicitar que ele não beba é o mesmo que ordenar que ele beba. 

Há duas maneiras de fazer com que uma pessoa pense em vermelho: (a) sugerir que ela pense na cor vermelha e (b) solicitar que ela não pense na cor vermelha. Também há dois modos de se levar um alcoolista a beber: convidá-lo diretamente, ou pedir que ele não beba. 

Ajude-o a pensar por afirmativas; muitas vezes, fazemos o que dizemos que "não vamos fazer''. Economizamos muito das nossas energias quando traçamos as nossas metas dizendo, para nós mesmos ou para os outros, o que vamos fazer. O caminho das afirmativas é mais econômico. 

Se o alcoolista for ajudado a integrar seus estados dissociados, ele beberá mais controladamente. Para integrá-los, é necessário que ele seja capaz de apreendê-los simultaneamente. A tarefa da integração completa não é fácil, mas todo aumento de consciência dos dois estados lhe será benéfico.

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