História
A cocaína é extraída das folhas do arbusto da
coca (Erythroxylon coca), mas só tem valor comercial quando refinada. A Erythroxylum
coca possui gineceu constituído de três carpelos, cálice de cinco sépalas e corola
de cinco pétalas. Suas folhas são alternadas, elípticas e pecioladas. Cocaína, benzoilmetilecgonina
ou éster do ácido benzoico é um alcaloide usado como droga, derivada do referido
arbusto, com efeitos anestésicos e cujo uso continuado, pode causar outros efeitos
indesejados como dependência, hipertensão arterial e distúrbios psiquiátricos. A
produção da droga é realizada através de extração, utilizando como solventes álcalis,
ácido sulfúrico, querosene e outros.
A folha de coca (cujo
consumo mesmo se em grandes quantidades, leva apenas à absorção de uma dose minúscula
de cocaína) é usada comprovadamente há mais de 1200 anos pelos povos nativos da
América do Sul. Eles a mastigavam para ajudar a suportar a fome, a sede e o cansaço,
sendo, ainda hoje, consumida legalmente em alguns países (Peru, Bolívia) sob a forma
de chá (a absorção do princípio ativo, por esta via, é muito baixa).
Os Incas e outros povos dos Andes usaram-na
certamente, permitindo-lhes trabalhar a altas altitudes, onde a rarefação do ar
e o frio tornam o trabalho árduo especialmente difícil. A sua ação anorexiante (supressora
da fome) lhes permitia dispor de apenas um mínimo de comida durante alguns dias.
Inicialmente os espanhóis, constatando o uso
quase religioso da planta, nas suas tentativas de converter os índios ao cristianismo,
declararam a planta produto do demônio. O seu uso entre os espanhóis do novo mundo
espalhou-se, sendo as folhas usadas para tratar feridas, ossos quebrados, e curar
resfriados. A coca foi levada para a Europa em 1580.
Contudo a tentativa de cultivar
a planta na Europa, naquela época, destruía a substância ativa contida nas folhas,
perdendo todos os seus efeitos estimulantes. Esta razão foi responsável pelo esquecimento
da substância nas publicações europeias dos séculos seguintes, até que na metade
do século XIX foi conseguida a extração da substância pura, a cocaína, em forma
de pó.
O alcaloide (cocaína) foi isolado das folhas
de coca por Niemann em 1859 ou 1860, o que lhe deu o nome. No entanto, há boas razões
para supor que foi antes Friedrich Gaedcke que a isolou pela primeira vez em 1855
ou 1856.
A apresentação aspirada produzia um efeito
muito maior do que o observado na mascagem das folhas, tornando-se coqueluche no
final do século XIX no Velho Continente – a primeira epidemia de consumo da coca.
Ao mesmo tempo a medicina inventava um novo método para administração de remédios,
a injeção. Assim, as principais formas de consumo na virada do século eram intranasal
e intravenosa.
O seu uso espalhou-se
gradualmente. Após visitas à América do Sul, cientistas italianos levaram amostras
da planta para o seu país, onde o químico Angelo Mariani desenvolveu, em 1863 o
vinho Mariani, uma infusão alcoólica de folhas de coca (mais poderosa devido ao
poder do etanol que as infusões de água ou chás usadas antes). O vinho Mariani era
muito apreciado pelo Papa Leão XIII, que inclusive premiou Mariani com uma medalha
honorífica.
A Coca-Cola seria inventada
em parte como tentativa de competição dos comerciantes americanos com o vinho Mariani
importado da Itália. Continuaria desde a sua invenção até 1903 a incluir cocaína
nos seus ingredientes e os seus efeitos foram, sem dúvida, determinantes no poder
atrativo inicial da bebida.
A cocaína tornou-se popular entre as classes
altas no fim do século XIX. Entre consumidores famosos do vinho Mariani contavam-se
Ulysses Grant, o Papa Leão XIII, que até apareceu na publicidade do produto e Frédéric
Bartholdi (francês, criador da Estátua da liberdade), que comentou que se o vinho
tivesse sido inventado mais cedo teria feito a estátua mais alta.
A cocaína foi popularizada como tratamento para
a dependência de morfina. Em Viena, Sigmund Freud, o médico criador da psicanálise
experimentou-a em si e em seus pacientes, fascinado pelos seus efeitos psicotrópicos.
Publicou inclusive um livro - Über Coca - sobre as suas experiências. Contudo
acabou por se desiludir com a dependência a que foram reduzidos vários dos seus
amigos. Foi ele que a forneceu ao oftalmologista Carl Köller, que em 1884 a usou
pela primeira vez como anestésico local, aplicando gotas com cocaína nos olhos de
pacientes, antes de serem operados.
A popularidade da cocaína
ganha terreno: Em 1885 a companhia americana Park Davis vendia livremente cocaína
em cigarros, pó ou liquido injetável sob o lema de "substituir a comida; tornar
os covardes corajosos, os silenciosos eloquentes e os sofredores insensíveis à dor".
O personagem fictício Sherlock Holmes (personagem de Arthur Conan Doyle) numa das
histórias, chega mesmo a injetar cocaína na veia. Em 1909 Ernest Shackleton leva
cocaína para a sua viagem à Antártica, assim como o Capitão Robert Scott.
Apesar do entusiasmo, os efeitos negativos da
cocaína acabaram por ser descobertos. Com o uso da pelas classes baixas, inclusive
nos Estados Unidos, o seu potencial de dependência e graves problemas para a saúde
começaram a aparecer. Os alertas racistas no sul dos Estados Unidos sobre os "ataques
a mulheres brancas que eram o resultado direto do cérebro do negro enlouquecido
por cocaína" acabaram por resultar na regulação e posterior proibição da substância.
Apesar dos motivos iniciais é consensual entre a comunidade médica que os elevados
efeitos autodestruidores do consumo de cocaína são plenamente justificativos da
proibição atual.
Em seguida, a sociedade foi
obrigada a se confrontar com um imenso rol de complicações e consequências desastrosas
do consumo de cocaína e em 1914 passou a ser proibida tanto nas Américas como na
Europa. A sociedade moderna tomava consciência, pela primeira vez, do potencial
destrutivo desta droga.
De uma forma extremamente interessante,
a proibição surtiu efeitos importantes, e o uso da cocaína praticamente desapareceu
por pouco mais de meio século. A cocaína ressurge no início da década de 1970, e
surpreendentemente, ganha a reputação de droga segura e "light", a "vitamina
dos anos ‘90". O resultado disto foi a explosão do consumo na América do Norte,
atingindo seu pico em 1985 nos Estados Unidos da América e cinco anos mais tarde
em nosso país. O Brasil passa a ser reconhecido como uma das principais vias de
exportação da droga principalmente para a Europa.
Produção
Deve-se diferenciar a
produção da cocaína em dois processos claramente distintos. Na produção industrial
de refrigerantes a base de extrato de coca é um subproduto sob controle governamental,
oriundo da "decocainização" do extrato, que finalmente apresenta dois
fins: ou a destruição ou a comercialização controlada para fins de pesquisas biológicas,
médicas e de síntese orgânica.
A produção por este processo é uma extração
com soluções e solventes adequados, visando retirar o máximo possível da cocaína
presente nas folhas de coca, visando a se chegar a uma concentração que seja permitida
pela legislação dos diversos países onde os xaropes básicos dos refrigerantes a
base de coca são consumidos.
A produção do alcaloide, historicamente, é a
mesma hoje, em ambiente rústico, sendo usada pelos grandes produtores/traficantes
de cocaína. Em recipientes (ou até mesmo buracos no chão, impermeabilizados) é colocada
uma grande quantidade de folhas secas de coca, que a seguir, são maceradas com querosene.
Após a maceração, as folhas são removidas e
transferidas para outro recipiente e mergulhadas em solução de ácido sulfúrico visando
acidificar o alcaloide e formar sulfato de cocaína, higrina e outros compostos,
solúveis em água. O líquido é então decantado e tratado com alguma substância alcalina,
como o carbonato de amônio, o que resulta na pasta base, que é solúvel em solventes
orgânicos e insolúvel em água.
A seguir, a pasta base é dissolvida em acetona
ou éter etílico e com acréscimo de água, precipita a cocaína, que por filtração
atinge elevado grau de pureza. Pela volatilidade, os solventes são completamente
eliminados do pó obtido, não chegando a deixar aroma, critério fundamental para
sua venda como cocaína pura.
Agora pura, será diluída com diversas substâncias,
entre elas, destacadamente, as dificilmente detectáveis como lidocaína. Acrescenta-se
também ácido acetilsalicílico, cimento branco, talco e até pó de vidro. Estima-se
que a produção de 1 kg de pasta-base requer entre 600 a 750 kg de folha de coca,
gasolina, ácido sulfúrico e cimento, dentre outros produtos.
Pó de cocaína.
A cocaína é um pó branco
e cristalino (é um sal, hidrocloreto de cocaína). Pode ser consumida de várias formas,
mas o modo mais comum é pela aspiração. Alguns consumidores chegam a injetar a droga
diretamente na corrente sanguínea, o que eleva consideravelmente o risco de uma
parada cardíaca irreversível, causada por uma overdose. A via intravenosa também
é mais perigosa devido às infecções.
