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4/06/2015

Neurobiologia da Dependência Química

Os povos primitivos consideravam as doenças o resultado de possessões espirituais, de um castigo dos deuses ou obra do demônio. Para os assírios shertu significava ao mesmo tempo doença, castigo e cólera divina.  A grande transformação aconteceu durante a Antiguidade Clássica, na Grécia: Hipócrates (460-377a.C.), até então um sacerdote do Templo de Asclépio (deus da Medicina), rompeu com a crença da influência dos deuses na gênese das doenças e propôs que as causas naturais originavam as enfermidades e por isso essas deveriam ser tratadas por meios naturais. A partir de então a Medicina deixou de ser uma religião para se tornar uma ciência.
Uma importante contribuição para o entendimento das doenças surgiu no século XVII com o médico inglês Thomas Sydenham (1624-1689). Sydenham acreditava na existência de espécies mórbidas, isto é, formas típicas de doença que se repetiam de modo semelhante nos indivíduos. Assim, propunha que as doenças fossem observadas e descritas exaustivamente, com o intuito de acumular informações afins. Foi o nascimento da nosologia, ramo da medicina que estuda e classifica as doenças.
·         Anatomia patológica
Ramo da medicina que estuda as alterações anatômicas introduzidas nas células e tecidos pelo processo da doença.
·         Etiologia
Ramo da medicina cujo objeto é a pesquisa e a determinação das causas e origens de uma determinada doença.
·         Fisiologia
Estudo das funções e do funcionamento normal dos seres vivos, especialmente dos processos físico-químicos que ocorrem nas células, tecidos, órgãos e sistemas dos seres vivos sadios.
·         Fisiopatologia
Estudo das alterações funcionais dos seres vivos durante a presença de uma determinada doença.
·         Nosologia
Ramo da medicina que estuda e classifica as doenças.
·         Patogenia
Modo de origem ou de evolução de qualquer processo mórbido.
·         Semiologia
Ramo da medicina dedicado ao estudo do melhor meio e modo de se examinar um doente, especialmente de se verificarem os sinais e sintomas.
·         Sinal
Achado da investigação clínica que pode ser constatado independentemente da descrição do doente (tosse, pus, inchaço, corte, febre, suor)
·         Sintoma
Achado da investigação clínica que pode ser constatado apenas com o auxílio descritivo do doente (dor, anestesia, formigamento, mal-estar)
O século XIX ficou conhecido como o Século da Ciência. Um dos grandes marcos do período foi a descoberta dos germes. Até então, achava-se que muitas doenças eram causadas pelo ar poluído e que as larvas brotavam espontaneamente de seres em putrefação. A partir das descobertas do século XIX, doença passou a ser vista como um modo de viver anormal, mas sem diferença dos processos fundamentais que mantêm a vida.
Isto quer dizer fundamentalmente o seguinte: a doença é um processo dinâmico, onde uma determinada causa(infecção por bactérias, contusões, fogo) [etiologia], por meio de algum mecanismo (proteínas da bactéria, impacto físico, impacto térmico) [patogenia], provoca alterações no funcionamento do corpo (alterações circulatórias, digestivas, neurológicas) [fisiopatologia] e eventualmente causa lesões reversíveis (inflamação do fígado, fraturas) ou irreversíveis (cicatrizes, retração do órgão) [anatomia patológica]. Essas alterações se manifestam sob a forma de sinais (febre, inchaço, tosse, pus) e sintomas (dor, fraqueza, indisposição) [semiologia]. Todo esse processo possui uma evolução dentro das características de cada doença.
O conceito atual de doença estava quase pronto. A contribuição final veio a partir da segunda metade do século XX: a valorização da totalidade e da individualidade daquele que vivencia a doença. A totalidade significa que o todo é algo mais do que a soma das partes que o constituem. A atenção à individualidade se preocupa com o papel que o processo da doença desempenha em cada enfermo. Cada indivíduo apresentará os mesmos sintomas, porém, de modo mais ou menos grave e vivenciado das mais diferentes maneiras.
Compulsão para o consumo
A experiência de um desejo incontrolável de consumir uma substância. O indivíduo imagina-se incapaz de colocar barreiras a tal desejo e sempre acaba consumindo.
Aumento da tolerância
A necessidade de doses crescentes de uma determinada substância psicoativa para alcançar efeitos originalmente obtidos com doses mais baixas.
Síndrome de abstinência
O surgimento de sinais e sintomas de desconforto, de intensidade variável, quando o consumo de substâncias psicoativas cessou ou foi reduzido.
Alívio ou evitação da abstinência pelo aumento do consumo
O consumo de substâncias psicoativas visando ao alívio dos sintomas de abstinência. Como o indivíduo aprende a detectar os intervalos que separam a manifestação de tais sintomas, passa a consumir a substância preventivamente, a fim de evitá-los.
Relevância do consumo
O consumo de uma substância torna-se prioridade, mais importante do que coisas que outrora eram valorizadas pelo indivíduo.
Estreitamento ou empobrecimento do repertório
A perda das referências internas e externas que norteiam o consumo. À medida que a dependência avança, as referências voltam-se exclusivamente para o alívio dos sintomas de abstinência, em detrimento do consumo ligado a eventos sociais. Além disso passa a ocorrer em locais onde sua presença é incompatível, como por exemplo o local de trabalho.
Reinstalação da síndrome de dependência
O ressurgimento dos comportamentos relacionados ao consumo e dos sintomas de abstinência após um período de abstinência. Uma síndrome que levou anos para se desenvolver pode se reinstalar em poucos dias, mesmo o indivíduo tendo atravessado um longo período de abstinência.
Dependência química e doença
O conceito de dependência química como uma doença que possui uma causa provocadora de alterações ao funcionamento do cérebro, que se manifestam por meio de sinais e sintomas específicos começou a ser definido a partir do século XX. Em primeiro lugar, surgiram conceitos baseados em descrições psicopatológicas. A ideia era encontrar uma descrição que se servisse para todos os dependentes. Nos anos cinquenta e sessenta, autores como E. M. Jellineck (1890-1963), observaram que os dependentes poderiam ser agrupados em classes distintas, dependendo das características de cada um.
Nos anos setenta e oitenta, o grupo londrino do National Addiction Centre liderado por Griffith Edwards combinou e ampliou os conceitos anteriores e chegou ao que utilizamos hoje: existe um grupo de sinais e sintomas que são observados em níveis variados de gravidade em qualquer dependente. Não existe a dicotomia dependente e não-dependente, tampouco diferentes tipos específicos, mas sim uma síndrome de dependência, baseada em sinais e sintomas, cuja gravidade varia ao longo de uma linha contínua.
http://apps.einstein.br/alcooledrogas/novosite/imagens/shim.gifhttp://apps.einstein.br/alcooledrogas/novosite/imagens/shim.gifPorque se utiliza o termo 'síndrome' de dependência
Um homem de tez amarelada demonstra claramente a vigência de uma dor que lhe causa grande sofrimento. Sua posição, trazendo o tórax para frente e mantendo o abdômen elevado e tenso, procura minimizar a intensidade da dor que o acomete (posição antálgica). A pele amarelada é um sinal denominado icterícia. A icterícia é depósito de bilirrubina na pele e mucosas do corpo. O responsável pela metabolização e eliminação da bilirrubina é o fígado. O excesso de bilirrubina no corpo, sinaliza que o fígado não está dando conta de metabolizá-la e eliminá-la como deveria. Isso é tudo que se pode deduzir a partir desta imagem. Quando se consegue determinar um conjunto de sinais e sintomas provenientes da disfunção de um determinado órgão, mas cuja causa é ou ainda está indefinida, dizemos trata-se de uma síndrome.
