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8/27/2014

Uso Nocivo de Substâncias, Neurobiologia e Ideologia

John C. M. Brust
Department of Neurobiology, Harlem Hospital Center and Columbia University (New York)
Arch Neurol 1999; 56: 1528-31.

Mesmo tendo sido publicado há anos, o presente artigo permanece atual. O trabalho de John Brust revisa a neurobiologia da intoxicação e da dependência das principais substancias psicoativas. As bases neurobiológicas da dependência química, na opinião de Brust, deixam claro que a mesma pode ser considerada e tratada como uma doença.

No entanto, ressalta que tais descobertas ainda não deixaram o meio acadêmico e os centros mais desenvolvidos: a mentalidade da maior parte da sociedade, que ainda insiste em tratar as drogas como uma questão preponderantemente moral.

O autor começa o artigo apresentando as linhas gerais de sua abordagem: "O termo uso nocivo de substancias psicoativas se refere ao uso recreativo de uma droga, apesar de seus efeitos danosos potenciais. Dependendo da substancia, seu consumo pode produzir dependência física ou psíquica, tolerância e sensibilização. Somado a isso, seus usuários estão sujeitos a complicações neurológicas, tais como traumas, infecções, derrames, convulsões, déficits cognitivos e lesões fetais. Fatores genéticos deixam alguns indivíduos ainda mais susceptíveis ao uso nocivo de substancias psicoativas. A farmacoterapia disponível até o momento é efetiva apenas para alguns tipos dependências (álcool e tabaco), inexistente para a maioria e totalmente eficaz para nenhuma delas."
FIGURA 1: A ação das principais substâncias sobre o sistema de recompensa. Apesar de possuírem naturezas diferentes (estimulante, sedativa ou alucinógena), a capacidade de uma droga levar um indivíduo à dependência passa sempre pelo sistema de recompensa. NIDA.

OPIÁCEOS

A dependência psíquica se refere ao uso recreativo com compulsividade (fissura). Em contraste, a dependência física se caracteriza pela presença de sinais e sintomas de abstinência após a cessação do uso. A dependência física pode existir sem a dependência psíquica (por exemplo, usuários de morfina que a utilizam para o tratamento da dor) e vive-versa. Tal dissociação entre sintomas físicos e psíquicos acontece devido à ação dos opiáceos em duas regiões distintas do cérebro.

A dependência psíquica aos opiáceos envolve o sistema mesolímbico-mesocortical ou sistema de recompensa. Esse sistema possui neurônios dopaminérgicos, localizados na área tegmental ventral, que se projetam para o nucleus accumbens, córtex pré-frontal e outras áreas do sistema límbico (relacionado à emoção). 

Esse circuito de recompensa está provavelmente envolvido na dependência a qualquer tipo de droga. Os opiáceos ativam o sistema de recompensa ao menos de duas maneiras: [1] bloqueando o sistema GABA, que normalmente inibe o sistema de recompensa, aumentando assim a descarga de dopamina dentro do circuito; [2] o sistema opióide ativa diretamente o sistema de recompensa.


FIGURA 2: Distribuição dos receptores opióides pelo organismo e sua relação com o sistema de recompensa

A principal estrutura envolvida na dependência física dos opiáceos é olocus coeruleus. Agindo sobre os receptores opióides tipo um (m ), os opiáceos inibem pronta e repentinamente o locus coeruleus. Com o uso crônico, o organismo se adapta a esta inibição, diminuindo o número e a sensibilidade dos receptores aos quais os opiáceos se ligam. 

Ao mesmo tempo, para compensar a perda da sensibilidade dos receptores, o locus coeruleus torna-se mais sensível a qualquer estímulo vindo do sistema opióide. Essas neuroadaptações são as responsáveis pelo surgimento da dependência física. Quando o usuário de opiáceos fica sem a substancia, o locus coeruleus, sensibilizado, secreta noradrenalina em grandes quantidades. A noradrenalina estimula os órgãos autônomos do corpo, tais como o coração e os intestinos. 