Mecanismo de ação
A cocaína, como grande parte das drogas, é metabolizada
no fígado. Conjuga-se com etanol, presente nas bebidas alcoólicas, formando cocaetileno,
ainda mais tóxico. É um inibidor da enzima MAO (monoamina oxidase), da recaptação
e estimulante da liberação de noradrenalina e dopamina, existentes nos neurônios.
A dopamina e a noradrenalina são neurotransmissores
cerebrais que são secretados para a sinapse, de onde são recolhidos outra vez para
dentro dos neurônios por esses transportadores inibidos pela cocaína. Logo o seu
consumo aumenta a concentração e duração desses neurotransmissores. Os efeitos são
similares aos das anfetaminas, mas mais intensos e menos prolongados.
A noradrenalina e a adrenalina são neurotransmissora
e hormônio respectivamente do sistema simpático (sistema nervoso autônomo). Elas
são normalmente ativadas em situações de stress agudo ("lutar ou fugir")
em que o indivíduo necessita de todas as suas forças, e agem junto aos órgãos de
modo a obtê-las: aumentam a contração e frequência cardíacas, aumentam a velocidade
e clareza do pensamento, destreza dos músculos, inibem a dor e aumentam a tensão
arterial. O indivíduo sente-se invulgarmente consciente e desperto, eufórico, excitado,
com mente clara e sensação de paragem do tempo. A cocaína é um forte potencializador
do sistema nervoso simpático, tanto no cérebro, como na periferia.
A dopamina é o neurotransmissor principal das
vias meso-límbicas e meso-estriadas. Essas vias têm funções de produzir prazer em
resposta a acontecimentos positivos na vida do indivíduo, recompensando a aquisição
de novos conhecimentos ou aprendizagem, progresso nas relações sociais, relações
emocionais e outros eventos.
O aumento artificial da dopamina pela cocaína
nas sinapses vai ativar anormalmente essas vias. O consumidor sente-se extremamente
autoconfiante, poderoso, irresistível e capaz de vencer qualquer desafio, de uma
forma que não corresponde à sua real situação ou habilidade. Com a regularização
do consumo, as vias dopaminérgicas são modificadas e pervertidas ("highjacked")
e a cocaína passa de facilitadora do sentimento de sucesso e confiança face às situações
externas, para simples recompensa derivada diretamente de um distúrbio bioquímico
cerebral criado pela própria droga.
O bem-estar desliga-se de condicionantes externas,
passando a ser apenas uma medida do tempo passado desde a última dose. A motivação
do indivíduo torna-se "irreal", desligando-se dos interesses sociais,
familiares, emocionais, ambição profissional ou aprendizagem de formas de lidar
com novos desafios, para se concentrar apenas na droga, que dá um sentimento de
auto realização artificial, de intensidade impossível de atingir de outra forma.
Anestésico local
A cocaína também é um eficaz anestésico local
simpatomimético, tendo sido o primeiro do grupo a ser usado, e ainda em uso hoje
em algumas cirurgias respiratórias. O mecanismo desta ação é totalmente diferente
da ação psicotrópica. Ela é um bloqueador dos canais de sódio nos neurônios dos
nervos periféricos.
O influxo de sódio desencadeia o potencial de
ação e sem esse influxo são incapazes de enviar os seus impulsos. Os nervos sensitivos
são geralmente os primeiros a ser bloqueados. A cocaína tem vindo a ser substituída
por outros fármacos não psicotrópicos e sem outros efeitos adversos, mas com a mesma
função. Ela apresenta efeitos secundários devido à quantidade que extravasa para
o sangue, provocando estimulação simpática (hipertensão, taquicardia) e mesmo convulsões.
Efeitos tóxicos
·
1ª fase – Euforia cocaínica:
excitação, hipersexualidade, inapetência, hipervigilância, instabilidade
emocional, insônia.
·
2ª fase – Disforia cocaínica:
angústia atroz, inapetência, insônia, indiferença sexual, apatia, tristeza,
melancolia, agressividade.
·
3ª fase – Alucinose cocaínica:
alucinações (visuais, auditivas, táteis, olfativas), excitação psicomotora,
indiferença sexual.
·
4ª fase – Psicose cocaínica: ilusões
paranóides, mania de perseguição, insônia, depressão, tentativas de suicídio e
homicídio, alucinações (auditivas e olfativas), hipervigilância.
Os sintomas da 4ª fase são comuns entre
usuários de grandes doses de cocaína, e mais ainda naqueles que fazem uso da associação
álcool-cocaína. O dependente faz associação com outras drogas, como o álcool e tranqüilizantes,
para contrapor efeitos excessivamente estimulantes da cocaína.
A cocaína é talvez a droga mais sujeita a sofrer
adulteração. Para aumentar a quantidade se adicionam lactose, talco, bórax, laxantes
ou quaisquer outros produtos que se pareçam com a cocaína e não apresentem efeitos
colaterais perceptíveis. Para compensar a perda de potência se adicionam anfetaminas
em pó, novocaína, benzocaína e outros. Também cafeína, ácidos e analgésicos tem
sido encontrados. Em geral chega ao consumidor final com apenas cerca de vinte por
cento de cocaína.
A tendência do usuário é aumentar a dose de uso na tentativa de sentir efeitos
mais intensos. Porém essas quantidades maiores acabam por levar o usuário a um comportamento
violento, irritabilidade, tremores e atitudes bizarras devido ao aparecimento de
paranoia. Eventualmente podem ter alucinações e delírios. A esse conjunto de sintomas
dá-se o nome de "psicose cocaínica". Além desses sintomas, perdem de forma
muito marcante o interesse sexual.
Os efeitos são os mesmos provocados pela cocaína utilizada por outras vias.
Assim, podem produzir uma dilatação das pupilas (midríase), afetando a visão que
fica prejudicada, a chamada "visão borrada". Ainda pode provocar dor no
peito, contrações musculares, convulsões e até coma. Mas é sobre o sistema cardiovascular
que os efeitos são mais intensos. A pressão arterial pode elevar-se e o coração
passa a bater muito mais rapidamente (taquicardia).
Em casos extremos chega a produzir uma parada cardíaca por fibrilação ventricular.
A morte também pode ocorrer devido à diminuição de atividade de centros cerebrais
que controlam a respiração. O uso crônico da cocaína pode levar a uma degeneração
irreversível dos músculos esqueléticos, chamada rabdomiólise.
O consumo intranasal de cocaína
produz seus efeitos entre 1 e 2 minutos após o uso, tendo duração de 30 minutos,
em média. Tanto o uso endovenoso como o fumado produzem efeitos quase imediatos,
porém estes se dissipam mais rapidamente (até 10 minutos), muitas vezes obrigando
o indivíduo a voltar a utilizar a droga após 5 minutos. Os metabólitos (produtos
ou "restos" do uso da substância ativa) podem ser detectados alguns minutos
após poucas aspirações (ou injeção), permanecendo por até três dias.
O efeito imediato esperado
pelo consumidor é a euforia produzida pela cocaína. Conjuntamente com a estimulação
produzida, dá a falsa sensação ao indivíduo de aumento de suas capacidades físicas,
intelectuais e energia. Diminui o apetite e a necessidade de sono, o indivíduo fica
mais ansioso e às vezes passa a suspeitar que está sendo observado ou perseguido.
Usuários contam que a sensação
do tato torna-se mais intensa, bem como a disposição para manter relações sexuais.
A cocaína pode promover até ejaculação espontânea, dependendo da dose e da via utilizada.
Este efeito repetido, porém, tem como consequência, em muitos usuários, a perda
da capacidade de obter prazer sexual convencional, que se mantém por meses ou
anos após a interrupção do consumo da droga. Diminuição do desejo sexual é observado
em usuários crônicos de ambos os sexos.
A euforia se transforma rapidamente
em depressão e irritabilidade, aumentando a necessidade de voltar a "esticar"
mais uma carreira. O sujeito passa a ter uma autoconfiança irreal, podendo ainda
apresentar alucinações (auditivas e visuais) e delírios de perseguição, indistinguíveis
da patologia psiquiátrica (p. ex. Esquizofrenia).
Outros sintomas físicos do
consumo são observados: constrição dos vasos sanguíneos (desaparecimento de veias),
aumento da temperatura corpórea, liberação de açúcar no sangue, e aumento da força
da contração do músculo cardíaco. Quando os efeitos da droga se dissipam, o usuário
apresenta sintomas contrários (depressão, angústia, etc.), levando-o ao desespero
por uma nova dose ("fissura" – característica mais proeminente de todas
as formas de consumo da cocaína).
Identificando um
usuário de cocaína
Podemos dizer que
identificar um usuário é tarefa muito simples: quem toma um cafezinho, bebe uma
cervejinha, fuma um cigarrinho e toma um remedinho (por conta própria ou por indicação
médica), é usuário de droga! Esta afirmativa pode parecer um tanto
quanto estranha, pois costumamos fazer as seguintes associações:
·
droga = substâncias ilícitas (maconha, cocaína etc.);
·
usuário = dependente (popularmente chamado de viciado, drogado etc.).