Várias causas relacionadas ao fígado são capazes de levar à síndrome ictérica. Entre estas, estão a exposição a agentes tóxicos, como o chumbo, o uso pesado de álcool, reações adversas aos medicamentos, reações autoimunes e a infecção pelos vírus da hepatite. No caso dos vírus, há um modo de transmissão. O vírus da hepatite A é transmitido por alimentos contaminados ou por gotículas de saliva. Já os vírus da hepatite B e C são transmitidos pelo contato sexual ou pelo sangue contaminado. Por meio da história clínica, do exame físico e de exames laboratoriais é possível saber o que causou, ou seja, a etiologia desta doença.
As células do fígado (hepatócitos) desempenham diversas funções. Estão, também, dispostas anatomicamente de maneira a facilitar tal desempenho. Os fatores etiológicos causadores de icterícia atacam os hepatócitos e desconfiguram sua disposição (arquitetura). Isso pode acontecer que maneira direta (ação tóxica do chumbo ou álcool sobre a célula) ou indireta (células de defesa atacam os hepatócitos infectados pelo vírus). Com o auxílio da fisiologia, é possível saber não apenas o que causou (etiologia), mas também, o que (patogenia) e como (fisiopatologia) se causou, ou seja, quais foram os mecanismos que ocasionaram aquela doença.
Os mecanismos fisiopatológicos podem levar ao surgimento de lesões. No caso da hepatite, a lesão são a morte dos hepatócitos (necrose) e a desconfiguração de sua arquitetura. As lesões são a manifestação anatômica dos mecanismos fisiopatológicos da doença no organismo humano (anatomopatológico). O fígado consegue reverter a lesão causada pelo agente etiológico até certo ponto. Caso lesão seja muito extensa, a recuperação do órgão é irreversível e a evolução da doença pode deixar marcas (sequelas) ou ser fatal.
A presença da lesão anatomopatológica causa alterações no funcionamento do organismo, que procura se adaptar a esta para sobreviver e prejudicar o mínimo possível o funcionamento dos outros órgãos. Muitos hepatócitos morreram. Os restantes têm dificuldade para metabolizar a bilirrubina no sangue. O excesso de bilirrubina no sangue é incompatível com a vida. Desse modo, armazená-la na pele e nas mucosas dos órgãos é uma saída temporária para contornar a situação. Portanto, a presença da lesão e as adaptações do corpo a sua presença repercutem clinicamente na forma de sinais e sintomas específicos (sintomatologia).
As ilustrações permitem, assim, o entendimento do conceito de síndrome e doença. Na primeira, há apenas a descrição de sinais e sintomas relacionados a um determinado órgão. Na segunda, além da sintomatologia, é possível determinar a causa exata (etiologia), o mecanismo gerador do mal (patogenia) e a natureza da lesão (anatomopatologia) que levou ao surgimento dos sinais e sintomas observados (sintomatologia).
 A síndrome de dependência é causada pela confluência de fatores biológicos, psicológicos e sociais.
Por isso fala-se em síndrome de dependência: há uma sintomatologia tipicamente observada em qualquer dependente, seja ela mais ou menos grave. Esses sinais e sintomas (sintomatologia) provavelmente derivam de alterações anatômicas (anatomopatologia) localizadas no cérebro e causadas pela presença constante da droga no organismo. Mas o que levou o indivíduo à busca constante da droga (etiologia) não pode ser atribuído a uma única causa. Além disso, não se conhece totalmente os mecanismos que levam a essas alterações (fisiopatologia), tampouco a natureza exata das lesões (anatomopatologia). A neurobiologia procura elucidar as dúvidas contidas nesses campos, isto é, as alterações anatômicas produzidas pelo consumo continuado de substâncias psicoativas, as alterações anatômicas ocasionadas e a repercussão clínica destas.
Portanto, se há sinais e sintomas que se repetem numa classe de indivíduos (os dependentes), então deve haver modificações no cérebro que justifiquem tal fenômeno. Deve haver uma base neurobiológica para a dependência química. A neurociência vem se dedicando a desvendá-la desde os anos cinquenta. Meio século depois, alguns modelos foram propostos e serão discutidos aqui. A dependência química é um fenômeno complexo, ocasionada por diversos fatores de natureza biológica, psicológica e social. Desse modo jamais será explicada, tampouco reduzida a um modelo neurobiológico. A existência deste modelo, no entanto, consolida a visão da dependência química como uma síndrome nosológica e abre novas fronteiras para a descoberta de uma farmacoterapia específica e efetiva para o tratamento e alívio da sintomatologia e das complicações clínicas da mesma.
Anatomia do Sistema Nervoso.
O sistema nervoso rege as relações do homem com o mundo exterior e ajusta e coordena a atividade dos órgãos. É esse o sistema encarregado de perceber o mundo e promover as adaptações necessárias para a manutenção da vida. Ele coleta informações, compara-as àquelas arquivadas em experiências anteriores e decide a melhor maneira de lidar com a situação. É o sistema responsável pelo gerenciamento da informação do organismo. Informação: eis a unidade monetária do sistema nervoso.
Os órgãos dos sentidos são os informantes. São eles que retiram do ambiente a informação bruta, a matéria prima. Essa informação chega ao sistema nervoso central. Após analisá-la, encarrega o sistema muscular e esquelético da execução de suas decisões. Isso pode significar a contração de uma glândula, o aumento da tensão muscular para preparar uma fuga, ou o aviso de que o ambiente é propício para o relaxamento.
As divisões do sistema nervoso
O sistema nervoso humano é dividido didaticamente em sistema nervoso central e sistema nervoso periférico. O sistema nervoso central é composto pelo encéfalo e pela medula espinhal. O encéfalo é composto pelo cérebro, cerebelo e tronco encefálico. Esse último tem continuação com a medula espinhal.
Funcionalmente, pode-se dividir o sistema nervoso em sistema nervoso de vida de relação ou somático, ou seja, aquele que relaciona o organismo com o meio ambiente; e o sistema nervoso visceral, que inerva e controla as estruturas viscerais. Esse último atua de maneira autônoma, ou seja, independentemente da vontade do indivíduo.
Exemplos da ação desse sistema são os batimentos cardíacos, o movimento dos intestinos, a secreção de hormônios, o suor, entre outros.
É claro que qualquer divisão para o sistema nervoso tem propósito exclusivamente didático, uma vez que as partes atuam de maneira integrada e una, tanto do ponto de vista anatômico, quanto funcional.
Dentro do sistema nervoso, o cérebro é a estrutura mais conhecida, desenvolvida e importante. Ele ocupa cerca de 80 - 85% da cavidade craniana. O cérebro é o órgão-alvo para o estudo das bases neurobiológicas da dependência química. As alterações causadas pelo consumo de drogas, bem como os sistemas relacionados ao surgimento da dependência estão nele situados.
Anatomia macroscópica do cérebro
Genericamente, pode-se dizer que o cérebro é composto por dois hemisférios, unidos por uma estrutura denominada corpo caloso, que permite a troca e a integração das informações entre ambos. À primeira vista, nota-se que a superfície do cérebro é dotada de uma série de circunvoluções denominadas giros, separados e delimitados por depressões denominadas sulcos. A existência dos sulcos permite um aumento considerável da superfície do cérebro, sem grande aumento do volume.
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http://apps.einstein.br/alcooledrogas/novosite/imagens/shim.gifO cérebro humano observado de cima. À esquerda as meninges, membranas que envolvem o cérebro e cuja função é proteger o cérebro e dar sustentação aos vasos sanguíneos locais. Ao centro, os dois hemisférios cerebrais, onde se observam os giros e sulcos. À direita, removida parte central dos hemisférios, vê-se o corpo caloso, estrutura que integra os dois hemisférios e permite a comunicação entre ambos. VIRTUAL HOSPITAL (www.vh.org)
O sistema nervoso central é envolvido por membranas denominadas meninges. Há cavidades entre as meninges e o cérebro que são preenchidos por líquido incolor, cuja função é amortecer qualquer impacto mecânico sofrido pelo sistema nervoso e facilitar a distribuição e o acesso das células de defesa a qualquer região deste. Esse líquido aquoso é conhecido por líquor.