O resultado é um quadro de mal-estar físico e psíquico marcado por tremores, suor excessivo (sudorese), aceleração dos batimentos do coração (taquicardia), aumento da temperatura, diarréia, sensação de pânico, inquietação motora e sintomas de alucinação e desorientação. Outros sedativos como o álcool e os calmantes (barbitúricos e benzodiazepínicos) também atuam sobre o sistema opióide, motivo pelo qual também são capazes de ocasionar dependência física em seus usuários.


FIGURA 3: Locus coeruleus. 

COCAÍNA

Tolerância é a necessidade de doses crescentes da droga para atingir o efeito desejado ou para evitar sintomas de abstinência. Ao contrario, a sensibilização ou tolerância reversa é um tipo de "aprendizado implícito", aumenta a sensibilidade do organismo para alguns efeitos da droga. Ela está envolvida também, nas memórias emocionais da experiência positiva com a droga, que leva ao uso continuo ou predispõe a recaída.

Tal como a dependência física, a tolerância é uma adaptação compensatória . A cocaína aumenta a dopamina na sinapse do sistema de recompensa por meio do bloqueio de sua recaptação. No nucleus accumbens os receptores dopaminérgicos tipo 2 (D2) causam euforia, enquanto os receptores tipo 1 (D1) inibem tal efeito. Frente à presença constante da cocaína no cérebro, ocorre um aumento dos receptores D1 e redução dos receptores D2. Isso dificulta a ação euforizante da cocaína e faz com o usuário se veja forcado a aumentar a dose para obter o mesmo efeito de antes (tolerância).


FIGURA 4: A cocaína age diretamente sobre o sistema de recompensa, bloqueando a recaptação de dopamina.NIDA.

FIGURA 5: Distribuição dos receptores canabinóides pelo organismo e sua relação com o sistema de recompensa. NIDA. 

A sensibilização ou tolerância reversa tem um papel crucial no desenvolvimento da dependência da cocaína. Ela se manifesta por meio do aumento da sensibilidade do cérebro para alguns efeitos da droga, tais como psicose, tiques, inquietação motora e convulsões. Durante a abstinência, a sensibilizarão se torna evidente e aparece na forma de fissura. A fissura é desencadeada por fatores ambientais e internos. Ela se manifesta na forma de respostas intensas, de natureza física e psíquica, frente à lembrança do consumo da droga.

A base fisiológica da sensibilização envolve múltiplos níveis do sistema de recompensa. Na área tegmental ventral há redução da sensibilidade dos receptores encarregados de inibir a secreção de dopamina. Há, ainda, aumento da sensibilidade dos receptores do sistema glutamato (excitatórios).

No nucleus accumbens há aumento da sensibilidade à presença da dopamina e diminuição da atividade da bomba de recaptação. Tudo isso ocorre porque o cérebro já havia se adaptado à presença constante da cocaína, que passou a ser a principal estimuladora da presença de dopamina na sinapse. Com a abstinência, porém, o organismo se vê empobrecido desse neurotransmissor. Para compensar a faltar, torna-se ávido e mais sensível à presença da dopamina. Isso causa o mal-estar físico e psíquico da fissura e o desejo incomensurável pelo consumo da substancia.

MACONHA

A maconha, obtida de uma planta denominada cânhamo (Cannabis sativaou Cannabis indica), contem um grande número de compostos canabinóides. Entre esses, o Δ-9-tetraidrocanabinol (THC) é o seu principal agente psicoativo.

Durante a última década, foi descoberto no cérebro dos mamíferos, um sistema de neurotransmissão cujos receptores e neutransmissores eram semelhantes aos canabinóides da maconha. Dois tipos de receptores foram descobertos: os receptores canabinóides tipo 1 (CB1), largamente distribuídos pelo hipocampo, córtex associativo, cerebelo e nucleus da base, e os receptores canabinóides tipo 2 (CB2), presentes nas células do sistema imunológico, em especial os linfócitos B, linfócitos T e nos monócitos. 

Os receptores canabinóides são capazes de inibir os sistemas de neurotransmissão da acetilcolina, da noradrenalina e glutamato, além de algumas funções do sistema imune. O neurotransmissor do sistema canabinóide é a anandamida (araquidoniletanolamida). O nome deriva do sânscrito: ananda (prazer) era como os antigos hindus denominavam o cânhamo.