Alguns podem argumentar
que as substâncias ilícitas são mais perigosas e prejudiciais do que
as lícitas (álcool, cigarro etc.). Mas com base em quê? Por exemplo,
o que é pior: uma pessoa usar maconha ou álcool? Se analisarmos as situações a partir da
substância, já saberemos a resposta. Se tomarmos como referência o tipo de relação
que o usuário mantém com a droga, a análise já será diferente.
Se imaginarmos um
uso constante, em quantidades relativamente altas, enfocando prejuízos orgânicos
causados pelo uso crônico, síndrome de abstinência, incapacitação
social e riscos de overdose, comparados entre as duas substâncias, a posição relativa
das drogas, mudará drasticamente.
No livro "Drogas: subsídios
para uma discussão" fazem uma comparação dos prejuízos causados
a curto e em longo prazo, por cinco substâncias sobre as quais existe mais discussão:
cigarro, álcool, maconha, cocaína e heroína.
Ao invés de nos preocuparmos
em identificar um usuário, seria muito mais adequado procurarmos olhar para o ser humano, ou
seja, entender como ele pensa, o que sente, o que deseja, o que o preocupa, quais as suas
necessidades. Sem pré-julgamentos, sem preconceitos, sem medo. Mas como disse Andrade: "O difícil é
olhar de perto. Afinal a exclusão esconde o insuportável". E o insuportável é aquilo que, mais intimamente, dentro de nós, evitamos
ter contato.
Quando suspeitamos
que alguém usa droga ilícita, procuramos alternativas para lidar com a situação
da melhor maneira possível. Podemos conversar com a pessoa ou solicitar a orientação
de um profissional. Às vezes buscamos soluções mágicas como, por exemplo, uma lista
de sinais de uso de drogas. Mas o que fazer com as informações contidas nessa lista?
Mesmo que nos auxiliem
a identificar um usuário, o que fazer com essa descoberta? E então perguntamos:
essa lista serve para quê? Muita vezes acaba sendo utilizada como pretexto para
que nos tornemos detetives ou espiões capazes de invadir a privacidade do outro.
Serve, portanto, como um paliativo para diminuir a angústia que se tem pelo desconhecido.
E o desconhecido não se refere apenas
às drogas ilícitas - embora essas despertem certa curiosidade, acompanhada por uma sensação
de mistério decorrente do mito que se criou em torno delas - nem muito menos às
lícitas, já que são aceitas socialmente e seu uso é estimulado. O desconhecido
é o ser humano, com sua enorme complexidade. Somos nós mesmos. É o outro diferente
de mim.
Várias podem ser
as causas dos sinais listados para reforçar nossa capacidade de rotular, estigmatizar
e discriminar aquele que é diferente, ou seja, que foge daquilo que chamamos de
normalidade. Não nos interessa, portanto, saber quais os sinais para identificar
quem é usuário. Devemos nos interessar em saber o que o uso de drogas (lícita e/ou
ilícita) está sinalizando.
Pode, por exemplo,
ser uma das respostas (às vezes a única) para problemas individuais, familiares
e/ou sociais ou, ainda, uma experiência que faça parte das descobertas e do crescimento
do ser humano. Assim, um uso constante de qualquer substância não deve ser ignorado
nem banalizado, tal como habitualmente fazemos quando se trata das drogas lícitas.
De outro lado, uma experiência com droga ilícita não deve ser tratada com pânico
nem desespero.
Investir no diálogo,
em relações de respeito e confiança não evitará que as pessoas usem drogas (lícitas
e/ou ilícitas). Porém, teremos a garantia mínima de um espaço aberto para a comunicação,
o qual será útil para o encaminhamento mais adequado da questão.
Afinal, quem usa
drogas são os seres humanos. Portanto, como tais, devem ser respeitados
em sua subjetividade e individualidade.
A mulher e a
cocaína
Até pouco tempo atrás, pensava-se que todos os dependentes
eram iguais e assim formariam um grupo homogêneo. Somente nos últimos 25 anos os
serviços de tratamento perceberam a necessidade de identificar subgrupos de dependentes,
com a finalidade de ajustar as propostas terapêuticas para cada subgrupo.
Com o aumento da procura
de tratamento por pacientes do sexo feminino foram verificadas características diferenciais,
próprias desta população. O consumo de álcool e drogas em mulheres carrega um estigma
social e moral mais intenso; as mulheres costumam procurar tratamentos médicos clínicos
ao invés de serviços especializados em tratamento de dependência química. Suas razões
para início e manutenção do consumo são diferentes (p.ex. os homens costumam consumir
com amigos e a mulher, sozinha), bem como o impacto das drogas sobre sua saúde.
Também é mais frequente
encontrarmos comorbidade psiquiátrica (associação de transtornos psiquiátricos,
principalmente depressão, com abuso e síndrome de dependência) em mulheres do que
na população dependente masculina, demandando tratamento associado de ambos quadros
clínicos. O organismo da mulher, mais frágil ao impacto da cocaína, sofre com maiores
alterações hormonais, que acarretam desde produção de leite até ausência dos ciclos
menstruais.
As complicações clínicas
costumam ser precoces. A associação de gravidez com o consumo de cocaína é
terrível. A cocaína atravessa rapidamente a placenta, exercendo todos os seus efeitos
sobre o feto (hipertensão, constrição de vasos sanguíneos, etc.), levando à falta
de oxigenação e suprimento de sangue adequado.
Recém-nascidos de gestantes
consumidoras apresentam diversas complicações que incluem baixo peso ao nascimento,
morte logo após o parto, malformações (genitais, urinárias, redução do tamanho do
cérebro, entre outras), hemorragia cerebral, alterações de padrão de sono, diminuição
de alimentação, aumento de reflexos e disfunções musculares. Estas últimas podem
durar até 3 meses após o parto.
Uma parcela das mulheres
dependentes de cocaína se engaja em prostituição como forma de obtenção de droga.
O inverso também parece ser verdadeiro, havendo uma alta prevalência de prostitutas
que consomem cocaína, álcool e outras drogas. Problemas relacionados à impulsividade,
dificuldades interpessoais e dificuldade no julgamento foram associados às dependentes
de cocaína.
O que fazer
·
Prover possibilidade de cuidados para
os filhos, no mínimo durante os momentos que a paciente se encontra em contato com
o serviço de tratamento.
·
Identificar rapidamente padrões de consumo
compulsivo (ou abuso/dependência) de medicações prescritas, que dificultam o engajamento
da paciente no processo de recuperação e mudança do estilo de vida (por exemplo,
"calmantes").
·
Estímulo intensivo da autoestima, geralmente
mais abalada do que na população dependente do sexo masculino.
·
Modelagem dos papéis sociais da mulher
(por exemplo, familiar e ocupacional).
Cocaína e Adolescência
O período que abrange o final da adolescência
até o início da idade adulta é a fase da vida em que existe maior risco para o início
do uso de cocaína. A adolescência é considerada uma fase crítica da vida do indivíduo,
onde ocorrem diversas modificações internas (características da personalidade) e
externas, como por exemplo, o surgimento de caracteres sexuais secundários.
O indivíduo se afasta dos pais e
aproxima-se
de colegas e amigos, fazendo uso da "liberdade" conquistada (de forma
gradativa ou abrupta). Esta fase também é reconhecida como tendo um grande componente
de ansiedade e estresse. O adolescente apresenta também uma tendência natural para
o envolvimento em situações de risco. A dificuldade na previsão de consequências
no futuro faz com que o indivíduo jovem viva exclusivamente o "aqui e agora".
Estes fatores parecem contribuir para a experiência de álcool e drogas, particularmente
a cocaína em nosso meio.
O indivíduo jovem busca, então, ser admitido
em um grupo social de "iguais", o que inclui a aquisição dos comportamentos
deste grupo, e a experiência de álcool e drogas é um dos principais comportamentos.
A cocaína ocupa a 8ª posição entre as drogas de abuso no Brasil, tendo seu consumo
quadruplicado nesta população.
Um levantamento aponta o crescimento do consumo
ao longo da vida, bem como o aumento de usuários "pesados" nesta população.
O crescimento do uso durante algum momento na vida do estudante de primeiro e segundo
grau foi da ordem de 80%, indicando a importância do problema do consumo dessa droga
entre adolescentes. Entre os adolescentes em tratamento no Hospital das
Clínicas em São Paulo, a cocaína é a segunda droga mais consumida, perdendo apenas
para a maconha.
A adolescência é considerada como um período
crítico para o surgimento de complicações pelo consumo de substâncias psicoativas.
Adolescentes tem progressão mais rápida do consumo e de seus resultados danosos.
Os prejuízos que o consumo acarreta levam a consequências de difícil reversão: interrupção
do desenvolvimento da personalidade, resultando em deficiências futuras do funcionamento
do indivíduo.
O consumo afeta o desenvolvimento das funções
sociais, bem como o estabelecimento de relações interpessoais (p.ex. afetivas).
Este quadro torna o consumo de álcool e drogas nesta população um problema ainda
mais catastrófico do que o observado em indivíduos na fase adulta. O tratamento,
portanto, deve ter início o quanto antes.
Outro problema para os adolescentes é representado
pelo modelo assistencial, que vem sendo desenvolvido neste século voltado à população
adulta. Isto resulta em dificuldades intrínsecas para a obtenção de sucesso terapêutico.