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O sistema nervoso central em relação ao corpo humano.
Os lobos cerebrais
Os sulcos cerebrais dividem o cérebro em quatro porções, denominadas lobos. São elas o lobo frontal, temporal, parietal e occipital. Dentro dos lobos cerebrais há regiões que desempenham funções específicas.
Desse modo as funções memória, linguagem, audição e emoções encontram-se fundamentalmente no lobo temporal; as funções psíquicas superiores, tais como raciocínio, abstração, planejamento e resolução de problemas encontram-se no lobo frontal; a recepção e o processamento das informações vindas dos órgão do sentido e das vísceras encontram-se no lobo parietal; enquanto a visão está concentrada no lobo occipital.
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“Os lobos cerebrais recebem sua denominação de acordo com os ossos do crânio com os quais se relacionam. Assim, temos os lobos frontal, temporal, parietal e occipital. A divisão em lobos, embora de grande importância clínica, não corresponde a uma divisão funcional, exceto pelo lobo occipital, que parece ser todo relacionado com a visão.” Ângelo Machado. Neuroanatomia funcional. RJ: Atheneu; 1988.
Mais uma vez, não é possível imaginar o sistema nervoso dividido em estruturas e funções isoladas. Todas as estruturas e suas respectivas funções estão inter-relacionadas e interagem entre si sem cessar.
A organização interna do cérebro
Uma rápida olhada num corte do cérebro deixa evidente até para o olhar mais desatento a presença de duas tonalidades: uma escura, composta pela fina superfície externa do cérebro e por alguns núcleos na base cerebral; e outra mais clara, que preenche os espaço delimitado pela superfície externa e pelos núcleos. A porção escura é denominada substância cinzenta, composta pelo córtex cerebral (superfície externa) e pelos núcleos da base. A porção mais clara é denominada substância branca.
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A organização interna do cérebro. Nota-se de pronto a presença de duas tonalidades: uma mais escura, denominada substância cinzenta, e outra mais clara, denominada substância branca. A diferença de cores se dá porque a primeira é composta por corpos neuronais e a segunda, por axônios. VIRTUAL HOSPITAL (www.vh.org)
A diferença de cores se dá porque o córtex e os núcleos da base são compostos por corpos neuronais e a substância branca por axônios, estruturas que serão discutidas a seguir.
Anatomia microscópica do cérebro
O cérebro é composto por células denominadas neurônios. Todo o neurônio é composto por um corpo neuronal, dendritos e axônio. A comunicação entre os neurônios é feita por meio de uma terminação especial, denominada sinapse.
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http://apps.einstein.br/alcooledrogas/novosite/imagens/shim.gifOs componentes do neurônio. Os corpos neuronais povoam o córtex e os núcleos da base, conhecidos por substância cinzenta. A substância branca é na realidade os prolongamentos dos corpos neuronais (axônios). O revestimento dos axônios, uma camada gordurosa chamada bainha de mielina, lhe confere a coloração mais clara.
1. Corpo neuronal: a porção mais importante da célula, onde se localizam o núcleo e todas as outras organelas responsáveis pela produção de energia e pela síntese de proteínas e outras substâncias.
2. Dendritos: são prolongamentos do corpo celular que se comunicam com corpos ou axônios de outros neurônios.
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http://apps.einstein.br/alcooledrogas/novosite/imagens/shim.gifCorpos neuronais e seus prolongamentos. Há uma grande possibilidade de ramificações, que visam a ampliar as redes de comunicação entre os diversos neurônios do organismo.
3. Axônios: são prolongamentos de extensões variadas (podendo ir milímetros ou metros). Sua função é conduzir as informações de neurônio para o outro. Os axônios são revestidos por uma camada lipídica (gordurosa), denominada bainha de mielina, que o isola do meio circundante. É essa camada gordurosa a responsável pela cor mais clara da substância branca do cérebro.
4. Sinapse: são junções entre dois neurônios, através da qual as informações provenientes de um neurônio podem ser propagadas, bloqueadas, potencializadas ou integradas com informações de outros neurônios.
Há ainda alguns aspectos relevantes acerca da organização dos neurônios, como a sua forma de agrupamento e a emissão de seus prolongamentos, que serão tratamentos conjuntamente com a fisiologia do sistema nervoso central.
Fisiologia do Sistema Nervoso
Uma afirmação é fundamental quando se procura um ponto de partida para o entendimento da fisiologia do cérebro e de todo o sistema nervoso:
O CÉREBRO É UM ÓRGÃO ELÉTRICO
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O sistema nervoso processa a informação a partir da conversão de estímulos sensoriais em estímulos elétricos e químicos.
A principal função do sistema nervoso é captar informação sensorial do meio externo, analisá-la e enviar informação aos órgãos do corpo para que respondam à informação que o cérebro recebeu. Isso se dá a partir da conversão dos estímulos sensoriais (visão, gustação, tato, dor, calor) em informações elétricas, que se convertem em informação química na sinapse, novamente em informação elétrica e assim por diante. Após a tomada de conhecimento da informação pelo cérebro, o mesmo processo se sucede até atingir o órgão alvo, onde se converte em energia motora (contração do músculo, liberação de hormônios, tremores, contração das glândulas do suor ...).
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O modelo da lâmpada e da bateria. O problema do espaço entre os fios, que impossibilitava a passagem da energia elétrica, foi resolvido pela colocação de uma solução iônica, capaz de conduzir a eletricidade ao fio seguinte.
Um neurônio funciona de um modo semelhante. A célula é capaz de gerar estímulos elétricos, que se propagam pelos axônios até a terminação sináptica. Nessa são despejados neurotransmissores, que se ligam a receptores do neurônio seguinte, propagando assim o estímulo.
O modelo da bateria e da lâmpada
Tomando por modelo uma bateria e uma lâmpada. A bateria é um dispositivo capaz de gerar energia elétrica. A lâmpada consegue fornecer luz (energia térmica) a partir da passagem da corrente elétrica em seu interior.
Nos polos de um desses objetos, há dois fios de cobre. O cobre é um bom condutor de energia elétrica. Esses fios se prolongam um em direção ao outro mas sem se tocarem. Os dois objetos estão fixos e irremovíveis e os fios são inflexíveis. Como seria possível a obtenção de luz, uma vez que fisicamente é impossível fazer com os fios se toquem?
Uma solução de água e sal resolveria o problema. O sal (cloreto de sódio) quando diluído em água transforma-se numa solução iônica e suas cargas permitem a passagem de energia. Desse modo, por meio de um artifício químico, foi possível à energia elétrica gerada pela bateria continuar seu caminho até a lâmpada. O calor dissipado pela corrente elétrica dentro da lâmpada se transforma em energia térmica, em luz. Uma forma de energia se convertendo em outra, viabilizada pela presença de uma mistura iônica (água e sal).
Mas o que poderia ser feito modular a intensidade da luz, por exemplo, como torná-la mais intensa? Algumas soluções seriam possíveis.
1.     Concentrar mais o soluto. Quanto mais sal for colocado na solução, mais íons estarão disponíveis e a energia elétrica pode passar com mais intensidade.
2.     Aumentar a carga da bateria. Quanto mais forte o estímulo elétrico, maior a intensidade da luz.
3.     Aumentar o diâmetro do fio. Quanto maior o calibre do fio, menor a resistência do mesmo à corrente elétrica até chegar à lâmpada.
4.     Escolher um melhor condutor. O ouro, por exemplo, conduz energia elétrica melhor do que o cobre.
Trazendo esse modelo para o sistema nervoso, poder-se-ia dizer que a bateria são os corpos neuronais, capazes de gerar estímulos elétricos. Os fios condutores dessa energia seriam os axônios. Da mesma forma que nossos fios convencionais necessitam serem encapados com isolantes(borracha) para 'canalizar' a corrente elétrica, os axônios são encapados por bainhas de mielina. As terminações dos fios, muito próximas mas intocáveis, são as sinapses.
