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12/11/2014

Loucura

A loucura através da história: o que é ser louco? – Considerações acerca da definição da loucura.

Existe um monólogo da razão sobre a loucura, já dizia Michel Foucault. A loucura tem sido, há muito tempo, silenciada pelo discurso racional: partimos do pressuposto de que o louco não tem o que acrescentar, pois sua experiência, muitas vezes, não faz parte da realidade compartilhada por nós, pessoas “normais”.

Porém, é importante ter em mente que, como qualquer fenômeno humano, a loucura é historicamente construída. De acordo com cada época, com cada contexto sociopolítico, a loucura é definida e compreendida. Entretanto, temos a tendência a pensar que falar em loucura é falar em psiquiatria. 

Uma análise da história da loucura nos mostra, entretanto, que a doença mental como expressão da loucura começou a existir apenas em um determinado momento histórico. A constituição da loucura não se dá a partir da psiquiatria, mas sim da divisão entre razão e não razão. Inclusive, é por causa da loucura que a própria psiquiatria pode existir.

Durante a Idade Média, a loucura era tida como parte da vida cotidiana, circulava livremente pelas ruas. Após a epidemia de lepra e seu desaparecimento depois das Cruzadas, os leprosários passam a conter pobres, vagabundos e “cabeças alienadas”, dando início à tradição de excluir os loucos da sociedade. 

No Renascimento, as conhecidas “Naus dos Loucos” navegavam com loucos a bordo dos navios, levando-os para diversos lugares numa tentativa de mandar a loucura para longe. No século XVII, a loucura se fixa no hospital. É importante lembrar, contudo, que o hospital não tem o mesmo valor de “local de cura” que temos hoje. Ele era um depósito no qual ficavam as pessoas indesejadas – dentre elas, os loucos.

O pensamento moderno, estruturado na sociedade burguesa que é voltada para a razão, aprisiona filosoficamente a loucura; na filosofia cartesiana que embasa essa sociedade, o eu que não pensa não existe, e, se o louco não é dotado de razão, não existe e pode ser excluído, jogado num Hospital Geral – estrutura semi jurídica que decide, julga e executa. 

Nessa época, a religião se apropria da loucura de maneira ambígua, explicitada no binômio desejo de ajudar x necessidade de punir, dando a ela um caráter moral que justifica os trabalhos forçados nos hospitais. O objetivo desses trabalhos era criar um “sábio arrependimento” que auxiliasse na superação da condição de loucura, mas sempre dialogando fortemente com ideias de repressão.

No século XVIII, a loucura fica melhor delineada como manifestação do não ser. A sociedade teme que esse desatino a contamine e continua acorrentando seus loucos aos hospitais gerais, com o objetivo de proteger a sociedade da possível ameaça da loucura. Creio que esse tenha sido o período histórico em que a loucura foi tratada de maneira mais grotesca, expondo-a em um espetáculo: a ideia era mostrar a animalidade da loucura, na tentativa de atender a um desejo da burguesia de exaltação da moral e da razão.

É somente no século XIX que a loucura passa a ser objeto da psiquiatria. Até esse momento, os loucos eram literalmente acorrentados nos hospitais, vivendo em condições desumanas de saneamento e higiene. Médicos como Philippe Pinel foram responsáveis por desacorrentar os loucos, entendendo que o louco é um doente, sendo, portanto, objeto de estudo da medicina. 

Porém, é importante ressaltar que, apesar de a situação física em que viviam os loucos ter sido muitíssimo melhorada a partir do entendimento do louco como um ser humano com dignidade, começa-se a criar em torno do louco asilado um círculo invisível de julgamentos morais. O hospital passa a ser um espaço de observação, diagnóstico e terapêutica, mas não deixa de ser também um espaço social onde o doente sofre um processo de acusação, julgamento e condenação. 

O louco sente remorso por ser o que é, e assim não desacredita do discurso da medicina que, dentro da lógica da exaltação da razão, silencia a loucura como possibilidade de existência e apreensão do mundo – apesar de, em muitos casos, ser boa a intenção do médico que quer curar o louco. O louco, por ser considerado incapaz, delega ao médico o cuidado de si, ou seja, delega o saber sobre si mesmo a outra pessoa, um especialista que, supostamente, sabe mais sobre sua loucura do que ele próprio.

Como foi dito, a concepção de loucura varia de acordo com o contexto histórico. Quando falamos em loucura, percebe-se claramente que não há uma definição clara sobre o que é ser louco. João Frayze-Pereira, em seu livro “O que é loucura?”, traz dados de uma pesquisa que fez com seus alunos de psicologia sobre o que é a loucura. 

A loucura é vista de diversas formas: como perda da consciência-de-si-no-mundo, como uma doença, como um distúrbio orgânico ou desequilíbrio emocional que levam a um desvio de comportamento, como distúrbio emocional cuja origem é o desajustamento social do indivíduo, como desvio comportamental em relação a uma norma socialmente sancionada, como estado de desligamento da realidade ou, por fim, como tomada de consciência de si e do mundo. 

Eu, particularmente, vejo a loucura como uma possibilidade de ver o mundo. A realidade existe para todos nós, mas cada um se apropria dela de uma forma, de acordo com as experiências que tem no mundo e com os outros. Muitas vezes, a loucura é a coragem da verdade de que Foucault fala: é deixa-se Ser, independentemente das normas pré-concebidas; é “não ter medo de mostrar as verdades para o mundo”, como diz Frayze-Pereira. 

Obviamente, essa forma de ser traz sofrimento, uma vez que se espera que o louco compartilhe da maneira de apreender o mundo que entendemos como “normal”. A ele é negada sua maneira de existir, o que faz com que surja um sentimento de que ele não pertence a lugar nenhum – sentimento esse que é reforçado a cada vez que não reconhecemos o louco como um agente de sua própria história e da história da sociedade, dizendo que a loucura é somente uma doença que deve ser curada.

Não podemos esquecer o que Foucault fala sobre a loucura no livro “Doença mental e psicologia”:“A doença só tem realidade e valor de doença no interior de uma cultura que a reconhece como tal.” Desta forma, é imprescindível ter sempre em mente que da mesma forma que a loucura não existe sem a razão, nossa tão querida e cultuada razão também não existe sem a loucura; as duas coexistem, em relação. 

A loucura está dentro da razão, pois se caracteriza não pelos comportamentos do louco, mas pela quebra das regras do que é considerado “normal”. Assim, o erro na conceituação da loucura feita pelo discurso científico está em tomá-la como um fato em si quando, na realidade, ela é essencialmente relacional e varia de acordo com o contexto histórico.

Autora: Luisa Bertrami D'Angelo

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