Adolescentes dependentes têm, por exemplo, poucas (ou nenhuma) atividades alternativas
ao consumo de álcool e drogas, e inúmeras vezes só tem relacionamentos com outros
usuários, traficantes e dependentes.
Os objetivos terapêuticos do tratamento da população
de jovens devem incluir propostas de mudança global do funcionamento do indivíduo
e de seu estilo de vida, desenvolvimento de valores "saudáveis", atitudes
e comportamentos que propiciem a interação social positiva e esforço para a reabilitação
ocupacional (escola, preparação vocacional, etc.), de forma ainda mais intensiva
que para a população adulta.
O tratamento deve ter a orientação para a abstinência
total e de todas as drogas (álcool também), da mesma forma que deve ocorrer na população
adulta. Porém esta tarefa é muito mais difícil para o adolescente, pelo fato de
não dispor, ainda, de um sistema de suporte social (trabalho, relações afetivas,
etc.). A família constitui a única exceção.
Muitos usuários começam a utilizar cocaína durante
o período acadêmico, e uma parcela deste grupo passa a consumir a droga também em
outras situações, mantendo e agravando o consumo, propiciando as condições ideais
para o desenvolvimento da dependência.
Universitários, que se encontram na fase de
vida imediatamente posterior à adolescência irão, em futuro breve, constituir a
massa crítica da nação. Em nosso país a situação também merece cuidados especiais;
estudo realizado na Universidade de São Paulo detectou taxas de até 8% de consumo
de cocaína na população estudante.
A melhor abordagem do problema, apresentando
também a melhor relação custo-benefício possível é a prevenção ao abuso de drogas.
Prevenir significa desenvolver programas junto às comunidades, pesquisando as características
próprias de cada uma delas e, de acordo com suas particularidades, elaborando estratégias
para evitar tanto o início do consumo como o caminho rumo aos transtornos decorrentes
das substâncias psicoativas (abuso e dependência). Estes programas há muito já se
fazem necessários para a efetiva abordagem do problema do consumo de drogas entre
adolescentes. Entretanto, ainda estão longe de atender de forma abrangente
todos que deles necessitam.
Cocaína e a família
Familiares compartilham
genes que podem contribuir para o abuso de drogas. Isto é verificado na dependência
do álcool, quando se observa que gêmeos separados ao nascimento têm grande concordância
no diagnóstico de dependência de álcool quando atingem a adolescência ou a idade
adulta. Por outro lado, familiares também compartilham o mesmo meio ambiente, cultura
e eventos vitais, havendo a possibilidade da aprendizagem de comportamentos, inclusive
de consumo de álcool e drogas. Com a cocaína acontece o mesmo.
A
dependência
de substâncias psicoativas é definida como um transtorno individual. Muitos especialistas
aceitam, porém, o conceito da dependência como doença familiar, por atingir diretamente
não só o usuário, mas aqueles que o cercam. As reações familiares à dependência
abrangem um enorme leque que vai desde a expulsão de casa até a aceitação do consumo
dentro do ambiente familiar.
Costumamos denominar
este último de "facilitação" (favorecimento de comportamentos e atitudes
relativos ao consumo de drogas), que sempre acarreta consequências desastrosas.
Embora compreensível que o familiar utilize qualquer tipo de drogas dentro de casa
(geralmente para evitar as complicações legais), estimula os múltiplos comportamentos
relacionados à intensificação do consumo, aceleração do desenvolvimento da dependência,
dificuldade de trazer o indivíduo para o tratamento e ocorrência de complicações
precoces (físicas, psicológicas e sociais).
Entre os principais
exemplos de facilitação encontram-se a liberdade excessiva, a preocupação em ocultar
as falhas que o usuário apresenta (desculpas para a escola, trabalho, etc.), falta
de limites (dinheiro, horários, aceitação de agressividade) ou mesmo "fechar
os olhos" para as demais consequências que passa a criar quando se torna abusador
ou dependente.
A família necessita
participar ativamente do tratamento e do processo de recuperação do dependente,
como núcleo de suporte fundamental do indivíduo. Esta tarefa, porém, não é nada
fácil, dados os prejuízos sofridos pelos familiares durante o curso da dependência
do álcool e/ou drogas (agressões, furtos domésticos, doenças do paciente, etc.).
Para tanto, paralelamente ao tratamento individual, uma intervenção terapêutica
familiar é sempre aconselhável.
Complicações do
consumo de cocaína
1. Decorrentes
dos efeitos próprios da droga: complicações físicas e psiquiátricas;
2. Decorrentes
das substâncias adicionadas à cocaína (adulterantes);
3. Decorrentes
da via de consumo utilizada;
4. Decorrentes
do estilo de vida do usuário de cocaína.
As consequências do consumo vão desde
um
ligeiro sangramento nasal após um uso isolado, até comprometimentos irrecuperáveis
e morte. Alguns dos mais dramáticos comprometimentos da cocaína ocorrem sobre o
sistema cardiorrespiratório. Angina de peito, infarto agudo do miocárdio e aumento
do volume cardíaco são os efeitos mais proeminentes observados sobre o coração.
Usuários crônicos apresentam capacidade respiratória
reduzida e maior dificuldade de transporte de oxigênio. Um quadro agudo
decorrente do fuma-la é dor intensa no peito, falta de ar e tosse sanguinolenta.
Frequentemente o indivíduo se queixa de impotência sexual, incapacidade de ejaculação
ou de obter o orgasmo.
Tentativas de suicídio são comuns entre usuários
de grandes doses. As oscilações entre a euforia produzida pelos efeitos da droga
e a depressão posterior estão relacionadas às tentativas, bem como o próprio estilo
de vida do indivíduo.
Outros problemas comuns são infecções de pele
(injeções contaminadas), infecção na válvula cardíaca, AIDS e hepatite. A pele infectada
se apresenta inchada, dolorida, avermelhada e quente; febre e calafrios podem ser
indicativos de que a infecção atingiu o sangue e/ou outros órgãos (Sepsis). Esta
é uma consequência letal se o indivíduo não for submetido a tratamento imediato.
O uso por via intravenosa transmite essas complicações de um usuário para outro.
As lesões no fígado também decorrem do uso
da cocaína e podem ainda causas tóxicas agravadas pelas substâncias adicionadas,
somando-se aos efeitos do álcool que é consumido conjuntamente.
Endocardite bacteriana é a denominação médica
para a infecção sobre as válvulas cardíacas. Bactérias encontradas na própria pele
do usuário ou na água utilizada para diluir a droga, são injetadas conjuntamente
com a coca e encontram dentro do coração um local seguro para se instalar e reproduzir.
As válvulas cardíacas passam a ter o funcionamento prejudicado, com dificuldades
para deixar passar o fluxo de sangue ou ainda não conseguindo evitar que o sangue
bombeado pelo coração reflua.
Dependência de cocaína
A cocaína não tem síndrome física bem definida
(como por exemplo o da heroína), no entanto os efeitos da sua privação não são subjetivos.
Após consumo durante apenas alguns dias, há universalmente: depressão (muitas vezes
profunda), disforia (ansiedade e mal estar), deterioração das funções motoras, elevada
perda da capacidade de aprendizagem, perda de comportamentos aprendidos. A síndrome
psicológica da cocaína é extremamente poderosa. Ha comprovações obtidas através
de estudos epidemiológicos de que a cocaína é muito mais viciante que a maconha
(cannabis), o álcool ou o tabaco.
O estilo de vida do usuário crônico predispõe
a complicações de outra ordem. É mais comum que também utilize álcool e outras drogas,
podendo desenvolver dependência a estas. Dependência de mais de uma substância representa
potencialização dos efeitos danosos de cada uma e eventualmente, comorbidades.
O usuário crônico se engaja em atividades ilícitas
para obtenção da droga e manutenção do consumo. O envolvimento criminal, por sua
vez, resulta muitas vezes em acidentes e homicídios, que podem ser considerados
também como complicações do consumo da droga, além de suicídio, citado anteriormente.
Nenhum dependente de cocaína, ao iniciar o consumo,
tem a intenção de se tornar dependente da substância. No entanto, não existe um
limite nítido entre o início do consumo, o uso continuado e o desenvolvimento dos
transtornos decorrentes do uso da droga (principalmente Síndrome de Dependência).
A experiência da cocaína se desenvolve sempre
em um meio (contexto) social definido, promovendo efeitos estimulantes
e
euforia pronunciada. Nenhuma das consequências negativas do consumo está presente
(nos primeiros meses de consumo ocasional), parecendo ao usuário iniciante que os
avisos e informações que tinha sobre a droga antes da primeira experiência foram
exagerados ou simples "propaganda enganosa".
Em busca dos efeitos iniciais, o consumo da
cocaína continua; o sujeito passa a visitar outros usuários com mais frequência,
dando a desculpa que "estes são verdadeiros amigos" por compartilharem
sensações e prazeres semelhantes, diferentes dos amigos "caretas" de antigamente.
Pela primeira vez acontece a compra da cocaína
de um destes amigos, e o consumo se intensifica. Até este momento poucos efeitos
negativos são evidentes. A família nota alguma mudança, mas como o indivíduo mantém
(quase) todas as suas atividades anteriores (trabalho, estudo, pernoitar em casa,
etc.), a desconfiança muitas vezes não é revelada ao usuário; este se sente ainda
mais confiante, também pelas próprias características da droga.
