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4/28/2014

Cocaína

História
A cocaína é extraída das folhas do arbusto da coca (Erythroxylon coca), mas só tem valor comercial quando refinada. A Erythroxylum coca possui gineceu constituído de três carpelos, cálice de cinco sépalas e corola de cinco pétalas. Suas folhas são alternadas, elípticas e pecioladas. Cocaína, benzoilmetilecgonina ou éster do ácido benzoico é um alcaloide usado como droga, derivada do referido arbusto, com efeitos anestésicos e cujo uso continuado, pode causar outros efeitos indesejados como dependência, hipertensão arterial e distúrbios psiquiátricos. A produção da droga é realizada através de extração, utilizando como solventes álcalis, ácido sulfúrico, querosene e outros.
A folha de coca (cujo consumo mesmo se em grandes quantidades, leva apenas à absorção de uma dose minúscula de cocaína) é usada comprovadamente há mais de 1200 anos pelos povos nativos da América do Sul. Eles a mastigavam para ajudar a suportar a fome, a sede e o cansaço, sendo, ainda hoje, consumida legalmente em alguns países (Peru, Bolívia) sob a forma de chá (a absorção do princípio ativo, por esta via, é muito baixa).
Os Incas e outros povos dos Andes usaram-na certamente, permitindo-lhes trabalhar a altas altitudes, onde a rarefação do ar e o frio tornam o trabalho árduo especialmente difícil. A sua ação anorexiante (supressora da fome) lhes permitia dispor de apenas um mínimo de comida durante alguns dias.
Inicialmente os espanhóis, constatando o uso quase religioso da planta, nas suas tentativas de converter os índios ao cristianismo, declararam a planta produto do demônio. O seu uso entre os espanhóis do novo mundo espalhou-se, sendo as folhas usadas para tratar feridas, ossos quebrados, e curar resfriados. A coca foi levada para a Europa em 1580.
Contudo a tentativa de cultivar a planta na Europa, naquela época, destruía a substância ativa contida nas folhas, perdendo todos os seus efeitos estimulantes. Esta razão foi responsável pelo esquecimento da substância nas publicações europeias dos séculos seguintes, até que na metade do século XIX foi conseguida a extração da substância pura, a cocaína, em forma de pó.
O alcaloide (cocaína) foi isolado das folhas de coca por Niemann em 1859 ou 1860, o que lhe deu o nome. No entanto, há boas razões para supor que foi antes Friedrich Gaedcke que a isolou pela primeira vez em 1855 ou 1856.
A apresentação aspirada produzia um efeito muito maior do que o observado na mascagem das folhas, tornando-se coqueluche no final do século XIX no Velho Continente – a primeira epidemia de consumo da coca. Ao mesmo tempo a medicina inventava um novo método para administração de remédios, a injeção. Assim, as principais formas de consumo na virada do século eram intranasal e intravenosa.
O seu uso espalhou-se gradualmente. Após visitas à América do Sul, cientistas italianos levaram amostras da planta para o seu país, onde o químico Angelo Mariani desenvolveu, em 1863 o vinho Mariani, uma infusão alcoólica de folhas de coca (mais poderosa devido ao poder do etanol que as infusões de água ou chás usadas antes). O vinho Mariani era muito apreciado pelo Papa Leão XIII, que inclusive premiou Mariani com uma medalha honorífica.
A Coca-Cola seria inventada em parte como tentativa de competição dos comerciantes americanos com o vinho Mariani importado da Itália. Continuaria desde a sua invenção até 1903 a incluir cocaína nos seus ingredientes e os seus efeitos foram, sem dúvida, determinantes no poder atrativo inicial da bebida.
A cocaína tornou-se popular entre as classes altas no fim do século XIX. Entre consumidores famosos do vinho Mariani contavam-se Ulysses Grant, o Papa Leão XIII, que até apareceu na publicidade do produto e Frédéric Bartholdi (francês, criador da Estátua da liberdade), que comentou que se o vinho tivesse sido inventado mais cedo teria feito a estátua mais alta.
A cocaína foi popularizada como tratamento para a dependência de morfina. Em Viena, Sigmund Freud, o médico criador da psicanálise experimentou-a em si e em seus pacientes, fascinado pelos seus efeitos psicotrópicos. Publicou inclusive um livro - Über Coca - sobre as suas experiências. Contudo acabou por se desiludir com a dependência a que foram reduzidos vários dos seus amigos. Foi ele que a forneceu ao oftalmologista Carl Köller, que em 1884 a usou pela primeira vez como anestésico local, aplicando gotas com cocaína nos olhos de pacientes, antes de serem operados.
A popularidade da cocaína ganha terreno: Em 1885 a companhia americana Park Davis vendia livremente cocaína em cigarros, pó ou liquido injetável sob o lema de "substituir a comida; tornar os covardes corajosos, os silenciosos eloquentes e os sofredores insensíveis à dor". O personagem fictício Sherlock Holmes (personagem de Arthur Conan Doyle) numa das histórias, chega mesmo a injetar cocaína na veia. Em 1909 Ernest Shackleton leva cocaína para a sua viagem à Antártica, assim como o Capitão Robert Scott.
Apesar do entusiasmo, os efeitos negativos da cocaína acabaram por ser descobertos. Com o uso da pelas classes baixas, inclusive nos Estados Unidos, o seu potencial de dependência e graves problemas para a saúde começaram a aparecer. Os alertas racistas no sul dos Estados Unidos sobre os "ataques a mulheres brancas que eram o resultado direto do cérebro do negro enlouquecido por cocaína" acabaram por resultar na regulação e posterior proibição da substância. Apesar dos motivos iniciais é consensual entre a comunidade médica que os elevados efeitos autodestruidores do consumo de cocaína são plenamente justificativos da proibição atual.
Em seguida, a sociedade foi obrigada a se confrontar com um imenso rol de complicações e consequências desastrosas do consumo de cocaína e em 1914 passou a ser proibida tanto nas Américas como na Europa. A sociedade moderna tomava consciência, pela primeira vez, do potencial destrutivo desta droga.
De uma forma extremamente interessante, a proibição surtiu efeitos importantes, e o uso da cocaína praticamente desapareceu por pouco mais de meio século. A cocaína ressurge no início da década de 1970, e surpreendentemente, ganha a reputação de droga segura e "light", a "vitamina dos anos ‘90". O resultado disto foi a explosão do consumo na América do Norte, atingindo seu pico em 1985 nos Estados Unidos da América e cinco anos mais tarde em nosso país. O Brasil passa a ser reconhecido como uma das principais vias de exportação da droga principalmente para a Europa.
Produção
Deve-se diferenciar a produção da cocaína em dois processos claramente distintos. Na produção industrial de refrigerantes a base de extrato de coca é um subproduto sob controle governamental, oriundo da "decocainização" do extrato, que finalmente apresenta dois fins: ou a destruição ou a comercialização controlada para fins de pesquisas biológicas, médicas e de síntese orgânica.
A produção por este processo é uma extração com soluções e solventes adequados, visando retirar o máximo possível da cocaína presente nas folhas de coca, visando a se chegar a uma concentração que seja permitida pela legislação dos diversos países onde os xaropes básicos dos refrigerantes a base de coca são consumidos.
A produção do alcaloide, historicamente, é a mesma hoje, em ambiente rústico, sendo usada pelos grandes produtores/traficantes de cocaína. Em recipientes (ou até mesmo buracos no chão, impermeabilizados) é colocada uma grande quantidade de folhas secas de coca, que a seguir, são maceradas com querosene.
Após a maceração, as folhas são removidas e transferidas para outro recipiente e mergulhadas em solução de ácido sulfúrico visando acidificar o alcaloide e formar sulfato de cocaína, higrina e outros compostos, solúveis em água. O líquido é então decantado e tratado com alguma substância alcalina, como o carbonato de amônio, o que resulta na pasta base, que é solúvel em solventes orgânicos e insolúvel em água.
A seguir, a pasta base é dissolvida em acetona ou éter etílico e com acréscimo de água, precipita a cocaína, que por filtração atinge elevado grau de pureza. Pela volatilidade, os solventes são completamente eliminados do pó obtido, não chegando a deixar aroma, critério fundamental para sua venda como cocaína pura.
Agora pura, será diluída com diversas substâncias, entre elas, destacadamente, as dificilmente detectáveis como lidocaína. Acrescenta-se também ácido acetilsalicílico, cimento branco, talco e até pó de vidro. Estima-se que a produção de 1 kg de pasta-base requer entre 600 a 750 kg de folha de coca, gasolina, ácido sulfúrico e cimento, dentre outros produtos.
Pó de cocaína.
A cocaína é um pó branco e cristalino (é um sal, hidrocloreto de cocaína). Pode ser consumida de várias formas, mas o modo mais comum é pela aspiração. Alguns consumidores chegam a injetar a droga diretamente na corrente sanguínea, o que eleva consideravelmente o risco de uma parada cardíaca irreversível, causada por uma overdose. A via intravenosa também é mais perigosa devido às infecções.