No interior da sinapse a propagação do estímulo se dá por meio de neurotransmissores. Os neurotransmissores viabilizam a propagação do estímulo elétrico gerado pelo neurônio ligando-se a receptores, localizados na membrana do neurônio seguinte. Para modular a intensidade do estímulo, esses receptores podem variar em número (fio mais ou menos calibroso) ou em sensibilidade à presença do neurotransmissor (fio de cobre ou de ouro).
Por fim, a lâmpada equivale ao resultado da ordem enviada pelo sistema nervoso aos órgãos do corpo. Por exemplo, ao captar do ambiente um aroma agradável de comida, o cérebro prepara o organismo para receber o alimento, ordenando a secreção da saliva e do suco gástrico para digeri-lo. A intensidade das secreções dependerão do tamanho da fome e do quanto se gosta daquele tipo de comida.
A sinapse e os neurotransmissores
Neurotransmissores são substâncias liberadas na sinapse após a chegada de um estímulo elétrico. Eles são produzidos pelas mitocôndrias (localizadas próximas ao botão sináptico) e armazenados em vesículas. A chegada do estímulo elétrico provoca a fusão das membranas da vesícula com as membranas do terminal do axônio (membrana pré-sináptica), liberando os neurotransmissores. Esses se ligam aos receptores, localizados na membrana do neurônio seguinte (membrana pós-sináptica).
Quando estimulados pelos neurotransmissores, os receptores despolarizam a membrana do neurônio, isto é, geram um novo estímulo elétrico. Desse modo, uma informação enviada na forma de um estímulo elétrico converteu-se em informação química, que em seguida foi novamente convertida em estímulo elétrico.
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A sinapse é o local onde a informação é transferida de um neurônio para o outro. Nas proximidades da terminação, os axônios perdem sua bainha de mielina e se dividem em numerosos ramos terminais [figura à esquerda]. A parte 'desencapada' da terminação do axônio se dilata para formar o botão sináptico [figura à direita], que aumenta a área de contato. Na sinapse a informação elétrica é convertida em informação química, por meio da liberação de neurotransmissores. Os neurotransmissores são produzidos pelas mitocôndrias e armazenados em vesículas, posicionadas próximas à membrana do axônio. Os neurotransmissores possuem funções específicas, podendo ser, por exemplo, inibitórios ou excitatórios. Sua presença na sinapse estimula a membrana do neurônio seguinte, e se propaga o estímulo elétrico original. FONTE (imagem e texto): Netter F. Fisiologia e neuroanatomia funcional. SP: Lemos Ed. 1997.
Vários tipos de substâncias atuam como neurotransmissores, podendo ser elas hormônios (hormônios tireoidianos, hipofisários, insulina), aminoácidos (glicina, glutamato, GABA), aminas (noradrenalina, serotonina, dopamina) e a acetilcolina. Cada neurotransmissor tem uma mensagem específica para o neurônio seguinte. Quanto mais neurotransmissores forem liberados na fenda (tal qual o sal no modelo da bateria e da lâmpada), mais intenso o estímulo será. Quanto mais receptores estiverem disponíveis na membrana do neurônio (calibre do fio) e quanto mais sensíveis eles forem àquele neurotransmissor (metal condutor), com mais intensidade o estímulo se dará. Portanto a quantidade de neurotransmissores secretados na fenda sináptica, o número e a sensibilidade dos receptores são importantes mecanismos para regular a intensidade de um estímulo.
A neurotransmissão. A chegada de um estímulo elétrico [1] faz com que a vesícula de neurotransmissores se funda à membrana pré-sináptica [2], provocando liberação destes [3]. Na fenda sináptica, os neurotransmissores se ligam ao seu receptor específico [4], que despolariza a membrana pós-sináptica, propagando o estímulo elétrico [5]. O organismo, logo após a propagação do estímulo, retira rapidamente o neurotransmissor da fenda. Isso acontece de três maneiras: a bomba de recaptação recupera ativamente os neurotransmissores liberados [6] e os armazena novamente [7]. Enzimas presentes na fenda destroem os neurotransmissores [8]. Os neurotransmissores saem da fenda espontaneamente (difusão) [9].
Outro fator regulador importantíssimo é a remoção do neurotransmissor da fenda sináptica. Quanto mais tempo o neurotransmissor permanecer na sinapse, maior será o estímulo propagado. Desse modo, é importante que ele seja retirado rapidamente da fenda. A remoção dos neurotransmissores se dá pela [1] saída espontânea do neurotransmissor para o meio externo (difusão), [2] destruição do neurotransmissor por enzimas, [3] recuperação dos neurotransmissores por meio de bombas de recaptação, para serem re-armazenados em vesículas e reaproveitados. As bombas de recaptação merecerem destaque, por estarem envolvidas no mecanismo de ação da cocaína, da anfetamina e do ecstasy no cérebro, como será visto adiante.
O estímulo elétrico
Já é sabido que o cérebro é um órgão elétrico. Isto é, as informações que recebe e envia para o meio ambiente, são transmitidos por meio de impulsos elétricos e químicos. A informação química é transmitida por meio da interação de neurotransmissores e receptores. No sistema nervoso, os estímulos elétricos são chamados de potenciais de ação. Os potenciais de ação são gerados pela diferença de concentração de íons misturados aos líquidos de dentro e de fora da células nervosas. Os íons possuem carga elétrica positiva ou negativa.
Em qualquer mistura, há sempre a tendência ao equilíbrio, isto é, as partículas sempre alcançam uma distribuição semelhante (homogênea) por todo o líquido. Isso pode ser facilmente percebido quando se faz suco em pó. Inicialmente a cor do pó se concentra numa porção do líquido e aos poucos vai se espalhando (se difundindo), até deixar o líquido com uma cor única (homogênea). Esse fenômeno natural é denominado difusão.
As células neuronais são delimitadas por membranas. As membranas impedem que moléculas grandes (como as proteínas) entrem e saiam da célula, mas seus buracos são muito grandes para impedirem o livre trânsito dos íons. Como partículas de uma mistura, eles tendem a se misturar igualmente dentro e fora da célula.
As membranas das células, no entanto, possuem uma estrutura denominada bomba de sódio (Na+) e potássio (K+). Essa bomba (tal como uma bomba de dragagem) coloca para fora o máximo possível de sódio e coloca para dentro o máximo possível de potássio interior da célula possui proteínas com cargas negativas, que são muito grandes para atravessarem a parede das membranas e ficam retidas. Para compensar essa carga negativa, os íons cloreto (Cl-) vão naturalmente para fora da célula (difusão).
Qual o resultado final. Dentro do neurônio há mais sódio e proteínas com cargas negativas. Fora do neurônio há mais potássio e cloreto. Devido a esse diferencial elétrico criado pela bomba de sódio e potássio e pela presença das proteínas com cargas negativas, o interior do neurônio é cerca de 70 milivolts (mV) mais negativo que o meio extracelular.
Na figura à esquerda vê-se a distribuição dos íons (eletrólitos), elementos químicos dotados de cargas elétricas, dentro e fora das células. Vê-se de pronto que o interior das células é mais rico em potássio e o exterior, em sódio. Isso acontece devido a existência da bomba de sódio e potássio retira ativamente (ou seja, com gasto de energia) o sódio da célula e o troca por potássio extracelular. Isso torna o interior da célula mais negativo.
A propagação do estímulo elétrico (despolarização)
A pele possui receptores especializados para detectar estímulos táteis. Isso quer dizer que esses receptores são capazes de converter estímulos mecânicos em elétricos. Quando eles recebem tal estímulo do meio ambiente (por exemplo, uma picada de pernilongo), ocorre um fenômeno chamado despolarização.