Mais um período de consumo e entra em contato
com fornecedores de quantidades maiores, traficantes (outros usuários que mantém
seu consumo por meio de comércio de pequenas quantidades da droga). Descobre, então
que quando adquire maior quantidade ocorre um barateamento de seu consumo; compra
grande quantidade "para usar ao longo do mês"; infalivelmente consumindo
em período muito menor.
Algumas consequências negativas já são evidentes,
mas sua importância é muito menor do que o prazer obtido pelo consumo da substância.
"Perco de um lado, mas ganho de outro", pensa o usuário, já atrelado ao
caminho determinado pela droga. Podem começar a ocorrer episódios de consumo de
grandes quantidades durante várias horas ou alguns dias, as orgias de consumo ("binges").
Neste ponto suas atividades e atribuições anteriores ao consumo já sofrem de negligência
importante, contribuindo ainda mais para o retorno ao consumo.
A situação tem a gravidade intensificada, e
o usuário muito se assemelha ao camundongo de laboratório que fornece aos pesquisadores
inúmeras informações sobre as drogas de abuso, passando a consumir compulsivamente
a despeito das evidências claras de prejuízos sobre sua vida e daqueles que o cercam.
Neste ponto qualquer pessoa identifica o dependente de cocaína.
O fator mais relevante deste pequeno exemplo,
de um dos padrões de consumo que evolui para a Síndrome de Dependência, é que o
indivíduo não necessita chegar a este estado terminal para ser considerado dependente.
Qualquer pessoa concorda que muito antes disto o indivíduo perdeu a sua capacidade
de controlar o consumo de cocaína. A perda deste controle parece ser o fato central
do estabelecimento do estado de dependência; a cocaína passa a controlar o indivíduo,
e não o contrário, que ocorreu no momento da experiência inicial.
Quanto mais cedo se detecta a dependência maior
o sucesso que intervenções terapêuticas podem obter. Com este último conceito como
foco tanto a Organização Mundial de Saúde (OMS), como a Associação Psiquiátrica
Norte-americana (APA), estabelecem critérios que direcionam o diagnóstico da Síndrome
da Dependência, com o intuito de diagnosticar precocemente este transtorno de enorme
custo social.
Critérios diagnósticos da Síndrome de
Dependência
A dependência é uma síndrome, cujos sintomas
se manifestam em áreas de funcionamento social, psicológico e biológico do indivíduo.
A tabela abaixo apresenta as diretrizes diagnósticas adotadas pela OMS:
Um diagnóstico definitivo de dependência deve
usualmente ser feito somente se três ou mais dos seguintes requisitos tiverem sido
experienciados ou exibidos em algum momento durante o ano anterior:
·
Forte desejo ou compulsão para
consumir a substância;
·
Dificuldade para controlar o
comportamento de consumir a substância, em termos de seu início, término ou
níveis de consumo;
·
Estado de abstinência fisiológico
quando o consumo da substância cessou ou foi reduzido, como evidenciado por:
o
Sintomas característicos para a
abstinência da substância;
o
Retorno ao uso da substância (ou
similar) para alívio ou evitação destes sintomas;
·
Evidência de Tolerância, de tal
forma que doses crescentes da substância são requeridas para alcançar efeitos
originalmente produzidos por doses mais baixas.
·
Se o indivíduo mantém a dose
estável, outra forma de verificar a presença deste critério é a redução dos
efeitos da substância;
·
Abandono progressivo de prazeres ou
interesses alternativos em favor do uso da substância, aumento da quantidade de
tempo necessário para obter ou usar a substância ou ainda para se recuperar de
seus efeitos;
·
Persistência no uso da substância, a
despeito de evidências claras de consequências manifestamente nocivas.
O abuso da cocaína é um transtorno com diagnóstico
de exclusão, ou seja, só pode ser diagnosticado quando a dependência não se encontra
presente. Este diagnóstico, descrito pela APA, focaliza fundamentalmente o consumo
problemático e recorrente da cocaína, ou seja, o indivíduo que passa a ter comprometimentos
sociais, físicos, psicológicos ou legais e mesmo assim mantém seu uso por período
mínimo de um ano, mesmo ainda não sendo dependente (por não apresentar os sintomas
descritos para a dependência da cocaína).
Esta pessoa geralmente tem um menor impacto
da droga sobre sua vida (representado por consequências geralmente mais brandas
do que na dependência), porém caso não seja submetido ao mesmo tratamento que o
dependente terá (quase que) infalivelmente o destino da Síndrome de Dependência.
Por ter, teoricamente, menores consequências negativas, pode-se considerar o abuso
de cocaína como um transtorno que, quando tratado, tem a possibilidade de obtenção
de melhores resultados terapêuticos do que a Dependência.
Como Identificar um Dependente
Os testes usados para apontar o uso de cocaína,
basicamente são os mesmos usados para descobrir o consumo de outras drogas. Os principais
tipos de testes utilizados podem analisar o sangue, a urina, o suor ou o cabelo
e pelos. Os exames de sangue possuem uma janela de detecção de até dois dias, possuem
baixa eficiência do resultado e podem apontar falsos positivos, enquanto os exames
de urina além de submeter o paciente a certo constrangimento durante a coleta do
material também pode acusar falsos positivos, embora em menor escala.
A janela de detecção vai até três dias após
o uso de determinadas substâncias, porém o grau de eficiência do resultado é baixo.
Já os exames que baseiam-se em amostras de pelos ou cabelos, possuem larga janela
de detecção (90 dias), eficiência nos resultados e não há possibilidade de falsos
positivos.
Alguns pontos podem auxiliar o familiar a identificar
um dependente e ajudá-lo a recuperar-se. Cabe notar, que os aqui abordados muitas
vezes também estão ligados a outros distúrbios de comportamento, portanto
deve-se agir com muita atenção e cautela para ter certeza do problema..
·
Frequentar lugares aonde drogas são
usadas;
·
Muito tempo fora de casa;
o
O dependente vive para se drogar e
se droga para viver, portanto, quase todo tempo fora de casa poderá estar
usando drogas;
o
Quando está em casa permanece
trancado no quarto, muitas vezes se drogando.
·
Novo grupo de amigos;
o
Você não sabe nada sobre eles e nem
é possível chegar a eles;
o
Chamadas telefônicas desconhecidas;
o
São aquelas que não se dão a
conhecer mesmo quando são interrogadas;
o
Muitas vezes a ligação é desligada
quando quem atende não é a pessoa certa;
·
Companhia de pessoas que usam drogas;
o
É comum o ser humano formar grupos
em torno daqueles com que tem afinidade;
o
Amizade com usuários de drogas,
relacionada ao convívio diário;
o
Se a pessoa não usa drogas, não deve andar com quem usa. Diga-me com quem andas
que te direi quem és;
o
Um namorado (a) usuário de drogas;
·
Mudanças de personalidade, mau humor,
briga com familiares, hostilidade com todos;
o
Ao entrar nas drogas, a pessoa tem
muitas mudanças em sua vida. A crise de abstinência gera ansiedade, depressão,
falta de humor. São frequentes as brigas com familiares;
o
Enquanto a maconha gera falta de
vontade, a cocaína gera agitação e hostilidade;
o
Um sinal
importante de vício em cocaína é uma perda de interesse em atividades sociais.
Os consumidores de cocaína podem afastar-se drasticamente de familiares e
amigos;
·
Geralmente
procuram estar sozinhos;
·
Necessidade de mais e mais dinheiro
sem causa aparente;
o
Dinheiro sumindo em casa;
o
Objetos de valor sumindo de casa;
·
Olhos arregalados, brilhantes e com
pupilas dilatadas (midríase), uso de cocaína;
·
Não olhar nos olhos dos familiares
temendo ser descoberto;
·
Queda no rendimento escolar ou
abandono na escola;
o
O desinteresse de outras atividades
também é geral;
·
Alterações do apetite;
o
A cocaína tira o apetite e a fome
(perda de peso);
·
Falar ou rir em excesso, mentir;
o
Sob o uso de drogas o usuário pode
ter a atitude de rir ou falar em excesso, o que contrasta em muito com o resto
do comportamento;
o
Mentir é a forma de ocultar os
locais que frequenta, as pessoas com quem anda ou o que estava fazendo;
·
Se o usuário trabalha e o seu
dinheiro nunca é suficiente;
·
Se não trabalha e tem dinheiro, o
dinheiro pode indicar algo ilícito.
Doenças causadas pela cocaína
Superar um vício de cocaína é um dos desafios mais difíceis que alguém pode
enfrentar. E ficar limpo pode ser um longo e difícil caminho. A cocaína é altamente
viciante e um vício pode desenvolver muito rapidamente devido à maneira como afeta
o sistema nervoso central. Os perigos da droga estão ocultos por trás de sentimentos
de prazer e êxtase, que aciona.
Para entender o processo, vale lembrar que, no cérebro, há cem bilhões de
neurônios, células características do sistema nervoso que possuem um corpo central
e inúmeros prolongamentos ramificados, os dendritos. É através deles que o estímulo
é conduzido de um para outro neurônio. Os dendritos não se ligam, porém, como os
fios elétricos. Entre eles existe um pequeno espaço livre chamado sinapse onde várias
substâncias químicas são liberadas e absorvidas. Uma das mais importantes é a dopamina.