Mecanismo de ação
A cocaína, como grande parte das drogas, é metabolizada no fígado. Conjuga-se com etanol, presente nas bebidas alcoólicas, formando cocaetileno, ainda mais tóxico. É um inibidor da enzima MAO (monoamina oxidase), da recaptação e estimulante da liberação de noradrenalina e dopamina, existentes nos neurônios.
A dopamina e a noradrenalina são neurotransmissores cerebrais que são secretados para a sinapse, de onde são recolhidos outra vez para dentro dos neurônios por esses transportadores inibidos pela cocaína. Logo o seu consumo aumenta a concentração e duração desses neurotransmissores. Os efeitos são similares aos das anfetaminas, mas mais intensos e menos prolongados.
A noradrenalina e a adrenalina são neurotransmissora e hormônio respectivamente do sistema simpático (sistema nervoso autônomo). Elas são normalmente ativadas em situações de stress agudo ("lutar ou fugir") em que o indivíduo necessita de todas as suas forças, e agem junto aos órgãos de modo a obtê-las: aumentam a contração e frequência cardíacas, aumentam a velocidade e clareza do pensamento, destreza dos músculos, inibem a dor e aumentam a tensão arterial. O indivíduo sente-se invulgarmente consciente e desperto, eufórico, excitado, com mente clara e sensação de paragem do tempo. A cocaína é um forte potencializador do sistema nervoso simpático, tanto no cérebro, como na periferia.
A dopamina é o neurotransmissor principal das vias meso-límbicas e meso-estriadas. Essas vias têm funções de produzir prazer em resposta a acontecimentos positivos na vida do indivíduo, recompensando a aquisição de novos conhecimentos ou aprendizagem, progresso nas relações sociais, relações emocionais e outros eventos.
O aumento artificial da dopamina pela cocaína nas sinapses vai ativar anormalmente essas vias. O consumidor sente-se extremamente autoconfiante, poderoso, irresistível e capaz de vencer qualquer desafio, de uma forma que não corresponde à sua real situação ou habilidade. Com a regularização do consumo, as vias dopaminérgicas são modificadas e pervertidas ("highjacked") e a cocaína passa de facilitadora do sentimento de sucesso e confiança face às situações externas, para simples recompensa derivada diretamente de um distúrbio bioquímico cerebral criado pela própria droga.
O bem-estar desliga-se de condicionantes externas, passando a ser apenas uma medida do tempo passado desde a última dose. A motivação do indivíduo torna-se "irreal", desligando-se dos interesses sociais, familiares, emocionais, ambição profissional ou aprendizagem de formas de lidar com novos desafios, para se concentrar apenas na droga, que dá um sentimento de auto realização artificial, de intensidade impossível de atingir de outra forma.
Anestésico local
A cocaína também é um eficaz anestésico local simpatomimético, tendo sido o primeiro do grupo a ser usado, e ainda em uso hoje em algumas cirurgias respiratórias. O mecanismo desta ação é totalmente diferente da ação psicotrópica. Ela é um bloqueador dos canais de sódio nos neurônios dos nervos periféricos.
O influxo de sódio desencadeia o potencial de ação e sem esse influxo são incapazes de enviar os seus impulsos. Os nervos sensitivos são geralmente os primeiros a ser bloqueados. A cocaína tem vindo a ser substituída por outros fármacos não psicotrópicos e sem outros efeitos adversos, mas com a mesma função. Ela apresenta efeitos secundários devido à quantidade que extravasa para o sangue, provocando estimulação simpática (hipertensão, taquicardia) e mesmo convulsões.
Efeitos tóxicos
·        1ª fase – Euforia cocaínica: excitação, hipersexualidade, inapetência, hipervigilância, instabilidade emocional, insônia.
·        2ª fase – Disforia cocaínica: angústia atroz, inapetência, insônia, indiferença sexual, apatia, tristeza, melancolia, agressividade.
·        3ª fase – Alucinose cocaínica: alucinações (visuais, auditivas, táteis, olfativas), excitação psicomotora, indiferença sexual.
·        4ª fase – Psicose cocaínica: ilusões paranóides, mania de perseguição, insônia, depressão, tentativas de suicídio e homicídio, alucinações (auditivas e olfativas), hipervigilância.
Os sintomas da 4ª fase são comuns entre usuários de grandes doses de cocaína, e mais ainda naqueles que fazem uso da associação álcool-cocaína. O dependente faz associação com outras drogas, como o álcool e tranqüilizantes, para contrapor efeitos excessivamente estimulantes da cocaína.
A cocaína é talvez a droga mais sujeita a sofrer adulteração. Para aumentar a quantidade se adicionam lactose, talco, bórax, laxantes ou quaisquer outros produtos que se pareçam com a cocaína e não apresentem efeitos colaterais perceptíveis. Para compensar a perda de potência se adicionam anfetaminas em pó, novocaína, benzocaína e outros. Também cafeína, ácidos e analgésicos tem sido encontrados. Em geral chega ao consumidor final com apenas cerca de vinte por cento de cocaína.
A tendência do usuário é aumentar a dose de uso na tentativa de sentir efeitos mais intensos. Porém essas quantidades maiores acabam por levar o usuário a um comportamento violento, irritabilidade, tremores e atitudes bizarras devido ao aparecimento de paranoia. Eventualmente podem ter alucinações e delírios. A esse conjunto de sintomas dá-se o nome de "psicose cocaínica". Além desses sintomas, perdem de forma muito marcante o interesse sexual.
Os efeitos são os mesmos provocados pela cocaína utilizada por outras vias. Assim, podem produzir uma dilatação das pupilas (midríase), afetando a visão que fica prejudicada, a chamada "visão borrada". Ainda pode provocar dor no peito, contrações musculares, convulsões e até coma. Mas é sobre o sistema cardiovascular que os efeitos são mais intensos. A pressão arterial pode elevar-se e o coração passa a bater muito mais rapidamente (taquicardia).
Em casos extremos chega a produzir uma parada cardíaca por fibrilação ventricular. A morte também pode ocorrer devido à diminuição de atividade de centros cerebrais que controlam a respiração. O uso crônico da cocaína pode levar a uma degeneração irreversível dos músculos esqueléticos, chamada rabdomiólise.
O consumo intranasal de cocaína produz seus efeitos entre 1 e 2 minutos após o uso, tendo duração de 30 minutos, em média. Tanto o uso endovenoso como o fumado produzem efeitos quase imediatos, porém estes se dissipam mais rapidamente (até 10 minutos), muitas vezes obrigando o indivíduo a voltar a utilizar a droga após 5 minutos. Os metabólitos (produtos ou "restos" do uso da substância ativa) podem ser detectados alguns minutos após poucas aspirações (ou injeção), permanecendo por até três dias.
O efeito imediato esperado pelo consumidor é a euforia produzida pela cocaína. Conjuntamente com a estimulação produzida, dá a falsa sensação ao indivíduo de aumento de suas capacidades físicas, intelectuais e energia. Diminui o apetite e a necessidade de sono, o indivíduo fica mais ansioso e às vezes passa a suspeitar que está sendo observado ou perseguido.
Usuários contam que a sensação do tato torna-se mais intensa, bem como a disposição para manter relações sexuais. A cocaína pode promover até ejaculação espontânea, dependendo da dose e da via utilizada. Este efeito repetido, porém, tem como consequência, em muitos usuários, a perda da capacidade de obter prazer sexual convencional, que se mantém por meses ou anos após a interrupção do consumo da droga. Diminuição do desejo sexual é observado em usuários crônicos de ambos os sexos.
A euforia se transforma rapidamente em depressão e irritabilidade, aumentando a necessidade de voltar a "esticar" mais uma carreira. O sujeito passa a ter uma autoconfiança irreal, podendo ainda apresentar alucinações (auditivas e visuais) e delírios de perseguição, indistinguíveis da patologia psiquiátrica (p. ex. Esquizofrenia).
Outros sintomas físicos do consumo são observados: constrição dos vasos sanguíneos (desaparecimento de veias), aumento da temperatura corpórea, liberação de açúcar no sangue, e aumento da força da contração do músculo cardíaco. Quando os efeitos da droga se dissipam, o usuário apresenta sintomas contrários (depressão, angústia, etc.), levando-o ao desespero por uma nova dose ("fissura" – característica mais proeminente de todas as formas de consumo da cocaína).
Identificando um usuário de cocaína
Podemos dizer que identificar um usuário é tarefa muito simples: quem toma um cafezinho, bebe uma cervejinha, fuma um cigarrinho e toma um remedinho (por conta própria ou por indicação médica), é usuário de droga! Esta afirmativa pode parecer um tanto quanto estranha, pois costumamos fazer as seguintes associações:
·        droga = substâncias ilícitas (maconha, cocaína etc.);
·        usuário = dependente (popularmente chamado de viciado, drogado etc.).