O interior de suas células é mais negativo que o exterior, à custa do trabalho da bomba de sócio e potássio. As membranas de suas células, porém, possuem canais que permitem a entrada e saída rápida de íons que a bomba de sódio e potássio tornara desiguais. Com a chegada do estímulo, esses canais são abertos e o interior da célula vai se tornando positivo. Isso gera o potencial de ação (estímulo elétrico). O interior da célula que era de -70mV vai para +20mV. Nesse ponto, os canais se fecham e a bomba volta trocar íons sódio por potássio, tornando o interior da célula novamente negativo (repolarização).
Esse fenômeno vai se propagando ao longo do axônio até a sinapse. Seria como se o axônio fosse uma carreira de pólvora inflamada e a despolarização a chama que a percorre. A chama é a despolarização. Tudo o que estiver atrás da chama já se repolarizou. O que estiver adiante são membranas ainda em repouso. Quando esse estímulo elétrico chega à sinapse as vesículas de neurotransmissores são liberadas na fenda. O neurotransmissor se liga aos receptores que despolarizam a membrana do neurônio seguinte. E o estímulo elétrico segue.
A despolarização da membrana. Nas imagens acima, a descarga elétrica caminha ao longo do axônio até chegar ao botão sináptico, onde provocará a liberação de neurotransmissores. Esses, ao se ligarem ao receptores, despolarizarão a membrana do neurônio seguinte.
Especificidade
Apesar de qualquer neurônio funcionar da mesma maneira, cada um desempenha funções específicas no sistema nervoso. Há neurônios especializados em receber os estímulos do meio ambiente e encaminhá-los à medula. Ali, outra classe de neurônios recebe essas informações e as encaminha ao cérebro. O cérebro, por fim, tomará conhecimento da natureza do estímulo e lhe enviará uma resposta.
Os neurônios desempenham funções específicas dentro do sistema nervoso. Há neurônios encarregados da coleta de informações (visão, olfato, gustação, tato, audição). Na medula, estão os responsáveis pelo envio destas às principais regiões do cérebro. No cérebro elas serão comparadas com estímulos e experiências anteriores, serão arquivadas, vivenciadas. A chegada do estímulo ao cérebro provocará uma reação, que se converterá em uma resposta motora e psíquica.
Mas uma determinada função não é desempenhada por uma única célula, mas sim por um grupo de neurônios semelhantes. Desse modo, neurônios semelhantes se agrupam formando sistemas de neurotransmissão. Dentro de um sistema, o conjunto de corpos neuronais é denominado núcleo ou gânglio, enquanto o conjunto de axônios é chamado trato. O quadro de força de uma casa pode servir de modelo. Suponha-se que as fiações saídas do quadro pudessem ser organizadas em fios de iluminação, de aquecimento, de aparelhos de áudio, de aparelhos de vídeo, de eletrodomésticos de cozinha. O ponto do quadro de onde saem os fios de iluminação seria denominado núcleo de iluminação. Já o cano que reúne todos esses fios, o trato da iluminação.
Há incontáveis sistemas de neurotransmissão, todos absolutamente integrados. Em geral desempenham mais de uma função dentro do sistema nervoso e quase nunca com exclusividade. Dentro de cada sistema, pode haver divisão em outros menores e mais especializados ainda. Há sempre combinações, modulações e interferências recíprocas.
Colocados os principais aspectos anatômicos e funcionais do sistema nervoso, o mecanismo neurobiológico da dependência será o próximo tópico. Nesse serão apresentadas as repercussões para o sistema nervoso, decorrentes da presença constante de uma substância no organismo.
O Sistema de Recompensa
A compreensão global e consensual acerca dos mecanismos pelos quais a substâncias psicoativas levam à dependência ainda está no começo. Fatores das mais variadas naturezas participam desses processos tornando limitadas abordagens a partir de um único foco. Por que indivíduos conseguem o convívio eventual com a substância, sem prejuízo de seus compromissos sociais, ao passo que outros o fazem de maneira abusiva e desestruturada? Por que os sintomas de abstinência parecem ser menos intensos em ambientes protegidos? Por que aqueles que buscam uma substância psicoativa têm propósitos tão distintos no que querem sentir?
O entendimento neurobiológico, em sua área de atuação, procura elucidar como as drogas e sua interação com um organismo vivo são capazes de direcioná-lo para um uso contínuo, muitas vezes desprovido de limites, onde a preocupação maior é estar em contato com a substância e seus efeitos físicos e psíquicos.
O sistema de recompensa. "Estruturas que compõem o sistema límbico têm um papel crucial na expressão das emoções e na atividade do sistema de recompensa do cérebro (área tegmental ventral e nucleus accumbens). A experiência do prazer e a modulação da recompensa acontecem a partir de uma 'cascata' de recompensa, ou seja, um encadeamento de neurônios que interagem dentro do sistema límbico, por meio de diversos neurotransmissores. O consumo prolongado de drogas altera o regime desses últimos. A deficiência de um ou mais neurotransmissores (em especial a dopamina) pode suplantar a sensação de bem-estar por ansiedade, mal-estar e fissura por uma substância capaz de aliviar tais sintomas negativos." American Scientist
O sistema de recompensa
Os neurônios se organizam em sistemas de neurotransmissão. Os sistemas são especializados em determinadas funções e se integram e interagem com outros sistemas. Dentro de um sistema predomina um neurotransmissor, responsável pela transmissão de informações, tanto para o cérebro, quanto para os órgãos efetuam as ordens provenientes do sistema nervoso central. A partir da década de cinqüenta os pesquisadores começaram a identificar sistemas cada vez mais específicos no sistema nervoso.
Nesse período, o psiquiatra americano James Olds (1922 - 1976), durante experimentos com eletrodos posicionados em cérebros de ratos, descobriu acidentalmente que os animais se sentiam atraídos por choques elétricos que estimulavam a região cerebral estudada por Olds. Chegavam a desinteressar por outras atividades prazerosas, como a alimentação, para se dedicarem exclusivamente à busca de tal estímulo. Olds havia posicionado os eletrodos em um sistema de neurotransmissão de dopamina, denominado sistema mesolímbico-mesocortical. Ele o batizou de sistema de recompensa do sistema nervoso central. Abriu-se um novo campo para o entendimento das bases neurobiológicas da dependência química.
O sistema dopaminérgico e a busca da recompensa
A dopamina é o neurotransmissor envolvido no sistema de recompensa. Ela é sintetizada e armazenada em vesículas. Com a chegada de um estímulo elétrico, as vesículas se fundem à membrana do neurônio e a dopamina é despejada na sinapse. Na fenda sináptica, a dopamina se liga aos receptores dopaminérgicos. Uma parte da dopamina é recolhida da sinapse pela bomba de recaptação, afim de armazená-la para que possa reutilizada novamente.
O sistema de recompensa (dopaminérgico) está presente desde os mamíferos mais primitivos. Ele tem participação fundamental na busca de estímulos causadores de prazer, tais como alimentos, sexo, relaxamento. Por meio do reforço positivo da recompensa, obtida durante essas experiências, o organismo é impelido a buscá-las repetidas vezes. Cria-se uma memória específica para isso. O sistema de recompensa, desse modo, é um importante mecanismo de autopreservação.
Dopamina, drogas e recompensa
A dopamina é o neurotransmissor sintetizado dentro do sistema de recompensa. Para sua síntese é necessária a presença do aminoácido tirosina. Por meio da enzima tirosina hidroxilase, a tirosina é transformada em forma em DOPA (3,4 - hidroxifenilalanina). A dopamina tem sua origem na descarboxilação da DOPA. Em seguida, é armazenada nas vesículas dos terminais pré-sinápticos para ser liberada na fenda após um estímulo neuronal. Esse estímulo pode ser a torta predileta, um carinho, uma conversa com amigos, enfim, situações que certamente valerão a pena serem repetidas.