Quando surge o estímulo
que dá prazer, por exemplo, a dopamina cai no interior da sinapse e, como a chave
que entra numa fechadura, penetra nos receptores do neurônio seguinte e transmite
a sensação de prazer. A dopamina que sobra na sinapse é reabsorvida pelos receptores
da membrana do neurônio que emitiu o sinal e a sensação de prazer desaparece.
A droga entope os receptores que reabsorvem a dopamina, deixando-a por mais
tempo na sinapse e perpetuando a sensação de prazer.
O padrão de uso dessa droga é quase na forma de tudo ou nada: ou a pessoa
fica dependente ou não se interessa por ela. Embora existam, é pequeno o número
de usuários esporádicos, exatamente porque o efeito poderoso e reforçador logo gera
a dependência.
Em nosso cérebro existe um sistema de recompensa que é o núcleo do prazer.
Quando a pessoa come, dorme, tem relações sexuais, ativa esse sistema biológico.
Ao longo de milhares e milhares de anos de evolução, ele foi desenvolvido como forma
de preservar a espécie e o indivíduo. Por isso, a tendência é repetir os comportamentos
que trazem prazer.
Na verdade, o cérebro acha que tudo o que dá prazer é bom para o organismo. De certa forma, é
bom mesmo, pois resulta de um mecanismo protetor. Graças a ele, os homens aprenderam
a comer, a ter relações sexuais, a abrigar-se do frio. O problema é que as drogas,
especificamente a cocaína, utilizam esse mecanismo biológico e deturpam a fonte
natural do prazer, fazendo com que a pessoa repita seu uso não se importando com
o que lhe possa acontecer.
A tendência do usuário de cocaína, mais do que o das outras drogas, é negligenciar
todas as outras fontes de prazer. Às vezes, ele para de comer, de ter relações sexuais,
de trabalhar. Hoje se considera a dependência de maneira geral, e particularmente
a de cocaína, uma doença cerebral, uma vez que o dependente usa a droga de forma
deletéria para o cérebro.
A cocaína age sobre três pontos: o tronco cerebral, o núcleo-acubens e sobre
a região do córtex cerebral pré-frontal, a mais importante de todas.
A sensação de prazer tem conexão com o pensamento. Não é só uma sensação
visceral, de prazer físico. É também um prazer cerebral. Por isso, o usuário de
cocaína pensa que tem controle sobre a busca do prazer – “Não uso cocaína porque
sou dependente; uso porque quero essa fonte de prazer”.
Ele deturpa seu pensamento em função de uma necessidade mais primitiva, ou
seja, a busca do prazer rápido e imediato que a cocaína proporciona. Envolvido por
esse processo incessante, desenvolve uma doença chamada dependência química. Muitos
de seus comportamentos vão ser explicados pelo mecanismo biológico que perpetua
o uso da droga, embora haja fatores sociais e de facilidade de oferta que também
interferem.
Se os efeitos agudos da cocaína já são perigosos,
os efeitos e consequências do uso continuado são letais. Suas consequências são
quase sempre desastrosas sobre a vida do usuário, promovendo prejuízos em suas mais
diversas áreas de funcionamento. Depressão intensa com risco de suicídio, desmotivação,
sonolência, irritabilidade crônica, episódios paroxísticos de ansiedade (ataques
de pânico) e finalmente psicose paranoide (O indivíduo tem certeza que está sendo
perseguido, mesmo confrontado com a inexistência de
indícios
reais) são os efeitos psíquicos mais observados na utilização crônica da droga.
Se antes do uso o indivíduo já apresentar sintomas
depressivos, estes se tornam mais severos ainda, resultando ocasionalmente em tentativas
de suicídio. Separação conjugal, abandono de atividades ocupacionais (p.ex. perda
de emprego), incapacidade de cumprimento de obrigações sociais, dependência financeira
ou engajamento em atividades criminais são descritos por muitos usuários "crônicos".
Aos efeitos crônicos associam-se os efeitos
potencialmente letais da droga. O uso de cocaína é a principal causa de infarto
agudo de miocárdio em jovens (até 40 anos). A cocaína altera o ritmo elétrico cardíaco,
produzindo arritmias que podem ser visualizadas no eletrocardiograma. O aumento
da pressão arterial contribui para a ocorrência de hemorragias (sangramentos) em
diversas partes do corpo, inclusive no cérebro, possibilitando a ocorrência de acidentes
vasculares cerebrais. O aumento de temperatura corpórea pode atingir mais de 42º,
provocando a morte por hipertermia. Doses maiores estão relacionadas com parada
respiratória.
Uma das consequências mais graves do consumo
da cocaína é o surgimento de convulsões. A cocaína é um potente facilitador da ocorrência
de convulsões de todos os tipos, principalmente tônico-clônicas (indistinguíveis
daquelas da epilepsia). Em animais de laboratório (geralmente ratos e macacos) "tratados"
com cocaína, observamos mortes por convulsões (acompanhadas de inanição e exaustão)
após 17 dias de consumo da droga. Acredita-se que caso o ser humano tivesse acesso
irrestrito à droga, o resultado seria muito semelhante.
O uso de cocaína resulta em aumento da demanda de oxigênio pelo coração.
Apesar disso, ao mesmo tempo, a cocaína provoca intensa constrição dos vasos sanguíneos
(inclusive coronarianos), diminuindo a oferta de oxigênio para os tecidos. Isso
pode conduzir à angina, arritmias cardíacas e infarto. Outros sintomas como paranoia, alucinações, confusão mental,
tremores, vômitos, insônia, pupilas dilatadas (midríase), e aumento da frequência
respiratória também são vislumbrados comumente.
Vale
a pena lembrar também que a cocaína atravessa a placenta e atinge o feto. Vários
estudos em humanos e em animais relatam que o uso da cocaína diminui a circunferência
craniana do bebê ao nascimento e tem efeito negativo sobre o seu desenvolvimento
da linguagem. Defeitos orobucais têm sido observados em bebês de mães usuárias da
droga (lábio leporino, fenda palatal).
Mais
da metade daqueles que inalam cocaína apresentam sangramento nasal, rinite e sintomas
crônicos de sinusite. Perfuração do septo nasal é observada em cerca de 5% dos usuários.
Na verdade, o efeito vasoconstritor da cocaína induz isquemia local que, por sua
vez, pode induzir necrose do septo nasal e tecidos adjacentes.
Os
adulterantes que existem na cocaína, tais como talco, quinino, anfetaminas, lidocaína,
procaína etc., complicam ainda mais as lesões. Da mesma forma, o palato (céu da
boca) pode ser intensamente atingido pela cocaína, incluindo o surgimento de perfurações
e fístulas, o que prejudica a articulação da linguagem e o regime alimentar.
Usuários
de cocaína frequentemente sofrem de bruxismo (ranger de dentes noturno durante o
sono), comumente produzindo dor na articulação temporomandibular e músculos mastigatórios.
Desgaste dos dentes caninos e incisivos tem sido observado entre usuários crônicos
da droga. Também, dissolvida na saliva, a cocaína diminui o pH da boca, aumentando
o risco de dissolução de minerais dos dentes (hidroxiapatita). Retração gengival
e boca seca têm também sido observadas entre usuários da droga.
Além
dos efeitos diretos da cocaína sobre a mucosa e a pele, devem-se ressaltar os efeitos
indiretos, relacionados, por exemplo, à má nutrição comumente vista entre dependentes.
Realmente, além dos efeitos euforizantes da cocaína, essa substância propicia a
constrição das veias e artérias do corpo, provoca danos nas paredes dos vasos sanguíneos
e intensifica a coagulação.
Complicações
dermatológicas mais raras, mas graves, podem ocorrer com o usuário de cocaína, como
necrose epidérmica segmentar, associada com manchas azuladas distribuídas pelo corpo,
desencadeadas pelo vasoespasmo prolongado.
A
inalação da cocaína pode resultar em edema da mucosa nasal e diminuição da capacidade
para sentir odores. O consumo crônico tem sido associado a vários outros quadros
dermatológicos, como vasculites, verrugas intranasais, púrpura palpável (pequenos
pontos elevados vermelhos ou de cor púrpura, resultado do extravasamento de sangue
dos capilares sangüíneos) e esclerodermia (espessamento da pele, resultado do acúmulo
excessivo de proteínas – colágeno).
É
comum o encontro de escoriações generalizadas na pele devido à coceira induzida
pela cocaína. Alguns indivíduos, após o uso, têm a sensação de que existem bichos
andando pelo seu corpo; isso, também, faz com que eles se cocem com grande intensidade.
O
dependente de cocaína, frequentemente, alimenta-se de maneira inadequada e insuficiente.
O déficit constante e progressivo de vários nutrientes induz a inúmeras complicações
em vários órgãos.
Também
com relação ao sistema respiratório, várias complicações decorrentes do consumo
de cocaína têm sido recorrentemente descritas. Bronco-espasmo, hemorragia alveolar,
inflamação dos alvéolos (alveolites), hipertensão pulmonar, edema pulmonar e fibrose
do espaço entre os alvéolos. As repercussões respiratórias do uso da droga não dependem
apenas da via de administração, mas também da presença de adulterantes, micro-organismos,
tempo de uso, susceptibilidade individual, uso compartilhado de seringas.