Alguns podem argumentar que as substâncias ilícitas são mais perigosas e prejudiciais do que as lícitas (álcool, cigarro etc.). Mas com base em quê? Por exemplo, o que é pior: uma pessoa usar maconha ou álcool? Se analisarmos as situações a partir da substância, já saberemos a resposta. Se tomarmos como referência o tipo de relação que o usuário mantém com a droga, a análise já será diferente.
Se imaginarmos um uso constante, em quantidades relativamente altas, enfocando prejuízos orgânicos causados pelo uso crônico, síndrome de abstinência, incapacitação social e riscos de overdose, comparados entre as duas substâncias, a posição relativa das drogas, mudará drasticamente.
No livro "Drogas: subsídios para uma discussão" fazem uma comparação dos prejuízos causados a curto e em longo prazo, por cinco substâncias sobre as quais existe mais discussão: cigarro, álcool, maconha, cocaína e heroína.
Ao invés de nos preocuparmos em identificar um usuário, seria muito mais adequado procurarmos olhar para o ser humano, ou seja, entender como ele pensa, o que sente, o que deseja, o que o preocupa, quais as suas necessidades. Sem pré-julgamentos, sem preconceitos, sem medo. Mas como disse Andrade: "O difícil é olhar de perto. Afinal a exclusão esconde o insuportável". E o insuportável é aquilo que, mais intimamente, dentro de nós, evitamos ter contato.
Quando suspeitamos que alguém usa droga ilícita, procuramos alternativas para lidar com a situação da melhor maneira possível. Podemos conversar com a pessoa ou solicitar a orientação de um profissional. Às vezes buscamos soluções mágicas como, por exemplo, uma lista de sinais de uso de drogas. Mas o que fazer com as informações contidas nessa lista?
Mesmo que nos auxiliem a identificar um usuário, o que fazer com essa descoberta? E então perguntamos: essa lista serve para quê? Muita vezes acaba sendo utilizada como pretexto para que nos tornemos detetives ou espiões capazes de invadir a privacidade do outro. Serve, portanto, como um paliativo para diminuir a angústia que se tem pelo desconhecido.
E o desconhecido não se refere apenas às drogas ilícitas - embora essas despertem certa curiosidade, acompanhada por uma sensação de mistério decorrente do mito que se criou em torno delas - nem muito menos às lícitas, já que são aceitas socialmente e seu uso é estimulado. O desconhecido é o ser humano, com sua enorme complexidade. Somos nós mesmos. É o outro diferente de mim.
Várias podem ser as causas dos sinais listados para reforçar nossa capacidade de rotular, estigmatizar e discriminar aquele que é diferente, ou seja, que foge daquilo que chamamos de normalidade. Não nos interessa, portanto, saber quais os sinais para identificar quem é usuário. Devemos nos interessar em saber o que o uso de drogas (lícita e/ou ilícita) está sinalizando.
Pode, por exemplo, ser uma das respostas (às vezes a única) para problemas individuais, familiares e/ou sociais ou, ainda, uma experiência que faça parte das descobertas e do crescimento do ser humano. Assim, um uso constante de qualquer substância não deve ser ignorado nem banalizado, tal como habitualmente fazemos quando se trata das drogas lícitas. De outro lado, uma experiência com droga ilícita não deve ser tratada com pânico nem desespero.
Investir no diálogo, em relações de respeito e confiança não evitará que as pessoas usem drogas (lícitas e/ou ilícitas). Porém, teremos a garantia mínima de um espaço aberto para a comunicação, o qual será útil para o encaminhamento mais adequado da questão.
Afinal, quem usa drogas são os seres humanos. Portanto, como tais, devem ser respeitados em sua subjetividade e individualidade.
A mulher e a cocaína
Até pouco tempo atrás, pensava-se que todos os dependentes eram iguais e assim formariam um grupo homogêneo. Somente nos últimos 25 anos os serviços de tratamento perceberam a necessidade de identificar subgrupos de dependentes, com a finalidade de ajustar as propostas terapêuticas para cada subgrupo.
Com o aumento da procura de tratamento por pacientes do sexo feminino foram verificadas características diferenciais, próprias desta população. O consumo de álcool e drogas em mulheres carrega um estigma social e moral mais intenso; as mulheres costumam procurar tratamentos médicos clínicos ao invés de serviços especializados em tratamento de dependência química. Suas razões para início e manutenção do consumo são diferentes (p.ex. os homens costumam consumir com amigos e a mulher, sozinha), bem como o impacto das drogas sobre sua saúde.
Também é mais frequente encontrarmos comorbidade psiquiátrica (associação de transtornos psiquiátricos, principalmente depressão, com abuso e síndrome de dependência) em mulheres do que na população dependente masculina, demandando tratamento associado de ambos quadros clínicos. O organismo da mulher, mais frágil ao impacto da cocaína, sofre com maiores alterações hormonais, que acarretam desde produção de leite até ausência dos ciclos menstruais.
As complicações clínicas costumam ser precoces. A associação de gravidez com o consumo de cocaína é terrível. A cocaína atravessa rapidamente a placenta, exercendo todos os seus efeitos sobre o feto (hipertensão, constrição de vasos sanguíneos, etc.), levando à falta de oxigenação e suprimento de sangue adequado.
Recém-nascidos de gestantes consumidoras apresentam diversas complicações que incluem baixo peso ao nascimento, morte logo após o parto, malformações (genitais, urinárias, redução do tamanho do cérebro, entre outras), hemorragia cerebral, alterações de padrão de sono, diminuição de alimentação, aumento de reflexos e disfunções musculares. Estas últimas podem durar até 3 meses após o parto.
Uma parcela das mulheres dependentes de cocaína se engaja em prostituição como forma de obtenção de droga. O inverso também parece ser verdadeiro, havendo uma alta prevalência de prostitutas que consomem cocaína, álcool e outras drogas. Problemas relacionados à impulsividade, dificuldades interpessoais e dificuldade no julgamento foram associados às dependentes de cocaína.
O que fazer
·        Prover possibilidade de cuidados para os filhos, no mínimo durante os momentos que a paciente se encontra em contato com o serviço de tratamento.
·        Identificar rapidamente padrões de consumo compulsivo (ou abuso/dependência) de medicações prescritas, que dificultam o engajamento da paciente no processo de recuperação e mudança do estilo de vida (por exemplo, "calmantes").
·        Estímulo intensivo da autoestima, geralmente mais abalada do que na população dependente do sexo masculino.
·        Modelagem dos papéis sociais da mulher (por exemplo, familiar e ocupacional).
Cocaína e Adolescência
O período que abrange o final da adolescência até o início da idade adulta é a fase da vida em que existe maior risco para o início do uso de cocaína. A adolescência é considerada uma fase crítica da vida do indivíduo, onde ocorrem diversas modificações internas (características da personalidade) e externas, como por exemplo, o surgimento de caracteres sexuais secundários.
O indivíduo se afasta dos pais e aproxima-se de colegas e amigos, fazendo uso da "liberdade" conquistada (de forma gradativa ou abrupta). Esta fase também é reconhecida como tendo um grande componente de ansiedade e estresse. O adolescente apresenta também uma tendência natural para o envolvimento em situações de risco. A dificuldade na previsão de consequências no futuro faz com que o indivíduo jovem viva exclusivamente o "aqui e agora". Estes fatores parecem contribuir para a experiência de álcool e drogas, particularmente a cocaína em nosso meio.
O indivíduo jovem busca, então, ser admitido em um grupo social de "iguais", o que inclui a aquisição dos comportamentos deste grupo, e a experiência de álcool e drogas é um dos principais comportamentos. A cocaína ocupa a 8ª posição entre as drogas de abuso no Brasil, tendo seu consumo quadruplicado nesta população.
Um levantamento aponta o crescimento do consumo ao longo da vida, bem como o aumento de usuários "pesados" nesta população. O crescimento do uso durante algum momento na vida do estudante de primeiro e segundo grau foi da ordem de 80%, indicando a importância do problema do consumo dessa droga entre adolescentes. Entre os adolescentes em tratamento no Hospital das Clínicas em São Paulo, a cocaína é a segunda droga mais consumida, perdendo apenas para a maconha.
A adolescência é considerada como um período crítico para o surgimento de complicações pelo consumo de substâncias psicoativas. Adolescentes tem progressão mais rápida do consumo e de seus resultados danosos. Os prejuízos que o consumo acarreta levam a consequências de difícil reversão: interrupção do desenvolvimento da personalidade, resultando em deficiências futuras do funcionamento do indivíduo.
O consumo afeta o desenvolvimento das funções sociais, bem como o estabelecimento de relações interpessoais (p.ex. afetivas). Este quadro torna o consumo de álcool e drogas nesta população um problema ainda mais catastrófico do que o observado em indivíduos na fase adulta. O tratamento, portanto, deve ter início o quanto antes.
Outro problema para os adolescentes é representado pelo modelo assistencial, que vem sendo desenvolvido neste século voltado à população adulta. Isto resulta em dificuldades intrínsecas para a obtenção de sucesso terapêutico. Adolescentes dependentes têm, por exemplo, poucas (ou nenhuma) atividades alternativas ao consumo de álcool e drogas, e inúmeras vezes só tem relacionamentos com outros usuários, traficantes e dependentes.