Uma vez liberada na fenda, atua sobre os receptores dopaminérgicos, cujo efeito é uma sensação de bem-estar e euforia. Rapidamente após a ligação com os receptores dopaminérgicos, a dopamina é retirada da fenda. Isso sé dá por meio de três processos básicos: [1] difusão da dopamina para fora da fenda sináptica, [2] destruição por enzimas e [3] recaptação para o pré-sináptico de onde fora liberada. Ali, será estocada para ser liberada novamente. A recaptação é realizada pela bomba de recaptação, transportadores dopaminérgicos, encarregados de captar parte da dopamina liberada na fenda sináptica e devolvê-la ao terminal pré-sináptico a fim de ser reciclada.
Anatomia da recompensa
O sistema dopaminérgico possui três tratos considerados como os mais importantes, de grande interesse para o entendimento da neurobiologia da dependência química. Um destes é o trato mesolímbico-mesocortical, que se projeta a partir da área tegmental ventral (ATV) para a maior parte do córtex frontal (funções psíquicas superiores) e sistema límbico (emoção) e parece ser a via dopaminérgica relacionada à recompensa. Estudos têm demonstrado relação íntima entre algumas estruturas cerebrais e a recompensa. O nucleus accumbens e a área tegmental ventral parecem moderar o estímulo à recompensa, induzido por substâncias psicoativas.
Recompensa e dependência
Grande parte da propriedade aditiva das drogas está na ativação do sistema dopaminérgico. Isso pode ser feito de modo direto ou indireto. Substâncias psicoativas como a cocaína e a anfetamina agem diretamente sobre esse sistema, enquanto a nicotina e os opiáceos estimulam-no indiretamente. As causas naturais que normalmente estimulam o sistema de recompensa chegam a aumentar em até 100% sua atividade. Na vigência de substâncias psicoativas, no entanto, essa atividade ser 1000 vezes maior.
Cocaína
A cocaína, estimula diretamente o sistema recompensa, ligando-se à bomba de recaptação de dopamina e bloqueando sua ação. Consequentemente, mais dopamina permanecerá na fenda sináptica. Há um aumento da concentração, do tempo de permanência e da intensidade de ação da dopamina sobre os seus receptores. O resultado é um quadro de euforia e prazer muito mais intenso do que as situações que estimulam o sistema naturalmente. Isso reforça a busca pela substância psicoativa, a fim de satisfazer a necessidade da recompensa desencadeada.
A cocaína bloqueia a bomba de recaptação de dopamina. Como resultado, a dopamina permanece mais tempo na fenda e se liga aos receptores com mais intensidade. Isso causa uma sensação de euforia e bem-estar de grande intensidade e reforça o desejo por um novo consumo.
A cocaína também tem grande afinidade pelo sistema de neurotransmissão de serotonina, responsável pela modulação do humor, o controle dos impulsos e capaz de estimular também o sistema de recompensa. A ação da cocaína nesse sistema também se dá por meio do bloqueio da recaptação de serotonina. A afinidade da cocaína por essa bomba de recaptação é muito mais intensa se comparada aos antidepressivos que atuam nesse mesmo sítio.
Anfetaminas & ecstasy
As anfetaminas e o ecstasy atuam sobre o sistema de recompensa induzindo a liberação maciça de dopamina na fenda, em uma quantidade muito maior do que a observada em estímulos naturais. Ela também inibe a recaptação, mas numa intensidade muito menor, se comparada à cocaína. De qualquer forma, o resultado final é um excesso de dopamina, que será removida com mais dificuldade, deixando-a agir mais tempo sobre os receptores e produzindo efeitos de euforia mais intensos.
Uma das diferenças entre o ecstasy e as outras anfetaminas modificadas é sua afinidade pelo sistema serotoninérgico, cuja ação lhe confere suas propriedades alucinógenas. O sistema serotoninérgico está amplamente conectado em todo o sistema nervoso. Os neurônios responsáveis pela produção de serotonina encontram-se agrupados no núcleo da rafe. O ecstasy bloqueia a recaptação da serotonina e a mantém atuando sobre os receptores por mais tempo e de forma intensificada. NIDA.
O ecstasy, além de atuar diretamente sobre o sistema de recompensa, tem especial afinidade pelo sistema serotoninérgico, de provêm seus efeitos alucinógenos e sinestésicos ("sons têm cores e cores têm sons"). O sistema serotoninérgico, quando estimulado, também atua positivamente sobre o sistema de recompensa, aumentando ainda mais o efeito euforizante produzido por este.
Nicotina
A nicotina estimula o sistema de recompensa de maneira indireta. Ela é capaz de se ligar aos receptores do um sistema de neurotransmissão conhecido por sistema colinérgico. A ligação aos receptores nicotínicos estimula a liberação de outro neurotransmissor, de natureza excitatória, conhecido por glutamato. O glutamato é capaz de estimular a liberação de dopamina no sistema de recompensa.
Outra ação da nicotina está na inibição do sistema GABA. Ao contrário do sistema glutamato (excitatório), esse sistema é capaz inibir todos os outros sistemas do cérebro, inclusive o de recompensa. Estando o sistema GABA bloqueado pela nicotina, a sensação de bem-estar e euforia proporcionada pelo consumo de cigarros torna-se ainda mais intensa, duradoura e causadora de dependência.
Os opiáceos são capazes de estimular receptores opióides. Esses, por sua vez, estão conectados ao sistema de recompensa e são capazes de estimulá-lo diretamente. NIDA
Opiáceos
Há uma grande concentração de receptores opiáceos ao redor da área tegmental ventral e do nucleus accumbens. O organismo possui receptores naturais para os opiáceos (heroína, dolantina, morfina, codeína e outros). Há três classes de receptores opióides envolvidos no surgimento de dependência aos opiáceos: receptores um, delta e kappa. O primeiro, no entanto, é o responsável pelos efeitos de bem-estar experimentados durante o consumo de opiáceos.
Os opiáceos ativam o sistema de recompensa de maneira indireta por meio de duas ações. A primeira consiste na ligação dos opiáceos com os receptores opióides dentro do sistema de recompensa. A ligação faz com que um sinal seja enviado para liberar dopamina. O sistema GABA inibe a liberação de dopamina. Os opiáceos, no entanto, bloqueiam a ação desse sistema. Desse modo, os efeitos da dopamina tornam-se mais potentes e duradouros.
Algumas substâncias psicoativas são capazes de estimular diretamente o receptor GABA-A, em especial o álcool, os benzodiazepínicos e os barbitúricos. A ação inibitória do sistema GABA, quando estimulado em baixas doses por essas substâncias, alivia a ansiedade e provoca bem-estar.
Álcool
O álcool atua sobre o sistema de recompensa indiretamente, por meio de sua ação no sistema glutamato (excitatório), GABA (inibitório), opióide (prazer e analgesia) e serotonina (humor e controle dos impulsos). Todos esses sistemas são capazes de interferir no sistema de recompensa. Ao inibir o sistema glutamato e estimular o sistema GABA, produz uma sensação de relaxamento, modulada pelo sistema de recompensa. Sua ação sobre a serotonina também produz uma sensação de euforia e bem-estar, predicativos que levam os indivíduos a desejarem novas experiências com a substância.
Alguns estudos apontam para a ação do álcool sobre o sistema opióide. O álcool parece atuar positivamente sobre os receptores opióides mu e negativamente sobre os receptores delta. Estudos com animais demonstraram que aqueles que não possuíam receptores delta ingeriram álcool com mais avidez e descontrole. Já a estimulação dos receptores mu aumentava a procura por álcool entre esses animais. Desse modo, o sistema opióide atua diretamente sobre o sistema de recompensa e está associado ao desenvolvimento da dependência.