Também,
é importante ressaltar que pequenas doses de cocaína podem aumentar a taxa respiratória,
enquanto altas doses podem provocar depressão respiratória. No entanto, em alguns
usuários, a cocaína pode ter um efeito paradoxal, induzindo inicialmente um aumento
da taxa respiratória seguida por redução clinicamente significativa. O usuário pode
queixar-se de dor ao respirar, falta de ar, tosse, hemoptise (expectoração sanguinolenta
através da tosse), febre, sintomas de asma ou bronquite.
Cocaína e AIDS
Em 1981 o Centro de controle de doenças norte-americano
(CDC) apresentava ao mundo a definição de uma nova patologia: a síndrome da imunodeficiência
adquirida, a AIDS. Casos de morte que esperavam esclarecimento desde 1978 foram
diagnosticados. Pesquisas se multiplicaram e a atenção da opinião pública do mundo
ocidental focalizou rapidamente o problema.
Em poucos anos, o vírus
responsável foi identificado e denominado HIV. Inicial e infelizmente, porém, a
síndrome foi associada quase exclusivamente a
homossexuais,
impedindo a aplicação de métodos preventivos em relação a outras formas de transmissão,
entre elas a via sanguínea. Esta é a responsável pela transmissão tanto de mãe para
filho como pelo consumo de drogas por via intravenosa. Em 1991, aproximadamente
28% dos casos de AIDS diagnosticados nos Estados Unidos tinham a via intravenosa
como a forma de transmissão do vírus.
Os usuários intravenosos de cocaína costumam
consumir a droga em grupos, compartilhando a mesma seringa ou agulha. O surgimento
do HIV obrigou adaptações extremamente custosas tanto dos serviços de assistência
a dependentes (não acostumados a enfrentar esta doença infecciosa) como de clínicos,
inaptos para lidar com o rol de complicações da dependência de substâncias psicoativas.
Desta forma, micro-organismos presentes no
corpo de um usuário são diretamente injetados no próximo. Este uso ritual possibilita
a chegada direta do HIV ao sangue do usuário, sem a mínima proteção que é representada,
por exemplo, pelas mucosas ano-genitais durante uma relação sexual insegura (sem
o uso de preservativo).
O consumo de qualquer droga (inclusive o álcool)
reduz a capacidade de o indivíduo evitar a continuidade do consumo (de qualquer
substância) e, ao mesmo tempo, reduz a capacidade de evitar relações sexuais sem
a prevenção adequada (uso de camisinha).
Cérebro e cocaína
Atualmente, existem recursos que permitem avaliar o funcionamento cerebral
e deixam claro o enorme contraste existente entre o cérebro normal, rico e vivo
que consome bastante glicose, por exemplo, e o do usuário de cocaína, que se mostra
alterado substancial e principalmente nas regiões frontais, ou seja, nas regiões
do pensamento, do controle dos estímulos e da impulsividade.
Isso explica em parte o comportamento impetuoso dessas pessoas. Conhecer
esse fato é importante para as famílias e para os clínicos, pois ajuda a entender
por que elas não pensam muito, gastam dinheiro demais e muitas vezes se tornam violentas
(parte da violência urbana está relacionada com o uso de cocaína).
Fotografias cerebrais revelam que a diminuição do oxigênio, especialmente
nas regiões frontais provocada pelo uso crônico da cocaína, produz alterações que
não se recuperam mesmo depois de vários anos de abstinência. Existe
um limite de uso a partir do qual o usuário não recupera mais a função cerebral
perdida.
Memória, concentração, capacidade de elaborar pensamentos complexos, de ponderar
são funções seriamente prejudicadas. Uma forma de testar o cérebro de um usuário
de cocaína é a simulação de um jogo, o gambling test.
Paranoias
Elas têm muito a ver com o sistema dopaminérgico. Doses maiores de dopamina
provocam sintomas paranoides à semelhança do que ocorre com as anfetaminas, muito
consumidas nos anos de 1950 para manter as pessoas acordadas. Pilotos de avião,
por exemplo, que às vezes usavam essa droga para não dormir, tinham surtos psicóticos
em pleno voo.
De forma marcante, a cocaína produz sensações persecutórias provocadas pelo
fluxo muito rápido de dopamina no cérebro. O usuário se tranca no banheiro, imaginado
que a polícia vai invadir o local e prendê-lo. É quase um quadro semelhante ao da
esquizofrenia paranoide. Dura algumas horas, eventualmente poucos dias e depois
tende a desaparecer, mas é sinal indiscutível de que houve uma mudança importante
da química cerebral.
Na realidade, essa talvez seja a essência da dependência. Mesmo diante de
consequências negativas, a pessoa não tem forças para mudar de comportamento, porque
o lado prazeroso e reforçador é muito mais importante e forte. É uma sensação imediata,
às vezes fugaz, mas existe uma alteração no sistema de recompensa cerebral. Se não
existisse, não seria possível explicar tal comportamento.
A consequência negativa de uma substância não impede que ela continue sendo
usada, apesar de o efeito paranoide ocorrer quase imediatamente após o uso. Ou seja,
a pessoa valoriza essa etapa de efeito rápido, apesar de saber que irá enfrentar
reações complicadas.
Efeitos psicológicos
A cocaína que é inalada demora alguns minutos para
apresentar as primeiras sensações que costumam durar aproximadamente quarenta minutos;
se injetada ou fumada o efeito é mais rápido e mais intenso porém dura menos.
Esta droga produz euforia, excitação, ansiedade,
diminuição da fadiga, aumento da capacidade de trabalho e sensação de maior força
física. Esquece-se a necessidade de comer e dormir, que de outra maneira se sentiria
em certas horas do dia.
A cocaína é uma droga que desperta a agressividade,
um estimulante que dá uma sensação de poder, de que se está acima do mundo. Porém
é um poder ilusório que desaparece quando se desvanecem os efeitos da cocaína, sem
que o indivíduo tenha aprendido nada. Provoca um estado falso, sem aprendizado,
que leva o indivíduo ao escape temporal de si mesmo.
Ao nível somático, o consumo de cocaína ocasiona
dilatação das pupilas, diminuição da sensibilidade ao frio, relaxamento muscular,
aumento da pressão sanguínea e aceleração da frequência cardíaca. Como a cocaína
é um vasoconstritor, sua inalação constante provoca a degeneração do tecido local
prejudicando a membrana mucosa. Usada habitualmente ocasiona infecções das vias
respiratórias e inclusive pode chegar a produzir edema pulmonar.
Os sintomas de abuso começam parecendo-se com os
do resfriado crônico combinado com insônia e perda de peso. Em casos de abuso, se
experimentam náuseas, vômitos, irritabilidade e alucinações com temas recorrentes
como insetos que circulam sob a pele; além de perfurações do septo nasal, infecções
cutâneas e hemorragias pulmonares. O risco de overdose é frequente, pois não se
conhece o grau de pureza da droga. Após o uso intenso e repetitivo o usuário experimenta
sensações muito desagradáveis como cansaço e intensa depressão.
A tendência do usuário é aumentar a dose de uso na
tentativa de sentir efeitos mais intensos. Porém essas quantidades maiores acabam
por levar o usuário a comportamento violento, irritabilidade, tremores e atitudes
bizarras devido ao aparecimento de paranoia (chamada entre eles de "nóia").
Esse efeito provoca um grande medo nos usuários que passam a vigiar o local onde
estão usando a droga e passam a ter uma grande desconfiança uns dos outros o que
acaba levando-os a situações extremas de agressividade.
Eventualmente podem ter alucinações e delírios. A
esse conjunto de sintomas dá-se o nome de "psicose cocaína". Além desses
sintomas descritos, os usuários de cocaína perdem de forma muito marcante o interesse
sexual. O uso crônico da cocaína pode levar a uma degeneração irreversível dos músculos
esqueléticos, chamada rabdomiólise.
É certo que os usuários de cocaína relatam que aumentam
a dose quer para sentir os mesmos efeitos quer para aumentá-los. De qualquer maneira,
considera-se hoje em dia que a cocaína induz tolerância, tanto que os manuais psiquiátricos
mais atuais já admitem a tolerância induzida pela cocaína, sendo que a mesma pode
ser observada em todas as vias de administração.
Não há descrição convincente de uma síndrome de abstinência
quando a pessoa para de tomar cocaína abruptamente: ela não sente dores pelo corpo,
cólicas, náuseas, etc. O que ocorre é que essa pessoa pode ficar tomada de grande
"fissura" desejando tomar de novo para sentir os efeitos agradáveis e
não para diminuir ou abolir o sofrimento que ocorreria se realmente houvesse uma
síndrome de abstinência.
No Brasil, a cocaína é a droga mais utilizada pelos
usuários de drogas injetáveis (UDI). Muitas destas pessoas compartilham agulhas
e seringas, e se expõe ao contágio de várias doenças, entre elas as hepatites, a
malária, a dengue e a aids. Esta prática, inclusive, é hoje em dia o fator de risco
mais importante para a transmissão do HIV.
Crise de abstinência
Ex-fumantes se queixam de que a vontade de fumar nunca passa. Usuários
de cocaína que param de usar a droga não se referem a essa premência. Dizem que
ficam bem sem ela, desde que não a vejam porque, se isso acontecer, “enlouquecem”.