Os objetivos terapêuticos do tratamento da população de jovens devem incluir propostas de mudança global do funcionamento do indivíduo e de seu estilo de vida, desenvolvimento de valores "saudáveis", atitudes e comportamentos que propiciem a interação social positiva e esforço para a reabilitação ocupacional (escola, preparação vocacional, etc.), de forma ainda mais intensiva que para a população adulta.
O tratamento deve ter a orientação para a abstinência total e de todas as drogas (álcool também), da mesma forma que deve ocorrer na população adulta. Porém esta tarefa é muito mais difícil para o adolescente, pelo fato de não dispor, ainda, de um sistema de suporte social (trabalho, relações afetivas, etc.). A família constitui a única exceção.
Muitos usuários começam a utilizar cocaína durante o período acadêmico, e uma parcela deste grupo passa a consumir a droga também em outras situações, mantendo e agravando o consumo, propiciando as condições ideais para o desenvolvimento da dependência.
Universitários, que se encontram na fase de vida imediatamente posterior à adolescência irão, em futuro breve, constituir a massa crítica da nação. Em nosso país a situação também merece cuidados especiais; estudo realizado na Universidade de São Paulo detectou taxas de até 8% de consumo de cocaína na população estudante.
A melhor abordagem do problema, apresentando também a melhor relação custo-benefício possível é a prevenção ao abuso de drogas. Prevenir significa desenvolver programas junto às comunidades, pesquisando as características próprias de cada uma delas e, de acordo com suas particularidades, elaborando estratégias para evitar tanto o início do consumo como o caminho rumo aos transtornos decorrentes das substâncias psicoativas (abuso e dependência). Estes programas há muito já se fazem necessários para a efetiva abordagem do problema do consumo de drogas entre adolescentes. Entretanto, ainda estão longe de atender de forma abrangente todos que deles necessitam.

Cocaína e a família

Familiares compartilham genes que podem contribuir para o abuso de drogas. Isto é verificado na dependência do álcool, quando se observa que gêmeos separados ao nascimento têm grande concordância no diagnóstico de dependência de álcool quando atingem a adolescência ou a idade adulta. Por outro lado, familiares também compartilham o mesmo meio ambiente, cultura e eventos vitais, havendo a possibilidade da aprendizagem de comportamentos, inclusive de consumo de álcool e drogas. Com a cocaína acontece o mesmo.
A dependência de substâncias psicoativas é definida como um transtorno individual. Muitos especialistas aceitam, porém, o conceito da dependência como doença familiar, por atingir diretamente não só o usuário, mas aqueles que o cercam. As reações familiares à dependência abrangem um enorme leque que vai desde a expulsão de casa até a aceitação do consumo dentro do ambiente familiar.
Costumamos denominar este último de "facilitação" (favorecimento de comportamentos e atitudes relativos ao consumo de drogas), que sempre acarreta consequências desastrosas. Embora compreensível que o familiar utilize qualquer tipo de drogas dentro de casa (geralmente para evitar as complicações legais), estimula os múltiplos comportamentos relacionados à intensificação do consumo, aceleração do desenvolvimento da dependência, dificuldade de trazer o indivíduo para o tratamento e ocorrência de complicações precoces (físicas, psicológicas e sociais).
Entre os principais exemplos de facilitação encontram-se a liberdade excessiva, a preocupação em ocultar as falhas que o usuário apresenta (desculpas para a escola, trabalho, etc.), falta de limites (dinheiro, horários, aceitação de agressividade) ou mesmo "fechar os olhos" para as demais consequências que passa a criar quando se torna abusador ou dependente.
A família necessita participar ativamente do tratamento e do processo de recuperação do dependente, como núcleo de suporte fundamental do indivíduo. Esta tarefa, porém, não é nada fácil, dados os prejuízos sofridos pelos familiares durante o curso da dependência do álcool e/ou drogas (agressões, furtos domésticos, doenças do paciente, etc.). Para tanto, paralelamente ao tratamento individual, uma intervenção terapêutica familiar é sempre aconselhável.
Complicações do consumo de cocaína
1.    Decorrentes dos efeitos próprios da droga: complicações físicas e psiquiátricas;
2.    Decorrentes das substâncias adicionadas à cocaína (adulterantes);
3.    Decorrentes da via de consumo utilizada;
4.    Decorrentes do estilo de vida do usuário de cocaína.
As consequências do consumo vão desde um ligeiro sangramento nasal após um uso isolado, até comprometimentos irrecuperáveis e morte. Alguns dos mais dramáticos comprometimentos da cocaína ocorrem sobre o sistema cardiorrespiratório. Angina de peito, infarto agudo do miocárdio e aumento do volume cardíaco são os efeitos mais proeminentes observados sobre o coração.
Usuários crônicos apresentam capacidade respiratória reduzida e maior dificuldade de transporte de oxigênio. Um quadro agudo decorrente do fuma-la é dor intensa no peito, falta de ar e tosse sanguinolenta. Frequentemente o indivíduo se queixa de impotência sexual, incapacidade de ejaculação ou de obter o orgasmo.
Tentativas de suicídio são comuns entre usuários de grandes doses. As oscilações entre a euforia produzida pelos efeitos da droga e a depressão posterior estão relacionadas às tentativas, bem como o próprio estilo de vida do indivíduo.
Outros problemas comuns são infecções de pele (injeções contaminadas), infecção na válvula cardíaca, AIDS e hepatite. A pele infectada se apresenta inchada, dolorida, avermelhada e quente; febre e calafrios podem ser indicativos de que a infecção atingiu o sangue e/ou outros órgãos (Sepsis). Esta é uma consequência letal se o indivíduo não for submetido a tratamento imediato. O uso por via intravenosa transmite essas complicações de um usuário para outro.
As lesões no fígado também decorrem do uso da cocaína e podem ainda causas tóxicas agravadas pelas substâncias adicionadas, somando-se aos efeitos do álcool que é consumido conjuntamente.
Endocardite bacteriana é a denominação médica para a infecção sobre as válvulas cardíacas. Bactérias encontradas na própria pele do usuário ou na água utilizada para diluir a droga, são injetadas conjuntamente com a coca e encontram dentro do coração um local seguro para se instalar e reproduzir. As válvulas cardíacas passam a ter o funcionamento prejudicado, com dificuldades para deixar passar o fluxo de sangue ou ainda não conseguindo evitar que o sangue bombeado pelo coração reflua.
Dependência de cocaína
A cocaína não tem síndrome física bem definida (como por exemplo o da heroína), no entanto os efeitos da sua privação não são subjetivos. Após consumo durante apenas alguns dias, há universalmente: depressão (muitas vezes profunda), disforia (ansiedade e mal estar), deterioração das funções motoras, elevada perda da capacidade de aprendizagem, perda de comportamentos aprendidos. A síndrome psicológica da cocaína é extremamente poderosa. Ha comprovações obtidas através de estudos epidemiológicos de que a cocaína é muito mais viciante que a maconha (cannabis), o álcool ou o tabaco.
O estilo de vida do usuário crônico predispõe a complicações de outra ordem. É mais comum que também utilize álcool e outras drogas, podendo desenvolver dependência a estas. Dependência de mais de uma substância representa potencialização dos efeitos danosos de cada uma e eventualmente, comorbidades.
O usuário crônico se engaja em atividades ilícitas para obtenção da droga e manutenção do consumo. O envolvimento criminal, por sua vez, resulta muitas vezes em acidentes e homicídios, que podem ser considerados também como complicações do consumo da droga, além de suicídio, citado anteriormente.
Nenhum dependente de cocaína, ao iniciar o consumo, tem a intenção de se tornar dependente da substância. No entanto, não existe um limite nítido entre o início do consumo, o uso continuado e o desenvolvimento dos transtornos decorrentes do uso da droga (principalmente Síndrome de Dependência).
A experiência da cocaína se desenvolve sempre em um meio (contexto) social definido, promovendo efeitos estimulantes e euforia pronunciada. Nenhuma das consequências negativas do consumo está presente (nos primeiros meses de consumo ocasional), parecendo ao usuário iniciante que os avisos e informações que tinha sobre a droga antes da primeira experiência foram exagerados ou simples "propaganda enganosa".
Em busca dos efeitos iniciais, o consumo da cocaína continua; o sujeito passa a visitar outros usuários com mais frequência, dando a desculpa que "estes são verdadeiros amigos" por compartilharem sensações e prazeres semelhantes, diferentes dos amigos "caretas" de antigamente.
Pela primeira vez acontece a compra da cocaína de um destes amigos, e o consumo se intensifica. Até este momento poucos efeitos negativos são evidentes. A família nota alguma mudança, mas como o indivíduo mantém (quase) todas as suas atividades anteriores (trabalho, estudo, pernoitar em casa, etc.), a desconfiança muitas vezes não é revelada ao usuário; este se sente ainda mais confiante, também pelas próprias características da droga.