Alguns indivíduos parecem possuir déficits na neurotransmissão de dopamina. O álcool, de alguma forma, consegue sanar essa deficiência. Para esses indivíduos, o consumo de álcool pode ter sua origem como uma forma de 'automedicação', ou seja, uma forma de mantê-lo relaxado, tranquilo, uma que tais estados não acontecem naturalmente entre eles. Ficam, assim, extremamente predispostos ao desenvolvimento da dependência.
Tranquilizantes (benzodiazepínicos e barbitúricos)
A ação de ambos sobre o sistema de recompensa é indireta, através da ação das substâncias sobre o sistema GABA. Tal ação produz redução da ansiedade e relaxamento. Tais efeitos seriam reforçadores e contribuem para o surgimento da dependência.
Maconha
Há evidências da capacidade do THC em estimular o sistema de recompensa a partir dos sistemas canabinóide e opióide. NIDA.
O princípio ativo da maconha, o D -9-THC, possui receptores específicos dentro do sistema de recompensa. Há uma grande concentração destes ao redor da área tegmental ventral, do nucleus accumbens e do hipocampo. Não se sabe até o momento, porém, como o THC estimula o sistema de recompensa. Um das teorias vigentes postula que o THC, ao se ligar ao seu receptor específico dentro do sistema de recompensa, faz com essa ligação envie um sinal que estimula a liberação de dopamina e provoca os efeitos de bem-estar e relaxamento observados. O THC, provavelmente, é capaz de estimular o sistema opióide, que por sua vez estimula o sistema de recompensa.
Neuroadaptações
O sistema de recompensa produz bem-estar e euforia quando estimulado, aumentando o desejo de repetir tais sensações. Ele parece ser a estrutura central no desenvolvimento da dependência entre os usuários de substâncias psicoativas. No entanto, não é apenas o prazer o responsável pelo surgimento da dependência. Ao contrário, a evitação dos sintomas de desconforto (síndrome de abstinência), entre eles a fissura, é o grande propulsor da manutenção do uso. Tais sintomas decorrem provavelmente de alterações neurobiológicas na estrutura anatômica dos neurônios, por exemplo, redução de terminações nervosas e receptores. Essas alterações permanecem meses após a interrupção do consumo. Elas, também, acabam por bloquear o efeito euforizante da droga: o indivíduo deixa de sentir o prazer de outrora, mas continua impelido a buscar a droga, uma vez que seu corpo se adaptou a sua presença e sentirá sua falta em caso de abstinência da mesma. Esse tema será tratado no próximo capítulo
NEUROADAPTAÇÕES
Há diversas correntes teóricas acerca da dependência química. Nenhuma delas é capaz de explicar totalmente os mecanismos e a psicopatologia envolvidos na gênese e na manutenção da dependência. Ainda assim, todas possuem observações pertinentes e úteis na abordagem e no tratamento desses indivíduos. A neurobiologia também deu contribuições ao tema. Entre essas, a teoria das neuroadaptações é a mais palpável, detectável em exames de neuroimagem e a responsável pelo surgimento da tolerância e dos sintomas de abstinência da substância.
O consumo prolongado de substâncias psicoativas provoca modificações anatômicas e fisiológicas no cérebro. Tais modificações tornam a droga cada vez mais importante para o indivíduo, uma vez que o novo equilíbrio conta agora com a presença da substância. A partir daí, a ausência da mesma será marcada por sintomas de desconforto, tais como fissura, tremores, suor, aumento da pressão e da temperatura. A busca do prazer vai aos poucos sendo substituída pela busca de alívio dos sintomas de desconforto (síndrome de abstinência).
As características desse novo comportamento de busca serão moldadas tanto pela personalidade, quanto pelo ambiente cultural que permeia estes indivíduos. Há duas neuroadaptações mais conhecidas: a tolerância e a síndrome de abstinência, objetos do presente artigo.
Homeostase: tudo no organismo tende ao equilíbrio
Qualquer organismo vivo tem um modus operandi, isto é, um jeito de funcionar geneticamente determinado, que independe da vontade ou mesmo do conhecimento do indivíduo sobre a sua existência. Ninguém pede para sentir sono, liberar hormônio do crescimento, aumentar os batimentos do coração durante o exercício, suar no calor ou tremer no frio. Cabe ao organismo executar tais funções, com a finalidade de adaptar o indivíduo aos novos estímulos que recebe ao longo da vida. Qualquer adaptação às modificações causadas pelo ambiente externo visa à manutenção do equilíbrio fisiológico (homeostase) do organismo. Se há aumento de temperatura, os vasos sanguíneos se dilatam para facilitar a perda de calor e as glândulas secretam gotas de suor para resfriar o corpo. Já no frio, os vasos se contraem e o corpo treme, a fim de produzir calor. Em ambos casos, o corpo se adaptou às modificações externas de temperatura para não prejudicar o equilíbrio da temperatura corpórea.
Ao longo da vida, o organismo não necessitou de substâncias psicoativas para se estabelecer. O álcool, o tabaco, a cocaína, a maconha e a heroína não são essenciais para o seu funcionamento. Frente à presença das mesmas, cria-se um novo padrão fisiológico de funcionamento. O organismo, então, se encarrega de destruí-las e eliminá-las, a fim de restabelecer seu equilíbrio habitual (homeostase). Quando tal presença se mostra ocasional, pontual, esporádica, o organismo apenas se incumbe da tarefa anteriormente descrita.
Mas se a presença da substância se torna constante, o organismo produzirá uma série de modificações no cérebro para dificultar a ação das drogas e se aprimorará na destruição e excreção das mesmas. Mas se tais adaptações deixaram o funcionamento do organismo 'mais parecido' com o anterior (sem drogas), o novo modus operandi estabelecido passou a contar com a presença das drogas em seu dia-a-dia. Para isso, também desenvolveu mecanismos que sinalizam ao corpo a redução ou a ausência das mesmas. Desse modo, se de um lado o organismo se tornou mais indiferente à presença droga, também ficou mais sensível a sua falta.
Neuroadaptação: o equilíbrio possível
Segundo Littletton & Harper (1994), "a tolerância implica na capacidade da célula de se adaptar à presença dos agentes farmacológicos em seu ambiente para reassumir uma função relativamente normal. Em outras palavras, uma concentração mais alta da droga será necessária para produzir as mesmas perturbações funcionais que foram produzidas na primeira exposição da célula à droga". Isso é diferente da resistência à droga: as bactérias resistentes aos antibióticos funcionam normalmente com ou sem a presença destas substâncias. Os antibióticos não as afetam bioquimicamente. Dessa forma, os autores afirmam que "a dependência celular implica uma adaptação à presença da droga em seu http://apps.einstein.br/alcooledrogas/novosite/imagens/shim.gifhttp://apps.einstein.br/alcooledrogas/novosite/imagens/shim.gifambiente, mas nesse caso a adaptação é tão severa que a célula não pode funcionar normalmente na ausência da droga. Assim, uma perturbação funcional (síndrome de abstinência) ocorrerá quando da remoção da droga".
A hipótese de Himmelsbach para a dependência do álcool. O sistema nervoso central funciona em homeostase (equilíbrio). O consumo de álcool provoca alterações na química cerebral, para produzir seus efeitos agudos. Frente ao uso freqüente e prolongado da substância, o organismo provoca adaptações de oposição, com a finalidade de recuperar o equilíbrio perdido. Nessa fase, os efeitos do álcool para dose habitualmente consumida estão diminuídos (tolerância). Com a interrupção do consumo, a adaptação emerge, fazendo surgir uma sintomatologia no sentido oposto aos efeitos do álcool. É a síndrome de abstinência, que durará enquanto o equilíbrio anterior (sem álcool) não for restabelecido.
Para os autores, a neuroadaptação ocasiona tolerância e síndrome de abstinência a partir de um único processo de modificação adaptativa. Essa, no entanto, pode ser didaticamente dividida em neuroadaptação de prejuízo e de oposição.