Cocaína não provoca uma crise de abstinência igual às outras drogas.
Os sintomas de abstinência são
peculiares a cada droga. O impacto do reflexo biológico da cocaína é diferente do
da nicotina. O sintoma agudo da cocaína é o efeito que dá prazer imediato e a sensação
de poder. Quando ele passa, o sintoma remoto da abstinência se caracteriza por diminuição
desse prazer, depressão e alienação.
Estudos indicam que, quando o usuário vê a cocaína, ou se encontra numa situação
em que pode consegui-la, ou assiste a filmes que abordam o tema, várias regiões
de seu cérebro quase que se iluminam, pois o impacto biológico é muito grande e
aumenta a vontade de consumir a droga.
A longo prazo (alguns meses) ocorrem invariavelmente
múltiplas hemorragias cerebrais com morte extensa de neurônios e perda progressiva
das funções intelectuais superiores. São comuns síndromes psiquiátricas como esquizofrenia
e depressão profunda unipolar.
·
Perda
de memória
·
Perda
da capacidade de concentração mental
·
Perda
da capacidade analítica.
·
Falta
de ar permanente, trauma pulmonar, dores torácicas
·
Destruição
total do septo nasal (se inalada).
·
Perda
de peso até níveis de desnutrição
·
Cefaleias
(dores de cabeça)
·
Síncopes
(desmaios)
·
Distúrbios
dos nervos periféricos ("sensação do corpo ser percorrido por insetos")
·
Silicose,
pois é comum o traficante adicionar talco industrial para aumentar seus lucros,
fato verificado em necropsia, exame de hemogramas.
·
Arritmias
cardíacas: complicação possivelmente fatal.
·
Trombose
coronária com enfarte do miocárdio (provoca 25% dos enfartes totais em jovens de
18-45 anos)
·
Trombose
cerebral com AVC.
·
Outras
hemorragias cerebrais devidas à vasoconstrição simpática.
·
Necrose
(morte celular) cerebral
·
Insuficiência
renal
·
Insuficiência
cardíaca
·
Hipertermia
com coagulação disseminada potencialmente fatal.
Tratamento
A dependência de cocaína
é um transtorno passível de tratamento, ao contrário do que muitas pessoas pensam.
Porém é certo que nenhum modelo de tratamento pode ser considerado eficaz para todos
os pacientes. Indivíduos que desenvolvem dependência de cocaína possuem diferentes
características e necessidades.
Estudos apontam uma
boa relação custo-benefício do tratamento. Infelizmente, o resultado mais comum
dos diversos tratamentos é a redução do consumo por algum tempo, bem como a diminuição
das atividades ilegais e do comportamento criminal do
dependente. O tratamento, porém, necessita ser entendido como um processo contínuo,
assim como modelos médicos utilizados em doenças crônicas, tal qual diabetes e hipertensão
arterial. Em não ser assim, a possibilidade de recaídas e o retorno ao padrão
de dependência crônica certamente voltam.
Raros são os usuários
que não necessitam de tratamento; muitos interrompem definitivamente o consumo após
o surgimento dos primeiros prejuízos. Outros, todavia, continuam a usar a cocaína
apesar das consequências danosas evidentes que passam a vivenciar. A necessidade
do tratamento é muitas vezes determinada pelo envolvimento obsessivo do sujeito
com a droga que passa a prejudicar os demais aspectos de sua vida.
O processo terapêutico
inicia-se com medidas para trazer o paciente para os serviços de assistência. O
dependente não procura tratamento por achar que está usando droga demasiadamente,
mas sempre frente a "situações de crise", geralmente envolvendo trabalho,
família, situação financeira, problemas legais, emergências médicas e rompimento
de relacionamentos afetivos.
Uma forma de promover
o acesso do indivíduo ao tratamento é interromper a "facilitação" familiar.
No momento do ingresso no tratamento, quase sempre o paciente tem a ilusão de poder
retornar ao uso controlado da cocaína ("dar um tempo"). Esta situação
é impossível, pois uma vez cruzada a linha invisível da dependência, a capacidade
de retorno a consumo ocasional ou controlado é definitivamente perdida. Muitas vezes
o paciente demora meses ou anos, com inúmeras recaídas e aumento dos prejuízos,
até que se conscientize deste fato.
Qualquer modelo de tratamento
para a dependência da cocaína deve incluir alguns aspectos básicos, fundamentais
para a obtenção de resultados positivos. A abstinência deve ser não somente da cocaína,
mas de todas as drogas de abuso, primeiro e principal objetivo do processo terapêutico.
Tanto o álcool como outras drogas deflagram "fissuras", mesmo meses (ou
anos) após a interrupção da cocaína; como citado acima, o consumo tem um efeito
desinibitório sobre o consumo de outras drogas (reduz a capacidade de evitar o consumo),
aumentando ainda a impulsividade do paciente.
Aspectos psico-educacionais,
tanto sobre a cocaína, álcool e outras drogas, como sobre a própria dependência,
devem sempre ser incluídos em qualquer modalidade terapêutica empregada. Este componente
auxilia o paciente a compreender e aceitar a própria dependência e sua doença. Deve
incluir aspectos farmacológicos, princípios básicos da doença, sinais de recaída
e formas de preveni-las, as consequências biopsicossociais da dependência, aspectos
familiares, capacitação e codependência de amigos e, principalmente, familiares.
O envolvimento familiar
é fundamental. Outras medidas que costumam ser incluídas no processo são terapia
individual e familiar, participação em grupos de autoajuda, busca de atividades
alternativas ao consumo de substâncias psicoativas, cuidados médicos, nutricionais,
análises toxicológicas, intervenção farmacológica prescrita por profissional
experiente no tratamento da dependência e tratamento em regime de internação (hospitalar
e comunidades terapêuticas). Quanto mais abrangente e completo o programa terapêutico,
maior a chance de recuperação.
A internação do dependente,
ao contrário do que se acreditava antigamente, não é solução para todos os pacientes.
Ao contrário, os estudos científicos realizados nas últimas décadas não comprovam
nenhuma vantagem de um método hospitalar em relação a ambulatório para toda a população
de dependentes que busca, ou é levada para o tratamento. Pelo contrário, a internação
é mais bem entendida como um método de promoção de abstinência e
desintoxicação, sendo apenas uma parte da recuperação do indivíduo, devendo sempre
ser associada a posterior seguimento ambulatorial. A internação carrega também um
estigma social importante, que é delegado ao indivíduo.
O tratamento em ambulatório,
de fato apresenta algumas vantagens sobre a internação, por ser menos custoso (possibilita
ao serviço o tratamento de um maior número de dependentes), causar menor interrupção
na vida do indivíduo (muitos dependentes que procuram tratamento, por exemplo, continuam
a manter atividades sociais e ocupacionais importantes, auxiliando na manutenção
de toda sua família).
O dependente aceita
mais facilmente o tratamento ambulatorial e este modelo busca que ele lide com sua
compulsão em seu "mundo real" (ao qual irá retornar muitas vezes despreparado
após uma internação). Por outro lado, existem algumas indicações importantes em
que a internação é inevitável e altamente recomendada.
Indicações
de internação de dependentes
1.
Risco de suicídio, agressividade
física importante, quadro psicótico;
2.
Doenças médicas ou psiquiátricas
associadas que indiquem internação (infarto de miocárdio, convulsões, etc.);
3.
Intensa disfunção de vida do
dependente ou incapacidade de lidar com tarefas básicas de sua própria rotina
(cuidados pessoais, alimentação, etc.);
4.
Dependência associada de substâncias
que requerem tratamento hospitalar (abstinência de álcool ou opioides);
5.
Fracasso das tentativas de abordagem
ambulatorial do dependente;
Intervenções
familiares no tratamento da Dependência
MODELOS DE TERAPÊUTICA FAMILIAR
|
NÍVEL DE INTERVENÇÃO
|
OBJETIVOS
|
Orientação familiar
|
Orientar os familiares sobre a filosofia e abordagens do tratamento
individual
|
Informar a família sobre o programa terapêutico e a inclusão do
paciente e solicitar suporte familiar
|
Grupos
psico-educacionais de familiares
|
Orientação sobre aspectos vivenciais (funcionamento familiar) com
ênfase em aspectos do consumo e da dependência
|
Informar familiares sobre aspectos de relações pessoais e como estas
são relevantes no abuso e dependência de substâncias
|
Aconselhamento familiar
|
Contrato de tratamento familiar com o objetivo de
resolução de problemas familiares específicos identificados no tratamento do
dependente.
|
Auxiliar na solução de problemas identificados
pelos integrantes da família que sejam relacionados ao consumo de drogas e/ou
álcool
|
Terapia familiar
|
Contrato terapêutico com a família para
intervenções com o objetivo de tratar disfunções crônicas e sistêmicas.
|
Abordar e procurar modificar áreas de
comprometimento familiar (sistema), relacionando-as à dependência de
substâncias psicoativas.
|
Al-Anon
|
Grupo de autoajuda com enfoque familiar
|
Não é considerado tratamento, porém possibilita
compartilhar experiências com outras famílias de dependentes.
|