Mais um período de consumo e entra em contato com fornecedores de quantidades maiores, traficantes (outros usuários que mantém seu consumo por meio de comércio de pequenas quantidades da droga). Descobre, então que quando adquire maior quantidade ocorre um barateamento de seu consumo; compra grande quantidade "para usar ao longo do mês"; infalivelmente consumindo em período muito menor.
Algumas consequências negativas já são evidentes, mas sua importância é muito menor do que o prazer obtido pelo consumo da substância. "Perco de um lado, mas ganho de outro", pensa o usuário, já atrelado ao caminho determinado pela droga. Podem começar a ocorrer episódios de consumo de grandes quantidades durante várias horas ou alguns dias, as orgias de consumo ("binges"). Neste ponto suas atividades e atribuições anteriores ao consumo já sofrem de negligência importante, contribuindo ainda mais para o retorno ao consumo.
A situação tem a gravidade intensificada, e o usuário muito se assemelha ao camundongo de laboratório que fornece aos pesquisadores inúmeras informações sobre as drogas de abuso, passando a consumir compulsivamente a despeito das evidências claras de prejuízos sobre sua vida e daqueles que o cercam. Neste ponto qualquer pessoa identifica o dependente de cocaína.
O fator mais relevante deste pequeno exemplo, de um dos padrões de consumo que evolui para a Síndrome de Dependência, é que o indivíduo não necessita chegar a este estado terminal para ser considerado dependente. Qualquer pessoa concorda que muito antes disto o indivíduo perdeu a sua capacidade de controlar o consumo de cocaína. A perda deste controle parece ser o fato central do estabelecimento do estado de dependência; a cocaína passa a controlar o indivíduo, e não o contrário, que ocorreu no momento da experiência inicial.
Quanto mais cedo se detecta a dependência maior o sucesso que intervenções terapêuticas podem obter. Com este último conceito como foco tanto a Organização Mundial de Saúde (OMS), como a Associação Psiquiátrica Norte-americana (APA), estabelecem critérios que direcionam o diagnóstico da Síndrome da Dependência, com o intuito de diagnosticar precocemente este transtorno de enorme custo social.

Critérios diagnósticos da Síndrome de Dependência

A dependência é uma síndrome, cujos sintomas se manifestam em áreas de funcionamento social, psicológico e biológico do indivíduo. A tabela abaixo apresenta as diretrizes diagnósticas adotadas pela OMS:
Um diagnóstico definitivo de dependência deve usualmente ser feito somente se três ou mais dos seguintes requisitos tiverem sido experienciados ou exibidos em algum momento durante o ano anterior:
·        Forte desejo ou compulsão para consumir a substância;
·        Dificuldade para controlar o comportamento de consumir a substância, em termos de seu início, término ou níveis de consumo;
·        Estado de abstinência fisiológico quando o consumo da substância cessou ou foi reduzido, como evidenciado por:
o   Sintomas característicos para a abstinência da substância;
o   Retorno ao uso da substância (ou similar) para alívio ou evitação destes sintomas;
·        Evidência de Tolerância, de tal forma que doses crescentes da substância são requeridas para alcançar efeitos originalmente produzidos por doses mais baixas.
·        Se o indivíduo mantém a dose estável, outra forma de verificar a presença deste critério é a redução dos efeitos da substância;
·        Abandono progressivo de prazeres ou interesses alternativos em favor do uso da substância, aumento da quantidade de tempo necessário para obter ou usar a substância ou ainda para se recuperar de seus efeitos;
·        Persistência no uso da substância, a despeito de evidências claras de consequências manifestamente nocivas.
O abuso da cocaína é um transtorno com diagnóstico de exclusão, ou seja, só pode ser diagnosticado quando a dependência não se encontra presente. Este diagnóstico, descrito pela APA, focaliza fundamentalmente o consumo problemático e recorrente da cocaína, ou seja, o indivíduo que passa a ter comprometimentos sociais, físicos, psicológicos ou legais e mesmo assim mantém seu uso por período mínimo de um ano, mesmo ainda não sendo dependente (por não apresentar os sintomas descritos para a dependência da cocaína).
Esta pessoa geralmente tem um menor impacto da droga sobre sua vida (representado por consequências geralmente mais brandas do que na dependência), porém caso não seja submetido ao mesmo tratamento que o dependente terá (quase que) infalivelmente o destino da Síndrome de Dependência. Por ter, teoricamente, menores consequências negativas, pode-se considerar o abuso de cocaína como um transtorno que, quando tratado, tem a possibilidade de obtenção de melhores resultados terapêuticos do que a Dependência.
Como Identificar um Dependente
Os testes usados para apontar o uso de cocaína, basicamente são os mesmos usados para descobrir o consumo de outras drogas. Os principais tipos de testes utilizados podem analisar o sangue, a urina, o suor ou o cabelo e pelos. Os exames de sangue possuem uma janela de detecção de até dois dias, possuem baixa eficiência do resultado e podem apontar falsos positivos, enquanto os exames de urina além de submeter o paciente a certo constrangimento durante a coleta do material também pode acusar falsos positivos, embora em menor escala.
A janela de detecção vai até três dias após o uso de determinadas substâncias, porém o grau de eficiência do resultado é baixo. Já os exames que baseiam-se em amostras de pelos ou cabelos, possuem larga janela de detecção (90 dias), eficiência nos resultados e não há possibilidade de falsos positivos.
Alguns pontos podem auxiliar o familiar a identificar um dependente e ajudá-lo a recuperar-se. Cabe notar, que os aqui abordados muitas vezes também estão ligados a outros distúrbios de comportamento, portanto deve-se agir com muita atenção e cautela para ter certeza do problema..
·        Frequentar lugares aonde drogas são usadas;
·        Muito tempo fora de casa;
o   O dependente vive para se drogar e se droga para viver, portanto, quase todo tempo fora de casa poderá estar usando drogas;
o   Quando está em casa permanece trancado no quarto, muitas vezes se drogando.
·        Novo grupo de amigos;
o   Você não sabe nada sobre eles e nem é possível chegar a eles;
o   Chamadas telefônicas desconhecidas;
o   São aquelas que não se dão a conhecer mesmo quando são interrogadas;
o   Muitas vezes a ligação é desligada quando quem atende não é a pessoa certa;
·        Companhia de pessoas que usam drogas;
o   É comum o ser humano formar grupos em torno daqueles com que tem afinidade;
o   Amizade com usuários de drogas, relacionada ao convívio diário;
o   Se a pessoa não usa drogas, não deve andar com quem usa. Diga-me com quem andas que te direi quem és;
o   Um namorado (a) usuário de drogas;
·        Mudanças de personalidade, mau humor, briga com familiares, hostilidade com todos;
o   Ao entrar nas drogas, a pessoa tem muitas mudanças em sua vida. A crise de abstinência gera ansiedade, depressão, falta de humor. São frequentes as brigas com familiares;
o   Enquanto a maconha gera falta de vontade, a cocaína gera agitação e hostilidade;
o   Um sinal importante de vício em cocaína é uma perda de interesse em atividades sociais. Os consumidores de cocaína podem afastar-se drasticamente de familiares e amigos;
·        Geralmente procuram estar sozinhos;
·        Necessidade de mais e mais dinheiro sem causa aparente;
o   Dinheiro sumindo em casa;
o   Objetos de valor sumindo de casa;
·        Olhos arregalados, brilhantes e com pupilas dilatadas (midríase), uso de cocaína;
·        Não olhar nos olhos dos familiares temendo ser descoberto;
·        Queda no rendimento escolar ou abandono na escola;
o   O desinteresse de outras atividades também é geral;
·        Alterações do apetite;
o   A cocaína tira o apetite e a fome (perda de peso);
·        Falar ou rir em excesso, mentir;
o   Sob o uso de drogas o usuário pode ter a atitude de rir ou falar em excesso, o que contrasta em muito com o resto do comportamento;
o   Mentir é a forma de ocultar os locais que frequenta, as pessoas com quem anda ou o que estava fazendo;
·        Se o usuário trabalha e o seu dinheiro nunca é suficiente;
·        Se não trabalha e tem dinheiro, o dinheiro pode indicar algo ilícito.
Doenças causadas pela cocaína
Superar um vício de cocaína é um dos desafios mais difíceis que alguém pode enfrentar. E ficar limpo pode ser um longo e difícil caminho. A cocaína é altamente viciante e um vício pode desenvolver muito rapidamente devido à maneira como afeta o sistema nervoso central. Os perigos da droga estão ocultos por trás de sentimentos de prazer e êxtase, que aciona.
Para entender o processo, vale lembrar que, no cérebro, há cem bilhões de neurônios, células características do sistema nervoso que possuem um corpo central e inúmeros prolongamentos ramificados, os dendritos. É através deles que o estímulo é conduzido de um para outro neurônio. Os dendritos não se ligam, porém, como os fios elétricos. Entre eles existe um pequeno espaço livre chamado sinapse onde várias substâncias químicas são liberadas e absorvidas. Uma das mais importantes é a dopamina.