Adaptação de prejuízo: tolerância
A adaptação de prejuízo consiste no desenvolvimento de mecanismos que dificultem a ação da droga sobre as células, reduzindo, assim, seus efeitos. Isso pode acontecer a partir da redução do número ou da sensibilidade dos receptores à substância em questão ou do aumento da eficiência do corpo na metabolização e eliminação da droga.
A partir dessas modificações, a quantidade habitual de droga consumida não provocará no usuário os efeitos positivos que buscava. Para obtê-los de agora em diante, necessitará de doses maiores, capazes de 'romper' as novas barreiras neurobiológicas criadas pelo organismo. Esse aumento causará uma nova neuroadaptação, que implicará em um outro aumento de dose e assim por diante.
Adaptação de oposição: síndrome de abstinência
Apesar de também causar tolerância, a adaptação de oposição está relacionada ao aparecimento da síndrome de abstinência nos dependentes de substâncias psicoativas. Segundo Littletton & Harper (1994), "a adaptação de oposição consiste num mecanismo para derrotar os efeitos da presença da droga através da instituição de uma força oponente dentro da célula. Este tipo de alteração tem claramente um potencial, quanto exposto à remoção da droga, de produzir transtornos funcionais na direção oposta àquela causada originalmente pela droga". Desse modo, nota-se entre os usuários de sedativos uma síndrome de abstinência marcada por inquietação, insônia, aceleração do pensamento e confusão mental. Já entre os de estimulantes, o quadro é geralmente depressivo, com lentificação psicomotora e aumento do sono.
É essencial afirmar que as adaptações de oposição causam um desequilíbrio no sistema nervoso central quando a droga é retirada. Esse desbalanço aparece na forma de sintomas de desconforto, de intensidade variável, geralmente de natureza oposta à droga utilizada. Tais sintomas permanecerão até que o organismo recupere seu equilíbrio anterior, no qual não havia a presença constante da droga. Esse quadro é denominado síndrome de abstinência. A síndrome de abstinência e a tolerância a cada substância serão analisadas dois próximos capítulos.
SÍNDROME DE ABSTINÊNCIA
Talvez a síndrome de abstinência seja o fenômeno mais conhecido relacionado à dependência química. Apesar de difundida, o valor da síndrome de abstinência para o desenvolvimento e a manutenção da dependência é pouco compreendido. Cientistas afirmam que "não é apenas o prazer o responsável pelo surgimento da dependência. Ao contrário, a evitação dos sintomas de desconforto (síndrome de abstinência) é o grande propulsor da manutenção do uso. Tais sintomas decorrem provavelmente de alterações neurobiológicas na estrutura anatômica dos neurônios. Essas alterações acabam por bloquear o efeito euforizante da droga: o indivíduo deixa de sentir o prazer de outrora, mas continua impelido a buscar a droga, uma vez que seu corpo se adaptou a sua presença e sentirá sua falta em caso de abstinência da mesma."
A dependência é justamente o final dos áureos tempos. É o estabelecimento de uma nova realidade: biológica (neuroadaptações), psicológica (impulsividade pelo consumo) e social (o consumo vai se tornando mais importante que o tudo mais). A evitação dos sintomas de abstinência é um dos moldadores desse novo estilo de vida. A abstinência é um sinal concreto dessa nova realidade. É do conhecimento geral que um dependente fica mais nervoso nos primeiros dias de tratamento. Os amigos e familiares 'dão um desconto' aos descontroles, ao mau humor daqueles que decidiram abandonar o consumo de alguma substância. Os principais medicamentos destinados ao tratamento da dependência química visam ao alívio destes sintomas.
Pouco tempo atrás, as drogas pesadas eram aquelas consideradas capazes de causar síndrome de abstinência. A presença dos sintomas era um sinal de "dependência física". A Organização Mundial da Saúde (OMS) afirmava nos anos setenta que para a cocaína havia "falta de dependência física e, por conseguinte, de uma síndrome de abstinência característica quando se suprime a droga". Tais conceitos caíram em desuso na literatura científica voltada ao estudo da dependência química. Atualmente, sabe-se que qualquer substância é capaz de provocar alterações no funcionamento neurobiológico dos indivíduos, que ocasionam sintomas de desconforto durante a falta da mesma. Por outro lado, a dependência não pode ser olhada apenas pelo lado físico, psíquico ou social. Só existe dependência se houver a combinação dos três fatores.
A neurobiologia da síndrome de abstinência de qualquer substância está relacionada a modificações nos circuitos neuronais ativados pelo consumo. Conforme já citado em artigos anteriores os neurônios se interconectam por meio de sinapses, dentro das quais secretam neurotransmissores. Esses últimos se ligam a receptores específicos e provocam reações químicas, capazes de gerar um novo estímulo elétrico. É assim que a informação viaja pelo organismo humano. Há neurotransmissores encarregados de propagar informações excitatórias, inibitórias, de dor, prazerosas, de comando para o funcionamento dos órgãos, e muitas outras. Em condições normais, há um rígido balanço entre todas essas forças.
O uso contínuo de uma substância, no entanto, ativa sistemas com mais intensidade do que outros. Por exemplo, o álcool e os tranquilizantes (sedativos) concentram sua ação nos sistemas inibitórios (GABA), enquanto a cocaína, a nicotina e as anfetaminas (estimulantes), atuam preferencialmente nos sistemas excitatórios (glutamato, noradrenalina e dopamina). A fim de manter "o rígido balanço" entre as forças do sistema nervoso, o organismo se neuroadapta e torna menos os sistemas menos sensíveis a ação da droga. Dessa maneira, ao ser estimulado pelo consumo, esse sistema não desequilibrará a composição de forças que regem o funcionamento do cérebro.
Porém, quando o consumo é interrompido, o sistema neuroadaptado, desensibilizado e enfraquecido pelas neuroadaptações provocam um novo desbalanço, no sentido aposto aos sintomas que a droga provocava no organismo. Esse desbalanço se manifesta na forma da síndrome de abstinência. Desse modo, o consumo de sedativos torna o sistema inibitório menos sensível à ação da droga. Frente a sua retirada, haverá superioridade do sistema excitatório, marcado por sintomas de abstinência como insônia, inquietação, irritabilidade, tremores, aumento dos batimentos cardíacos e da temperatura do corpo. Do outro lado, os estimulantes desencadeiam uma síndrome de abstinência marcada por aumento do sono, lentificação, tédio e sintomas depressivos.
A fissura, considerada um sinal de abstinência, pode ser entendida a partir da diminuição da dopamina dentro do sistema de recompensa. Durante a fissura, a lembrança do prazer e do desejo do consumo aparecem dentro de um quadro de desconforto físico e psíquico. Voltar a consumir a substância é vista pelo usuário como a melhor alternativa para aliviar essa situação. Saber lidar com a fissura é um grande passo para a consolidação da abstinência.

A importância dos sintomas de abstinência se reflete não apenas no desenvolvimento da dependência, mas também no sucesso do processo de abandono do consumo e na construção de um novo estilo de vida, incompatível com o uso de drogas. As principais abordagens medicamentosas e psicoterápicas disponíveis atualmente visam a aliviar sintomas, motivar a mudança, prevenir recaídas e criar novas habilidades para lidar com as dificuldades da vida, principalmente 'resolvidas' pelo consumo de drogas. Qualquer uma delas vê a síndrome de abstinência como o primeiro obstáculo ao processo do tratamento. Enquanto houver queixas de abstinência estas deverão ser consideradas o principal obstáculo: elas são um sinal de que a droga ainda afeta e limita a existência biológica, psicológica e social do indivíduo. Eis a importância desse fenômeno, que de modo algum deve ser banalizado ou diminuído pela difusão que vem sofrendo dia-a-dia.

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