Quando surge o estímulo que dá prazer, por exemplo, a dopamina cai no interior da sinapse e, como a chave que entra numa fechadura, penetra nos receptores do neurônio seguinte e transmite a sensação de prazer. A dopamina que sobra na sinapse é reabsorvida pelos receptores da membrana do neurônio que emitiu o sinal e a sensação de prazer desaparece.
A droga entope os receptores que reabsorvem a dopamina, deixando-a por mais tempo na sinapse e perpetuando a sensação de prazer.
O padrão de uso dessa droga é quase na forma de tudo ou nada: ou a pessoa fica dependente ou não se interessa por ela. Embora existam, é pequeno o número de usuários esporádicos, exatamente porque o efeito poderoso e reforçador logo gera a dependência.
Em nosso cérebro existe um sistema de recompensa que é o núcleo do prazer. Quando a pessoa come, dorme, tem relações sexuais, ativa esse sistema biológico. Ao longo de milhares e milhares de anos de evolução, ele foi desenvolvido como forma de preservar a espécie e o indivíduo. Por isso, a tendência é repetir os comportamentos que trazem prazer.
Na verdade, o cérebro acha que tudo o que dá prazer é bom para o organismo. De certa forma, é bom mesmo, pois resulta de um mecanismo protetor. Graças a ele, os homens aprenderam a comer, a ter relações sexuais, a abrigar-se do frio. O problema é que as drogas, especificamente a cocaína, utilizam esse mecanismo biológico e deturpam a fonte natural do prazer, fazendo com que a pessoa repita seu uso não se importando com o que lhe possa acontecer.
A tendência do usuário de cocaína, mais do que o das outras drogas, é negligenciar todas as outras fontes de prazer. Às vezes, ele para de comer, de ter relações sexuais, de trabalhar. Hoje se considera a dependência de maneira geral, e particularmente a de cocaína, uma doença cerebral, uma vez que o dependente usa a droga de forma deletéria para o cérebro.
A cocaína age sobre três pontos: o tronco cerebral, o núcleo-acubens e sobre a região do córtex cerebral pré-frontal, a mais importante de todas.
A sensação de prazer tem conexão com o pensamento. Não é só uma sensação visceral, de prazer físico. É também um prazer cerebral. Por isso, o usuário de cocaína pensa que tem controle sobre a busca do prazer – “Não uso cocaína porque sou dependente; uso porque quero essa fonte de prazer”.
Ele deturpa seu pensamento em função de uma necessidade mais primitiva, ou seja, a busca do prazer rápido e imediato que a cocaína proporciona. Envolvido por esse processo incessante, desenvolve uma doença chamada dependência química. Muitos de seus comportamentos vão ser explicados pelo mecanismo biológico que perpetua o uso da droga, embora haja fatores sociais e de facilidade de oferta que também interferem.
Se os efeitos agudos da cocaína já são perigosos, os efeitos e consequências do uso continuado são letais. Suas consequências são quase sempre desastrosas sobre a vida do usuário, promovendo prejuízos em suas mais diversas áreas de funcionamento. Depressão intensa com risco de suicídio, desmotivação, sonolência, irritabilidade crônica, episódios paroxísticos de ansiedade (ataques de pânico) e finalmente psicose paranoide (O indivíduo tem certeza que está sendo perseguido, mesmo confrontado com a inexistência de indícios reais) são os efeitos psíquicos mais observados na utilização crônica da droga.
Se antes do uso o indivíduo já apresentar sintomas depressivos, estes se tornam mais severos ainda, resultando ocasionalmente em tentativas de suicídio. Separação conjugal, abandono de atividades ocupacionais (p.ex. perda de emprego), incapacidade de cumprimento de obrigações sociais, dependência financeira ou engajamento em atividades criminais são descritos por muitos usuários "crônicos".
Aos efeitos crônicos associam-se os efeitos potencialmente letais da droga. O uso de cocaína é a principal causa de infarto agudo de miocárdio em jovens (até 40 anos). A cocaína altera o ritmo elétrico cardíaco, produzindo arritmias que podem ser visualizadas no eletrocardiograma. O aumento da pressão arterial contribui para a ocorrência de hemorragias (sangramentos) em diversas partes do corpo, inclusive no cérebro, possibilitando a ocorrência de acidentes vasculares cerebrais. O aumento de temperatura corpórea pode atingir mais de 42º, provocando a morte por hipertermia. Doses maiores estão relacionadas com parada respiratória.
Uma das consequências mais graves do consumo da cocaína é o surgimento de convulsões. A cocaína é um potente facilitador da ocorrência de convulsões de todos os tipos, principalmente tônico-clônicas (indistinguíveis daquelas da epilepsia). Em animais de laboratório (geralmente ratos e macacos) "tratados" com cocaína, observamos mortes por convulsões (acompanhadas de inanição e exaustão) após 17 dias de consumo da droga. Acredita-se que caso o ser humano tivesse acesso irrestrito à droga, o resultado seria muito semelhante.
O uso de cocaína resulta em aumento da demanda de oxigênio pelo coração. Apesar disso, ao mesmo tempo, a cocaína provoca intensa constrição dos vasos sanguíneos (inclusive coronarianos), diminuindo a oferta de oxigênio para os tecidos. Isso pode conduzir à angina, arritmias cardíacas e infarto. Outros sintomas como paranoia, alucinações, confusão mental, tremores, vômitos, insônia, pupilas dilatadas (midríase), e aumento da frequência respiratória também são vislumbrados comumente.
Vale a pena lembrar também que a cocaína atravessa a placenta e atinge o feto. Vários estudos em humanos e em animais relatam que o uso da cocaína diminui a circunferência craniana do bebê ao nascimento e tem efeito negativo sobre o seu desenvolvimento da linguagem. Defeitos orobucais têm sido observados em bebês de mães usuárias da droga (lábio leporino, fenda palatal).
Mais da metade daqueles que inalam cocaína apresentam sangramento nasal, rinite e sintomas crônicos de sinusite. Perfuração do septo nasal é observada em cerca de 5% dos usuários. Na verdade, o efeito vasoconstritor da cocaína induz isquemia local que, por sua vez, pode induzir necrose do septo nasal e tecidos adjacentes.
Os adulterantes que existem na cocaína, tais como talco, quinino, anfetaminas, lidocaína, procaína etc., complicam ainda mais as lesões. Da mesma forma, o palato (céu da boca) pode ser intensamente atingido pela cocaína, incluindo o surgimento de perfurações e fístulas, o que prejudica a articulação da linguagem e o regime alimentar.
Usuários de cocaína frequentemente sofrem de bruxismo (ranger de dentes noturno durante o sono), comumente produzindo dor na articulação temporomandibular e músculos mastigatórios. Desgaste dos dentes caninos e incisivos tem sido observado entre usuários crônicos da droga. Também, dissolvida na saliva, a cocaína diminui o pH da boca, aumentando o risco de dissolução de minerais dos dentes (hidroxiapatita). Retração gengival e boca seca têm também sido observadas entre usuários da droga.
Além dos efeitos diretos da cocaína sobre a mucosa e a pele, devem-se ressaltar os efeitos indiretos, relacionados, por exemplo, à má nutrição comumente vista entre dependentes. Realmente, além dos efeitos euforizantes da cocaína, essa substância propicia a constrição das veias e artérias do corpo, provoca danos nas paredes dos vasos sanguíneos e intensifica a coagulação.
Complicações dermatológicas mais raras, mas graves, podem ocorrer com o usuário de cocaína, como necrose epidérmica segmentar, associada com manchas azuladas distribuídas pelo corpo, desencadeadas pelo vasoespasmo prolongado.
A inalação da cocaína pode resultar em edema da mucosa nasal e diminuição da capacidade para sentir odores. O consumo crônico tem sido associado a vários outros quadros dermatológicos, como vasculites, verrugas intranasais, púrpura palpável (pequenos pontos elevados vermelhos ou de cor púrpura, resultado do extravasamento de sangue dos capilares sangüíneos) e esclerodermia (espessamento da pele, resultado do acúmulo excessivo de proteínas – colágeno).
É comum o encontro de escoriações generalizadas na pele devido à coceira induzida pela cocaína. Alguns indivíduos, após o uso, têm a sensação de que existem bichos andando pelo seu corpo; isso, também, faz com que eles se cocem com grande intensidade.
O dependente de cocaína, frequentemente, alimenta-se de maneira inadequada e insuficiente. O déficit constante e progressivo de vários nutrientes induz a inúmeras complicações em vários órgãos.
Também com relação ao sistema respiratório, várias complicações decorrentes do consumo de cocaína têm sido recorrentemente descritas. Bronco-espasmo, hemorragia alveolar, inflamação dos alvéolos (alveolites), hipertensão pulmonar, edema pulmonar e fibrose do espaço entre os alvéolos. As repercussões respiratórias do uso da droga não dependem apenas da via de administração, mas também da presença de adulterantes, micro-organismos, tempo de uso, susceptibilidade individual, uso compartilhado de seringas.
Também, é importante ressaltar que pequenas doses de cocaína podem aumentar a taxa respiratória, enquanto altas doses podem provocar depressão respiratória. No entanto, em alguns usuários, a cocaína pode ter um efeito paradoxal, induzindo inicialmente um aumento da taxa respiratória seguida por redução clinicamente significativa. O usuário pode queixar-se de dor ao respirar, falta de ar, tosse, hemoptise (expectoração sanguinolenta através da tosse), febre, sintomas de asma ou bronquite.
Cocaína e AIDS
Em 1981 o Centro de controle de doenças norte-americano (CDC) apresentava ao mundo a definição de uma nova patologia: a síndrome da imunodeficiência adquirida, a AIDS. Casos de morte que esperavam esclarecimento desde 1978 foram diagnosticados. Pesquisas se multiplicaram e a atenção da opinião pública do mundo ocidental focalizou rapidamente o problema.
Em poucos anos, o vírus responsável foi identificado e denominado HIV. Inicial e infelizmente, porém, a síndrome foi associada quase exclusivamente a homossexuais, impedindo a aplicação de métodos preventivos em relação a outras formas de transmissão, entre elas a via sanguínea. Esta é a responsável pela transmissão tanto de mãe para filho como pelo consumo de drogas por via intravenosa. Em 1991, aproximadamente 28% dos casos de AIDS diagnosticados nos Estados Unidos tinham a via intravenosa como a forma de transmissão do vírus.
Os usuários intravenosos de cocaína costumam consumir a droga em grupos, compartilhando a mesma seringa ou agulha. O surgimento do HIV obrigou adaptações extremamente custosas tanto dos serviços de assistência a dependentes (não acostumados a enfrentar esta doença infecciosa) como de clínicos, inaptos para lidar com o rol de complicações da dependência de substâncias psicoativas.
Desta forma, micro-organismos presentes no corpo de um usuário são diretamente injetados no próximo. Este uso ritual possibilita a chegada direta do HIV ao sangue do usuário, sem a mínima proteção que é representada, por exemplo, pelas mucosas ano-genitais durante uma relação sexual insegura (sem o uso de preservativo).
O consumo de qualquer droga (inclusive o álcool) reduz a capacidade de o indivíduo evitar a continuidade do consumo (de qualquer substância) e, ao mesmo tempo, reduz a capacidade de evitar relações sexuais sem a prevenção adequada (uso de camisinha).
Cérebro e cocaína
Atualmente, existem recursos que permitem avaliar o funcionamento cerebral e deixam claro o enorme contraste existente entre o cérebro normal, rico e vivo que consome bastante glicose, por exemplo, e o do usuário de cocaína, que se mostra alterado substancial e principalmente nas regiões frontais, ou seja, nas regiões do pensamento, do controle dos estímulos e da impulsividade.
Isso explica em parte o comportamento impetuoso dessas pessoas. Conhecer esse fato é importante para as famílias e para os clínicos, pois ajuda a entender por que elas não pensam muito, gastam dinheiro demais e muitas vezes se tornam violentas (parte da violência urbana está relacionada com o uso de cocaína).
Fotografias cerebrais revelam que a diminuição do oxigênio, especialmente nas regiões frontais provocada pelo uso crônico da cocaína, produz alterações que não se recuperam mesmo depois de vários anos de abstinência. Existe um limite de uso a partir do qual o usuário não recupera mais a função cerebral perdida.
Memória, concentração, capacidade de elaborar pensamentos complexos, de ponderar são funções seriamente prejudicadas. Uma forma de testar o cérebro de um usuário de cocaína é a simulação de um jogo, o gambling test.
Paranoias
Elas têm muito a ver com o sistema dopaminérgico. Doses maiores de dopamina provocam sintomas paranoides à semelhança do que ocorre com as anfetaminas, muito consumidas nos anos de 1950 para manter as pessoas acordadas. Pilotos de avião, por exemplo, que às vezes usavam essa droga para não dormir, tinham surtos psicóticos em pleno voo.
De forma marcante, a cocaína produz sensações persecutórias provocadas pelo fluxo muito rápido de dopamina no cérebro. O usuário se tranca no banheiro, imaginado que a polícia vai invadir o local e prendê-lo. É quase um quadro semelhante ao da esquizofrenia paranoide. Dura algumas horas, eventualmente poucos dias e depois tende a desaparecer, mas é sinal indiscutível de que houve uma mudança importante da química cerebral.
Na realidade, essa talvez seja a essência da dependência. Mesmo diante de consequências negativas, a pessoa não tem forças para mudar de comportamento, porque o lado prazeroso e reforçador é muito mais importante e forte. É uma sensação imediata, às vezes fugaz, mas existe uma alteração no sistema de recompensa cerebral. Se não existisse, não seria possível explicar tal comportamento.
A consequência negativa de uma substância não impede que ela continue sendo usada, apesar de o efeito paranoide ocorrer quase imediatamente após o uso. Ou seja, a pessoa valoriza essa etapa de efeito rápido, apesar de saber que irá enfrentar reações complicadas.
Efeitos psicológicos
A cocaína que é inalada demora alguns minutos para apresentar as primeiras sensações que costumam durar aproximadamente quarenta minutos; se injetada ou fumada o efeito é mais rápido e mais intenso porém dura menos.
Esta droga produz euforia, excitação, ansiedade, diminuição da fadiga, aumento da capacidade de trabalho e sensação de maior força física. Esquece-se a necessidade de comer e dormir, que de outra maneira se sentiria em certas horas do dia.
A cocaína é uma droga que desperta a agressividade, um estimulante que dá uma sensação de poder, de que se está acima do mundo. Porém é um poder ilusório que desaparece quando se desvanecem os efeitos da cocaína, sem que o indivíduo tenha aprendido nada. Provoca um estado falso, sem aprendizado, que leva o indivíduo ao escape temporal de si mesmo.
Ao nível somático, o consumo de cocaína ocasiona dilatação das pupilas, diminuição da sensibilidade ao frio, relaxamento muscular, aumento da pressão sanguínea e aceleração da frequência cardíaca. Como a cocaína é um vasoconstritor, sua inalação constante provoca a degeneração do tecido local prejudicando a membrana mucosa. Usada habitualmente ocasiona infecções das vias respiratórias e inclusive pode chegar a produzir edema pulmonar.
Os sintomas de abuso começam parecendo-se com os do resfriado crônico combinado com insônia e perda de peso. Em casos de abuso, se experimentam náuseas, vômitos, irritabilidade e alucinações com temas recorrentes como insetos que circulam sob a pele; além de perfurações do septo nasal, infecções cutâneas e hemorragias pulmonares. O risco de overdose é frequente, pois não se conhece o grau de pureza da droga. Após o uso intenso e repetitivo o usuário experimenta sensações muito desagradáveis como cansaço e intensa depressão.
A tendência do usuário é aumentar a dose de uso na tentativa de sentir efeitos mais intensos. Porém essas quantidades maiores acabam por levar o usuário a comportamento violento, irritabilidade, tremores e atitudes bizarras devido ao aparecimento de paranoia (chamada entre eles de "nóia"). Esse efeito provoca um grande medo nos usuários que passam a vigiar o local onde estão usando a droga e passam a ter uma grande desconfiança uns dos outros o que acaba levando-os a situações extremas de agressividade.
Eventualmente podem ter alucinações e delírios. A esse conjunto de sintomas dá-se o nome de "psicose cocaína". Além desses sintomas descritos, os usuários de cocaína perdem de forma muito marcante o interesse sexual. O uso crônico da cocaína pode levar a uma degeneração irreversível dos músculos esqueléticos, chamada rabdomiólise.
É certo que os usuários de cocaína relatam que aumentam a dose quer para sentir os mesmos efeitos quer para aumentá-los. De qualquer maneira, considera-se hoje em dia que a cocaína induz tolerância, tanto que os manuais psiquiátricos mais atuais já admitem a tolerância induzida pela cocaína, sendo que a mesma pode ser observada em todas as vias de administração.
Não há descrição convincente de uma síndrome de abstinência quando a pessoa para de tomar cocaína abruptamente: ela não sente dores pelo corpo, cólicas, náuseas, etc. O que ocorre é que essa pessoa pode ficar tomada de grande "fissura" desejando tomar de novo para sentir os efeitos agradáveis e não para diminuir ou abolir o sofrimento que ocorreria se realmente houvesse uma síndrome de abstinência.
No Brasil, a cocaína é a droga mais utilizada pelos usuários de drogas injetáveis (UDI). Muitas destas pessoas compartilham agulhas e seringas, e se expõe ao contágio de várias doenças, entre elas as hepatites, a malária, a dengue e a aids. Esta prática, inclusive, é hoje em dia o fator de risco mais importante para a transmissão do HIV.
Crise de abstinência
Ex-fumantes se queixam de que a vontade de fumar nunca passa. Usuários de cocaína que param de usar a droga não se referem a essa premência. Dizem que ficam bem sem ela, desde que não a vejam porque, se isso acontecer, “enlouquecem”. Cocaína não provoca uma crise de abstinência igual às outras drogas.
Os sintomas de abstinência são peculiares a cada droga. O impacto do reflexo biológico da cocaína é diferente do da nicotina. O sintoma agudo da cocaína é o efeito que dá prazer imediato e a sensação de poder. Quando ele passa, o sintoma remoto da abstinência se caracteriza por diminuição desse prazer, depressão e alienação.
Estudos indicam que, quando o usuário vê a cocaína, ou se encontra numa situação em que pode consegui-la, ou assiste a filmes que abordam o tema, várias regiões de seu cérebro quase que se iluminam, pois o impacto biológico é muito grande e aumenta a vontade de consumir a droga.
A longo prazo (alguns meses) ocorrem invariavelmente múltiplas hemorragias cerebrais com morte extensa de neurônios e perda progressiva das funções intelectuais superiores. São comuns síndromes psiquiátricas como esquizofrenia e depressão profunda unipolar.
·        Perda de memória
·        Perda da capacidade de concentração mental
·        Perda da capacidade analítica.
·        Falta de ar permanente, trauma pulmonar, dores torácicas
·        Destruição total do septo nasal (se inalada).
·        Perda de peso até níveis de desnutrição
·        Cefaleias (dores de cabeça)
·        Síncopes (desmaios)
·        Distúrbios dos nervos periféricos ("sensação do corpo ser percorrido por insetos")
·        Silicose, pois é comum o traficante adicionar talco industrial para aumentar seus lucros, fato verificado em necropsia, exame de hemogramas.
·        Arritmias cardíacas: complicação possivelmente fatal.
·        Trombose coronária com enfarte do miocárdio (provoca 25% dos enfartes totais em jovens de 18-45 anos)
·        Trombose cerebral com AVC.
·        Outras hemorragias cerebrais devidas à vasoconstrição simpática.
·        Necrose (morte celular) cerebral
·        Insuficiência renal
·        Insuficiência cardíaca
·        Hipertermia com coagulação disseminada potencialmente fatal.

Tratamento

A dependência de cocaína é um transtorno passível de tratamento, ao contrário do que muitas pessoas pensam. Porém é certo que nenhum modelo de tratamento pode ser considerado eficaz para todos os pacientes. Indivíduos que desenvolvem dependência de cocaína possuem diferentes características e necessidades.
Estudos apontam uma boa relação custo-benefício do tratamento. Infelizmente, o resultado mais comum dos diversos tratamentos é a redução do consumo por algum tempo, bem como a diminuição das atividades ilegais e do comportamento criminal do dependente. O tratamento, porém, necessita ser entendido como um processo contínuo, assim como modelos médicos utilizados em doenças crônicas, tal qual diabetes e hipertensão arterial. Em não ser assim, a possibilidade de recaídas e o retorno ao padrão de dependência crônica certamente voltam.
Raros são os usuários que não necessitam de tratamento; muitos interrompem definitivamente o consumo após o surgimento dos primeiros prejuízos. Outros, todavia, continuam a usar a cocaína apesar das consequências danosas evidentes que passam a vivenciar. A necessidade do tratamento é muitas vezes determinada pelo envolvimento obsessivo do sujeito com a droga que passa a prejudicar os demais aspectos de sua vida.
O processo terapêutico inicia-se com medidas para trazer o paciente para os serviços de assistência. O dependente não procura tratamento por achar que está usando droga demasiadamente, mas sempre frente a "situações de crise", geralmente envolvendo trabalho, família, situação financeira, problemas legais, emergências médicas e rompimento de relacionamentos afetivos.
Uma forma de promover o acesso do indivíduo ao tratamento é interromper a "facilitação" familiar. No momento do ingresso no tratamento, quase sempre o paciente tem a ilusão de poder retornar ao uso controlado da cocaína ("dar um tempo"). Esta situação é impossível, pois uma vez cruzada a linha invisível da dependência, a capacidade de retorno a consumo ocasional ou controlado é definitivamente perdida. Muitas vezes o paciente demora meses ou anos, com inúmeras recaídas e aumento dos prejuízos, até que se conscientize deste fato.
Qualquer modelo de tratamento para a dependência da cocaína deve incluir alguns aspectos básicos, fundamentais para a obtenção de resultados positivos. A abstinência deve ser não somente da cocaína, mas de todas as drogas de abuso, primeiro e principal objetivo do processo terapêutico. Tanto o álcool como outras drogas deflagram "fissuras", mesmo meses (ou anos) após a interrupção da cocaína; como citado acima, o consumo tem um efeito desinibitório sobre o consumo de outras drogas (reduz a capacidade de evitar o consumo), aumentando ainda a impulsividade do paciente.
Aspectos psico-educacionais, tanto sobre a cocaína, álcool e outras drogas, como sobre a própria dependência, devem sempre ser incluídos em qualquer modalidade terapêutica empregada. Este componente auxilia o paciente a compreender e aceitar a própria dependência e sua doença. Deve incluir aspectos farmacológicos, princípios básicos da doença, sinais de recaída e formas de preveni-las, as consequências biopsicossociais da dependência, aspectos familiares, capacitação e codependência de amigos e, principalmente, familiares.
O envolvimento familiar é fundamental. Outras medidas que costumam ser incluídas no processo são terapia individual e familiar, participação em grupos de autoajuda, busca de atividades alternativas ao consumo de substâncias psicoativas, cuidados médicos, nutricionais, análises toxicológicas, intervenção farmacológica prescrita por profissional experiente no tratamento da dependência e tratamento em regime de internação (hospitalar e comunidades terapêuticas). Quanto mais abrangente e completo o programa terapêutico, maior a chance de recuperação.
A internação do dependente, ao contrário do que se acreditava antigamente, não é solução para todos os pacientes. Ao contrário, os estudos científicos realizados nas últimas décadas não comprovam nenhuma vantagem de um método hospitalar em relação a ambulatório para toda a população de dependentes que busca, ou é levada para o tratamento. Pelo contrário, a internação é mais bem entendida como um método de promoção de abstinência e desintoxicação, sendo apenas uma parte da recuperação do indivíduo, devendo sempre ser associada a posterior seguimento ambulatorial. A internação carrega também um estigma social importante, que é delegado ao indivíduo.
O tratamento em ambulatório, de fato apresenta algumas vantagens sobre a internação, por ser menos custoso (possibilita ao serviço o tratamento de um maior número de dependentes), causar menor interrupção na vida do indivíduo (muitos dependentes que procuram tratamento, por exemplo, continuam a manter atividades sociais e ocupacionais importantes, auxiliando na manutenção de toda sua família).
O dependente aceita mais facilmente o tratamento ambulatorial e este modelo busca que ele lide com sua compulsão em seu "mundo real" (ao qual irá retornar muitas vezes despreparado após uma internação). Por outro lado, existem algumas indicações importantes em que a internação é inevitável e altamente recomendada.

Indicações de internação de dependentes

1.    Risco de suicídio, agressividade física importante, quadro psicótico;
2.    Doenças médicas ou psiquiátricas associadas que indiquem internação (infarto de miocárdio, convulsões, etc.);
3.    Intensa disfunção de vida do dependente ou incapacidade de lidar com tarefas básicas de sua própria rotina (cuidados pessoais, alimentação, etc.);
4.    Dependência associada de substâncias que requerem tratamento hospitalar (abstinência de álcool ou opioides);
5.    Fracasso das tentativas de abordagem ambulatorial do dependente;
Intervenções familiares no tratamento da Dependência
MODELOS DE TERAPÊUTICA FAMILIAR
NÍVEL DE INTERVENÇÃO
OBJETIVOS
Orientação familiar
Orientar os familiares sobre a filosofia e abordagens do tratamento individual
Informar a família sobre o programa terapêutico e a inclusão do paciente e solicitar suporte familiar
Grupos psico-educacionais de familiares
Orientação sobre aspectos vivenciais (funcionamento familiar) com ênfase em aspectos do consumo e da dependência
Informar familiares sobre aspectos de relações pessoais e como estas são relevantes no abuso e dependência de substâncias
Aconselhamento familiar
Contrato de tratamento familiar com o objetivo de resolução de problemas familiares específicos identificados no tratamento do dependente.
Auxiliar na solução de problemas identificados pelos integrantes da família que sejam relacionados ao consumo de drogas e/ou álcool
Terapia familiar
Contrato terapêutico com a família para intervenções com o objetivo de tratar disfunções crônicas e sistêmicas.
Abordar e procurar modificar áreas de comprometimento familiar (sistema), relacionando-as à dependência de substâncias psicoativas.
Al-Anon
Grupo de autoajuda com enfoque familiar
Não é considerado tratamento, porém possibilita compartilhar experiências com outras famílias de dependentes.