Ratos geneticamente modificados, sem receptores CB1, não apresentaram os efeitos normalmente observados durante a intoxicação pelo THC, tais como diminuição da atividade motora, analgesia, hipotensão e hipotermia. 

A capacidade de o THC provocar reforço ao consumo (e conseqüentemente dependência) foi demonstrada em alguns estudos, apesar do achado não ser consensual. Os sintomas de abstinência em estudos humanos foram considerados brandos ou inexistentes, provavelmente devido à eliminação lenta da substancia. O THC aumenta a concentração de dopamina no nucleus accumbens. Os receptores CB1 são capazes de ativar o sistema opióide endógeno na área tegmental ventral, que por sua vez estimula a liberação de dopamina no sistema de recompensa. Essa é provavelmente a base neurobiológica da dependência da maconha.

FENCICLIDINA (PCP) E QUETAMINA

Apesar do declínio do uso recreativo do PCP nos Estados Unidos e na Europa, principalmente após o aparecimento do crack nos anos oitenta, este ainda pode ser encontrado no mercado ilícito.

A fenciclidina e outros compostos ariciclohexamina-análogos (entre eles a quetamina) possuem propriedades clínicas e farmacológicas que os distinguem de outras substâncias psicoativas. Dependendo da dose em que são utilizados, podem causar sintomas de euforia ou depressão. Doses elevadas desencadeiam sintomas similares à esquizofrenia. A fenciclidina bloqueia a recaptação de dopamina, serotonina e noradrenalina, potencializando a ação desses neurotransmissores na sinapse. A psicose, porém, esta relacionada à ação da droga sobre o sistema glumatamato. O reforço ao consumo de fenciclidina deriva de sua ação direta sobre o sistema de recompensa no nucleus accumbens.

ÁLCOOL

Até há pouco tempo, achava-se que a ação do álcool sobre o cérebro era de natureza generalizada e inespecífica. As evidencias acumuladas, no entanto, indicam que o álcool age seletivamente sobre os sistemas de neurotransmissão.

O sistema GABA é o principal sistema de neurotransmissão responsável pela inibição da atividade cerebral. O álcool ativa esse sistema, ocasionando um quadro de euforia em doses baixas e incoordenação motora e sedação em doses elevadas. A neuroadaptação do sistema GABA a ação prolongada do álcool provoca tolerância. Os benzodiazepínicos, que também possuem ação gabaérgica, são eficazes no tratamento dos sintomas da síndrome de abstinência do álcool, mas não no tratamento da dependência.

O desenvolvimento da dependência do álcool não passa pelo sistema GABA. O álcool é capaz de estimular o sistema opióide endógeno na área tegmental ventral, levando à liberação de dopamina no nucleus accumbens. A ação opióide sobre o sistema de recompensa explica o quadro de euforia e dependência induzido pelo álcool.



Figura 6: O sistema GABA e o sistema glutamato são responsáveis pela inibição e excitação do sistema nervoso central respectivamente. À esquerda, um receptor GABA tipo A (GABA-A), que pode ser estimulado pelo álcool, barbitúricos e benzodiazepínicos. À direita, um receptor de glutamato (NMDA e GLU). A glicina (GLY) potencializa a ação dos neurotransmissores. O álcool é capz de bloquear sua ligação, piorando o desempenho desse sistema. 

O sistema glutamato é o principal sistema excitatório do organismo. Seus receptores, além do glutamato (NMDA), também permitem a ligação com a glicina. A presença da glicina facilita a despolarização da membrana pelo glutamato. O álcool bloqueia a ligação da glicina a esses receptores. Isso diminui o efeito excitatório deste sistema. A redução do potencial excitatório provoca aumento da secreção de dopamina no sistema de recompensa. O déficit do sistema glutamato também prejudica a memória de curta duração. Esse é provavelmente a base neurobiológica para a amnésia alcoólica ou blackouts.

Para compensar o bloqueio dos receptores de glutamato, há proliferação e aumento da sensibilidade dos mesmos. Isso será responsável pelos sintomas de hipersensibilidade notados durante a abstinência, tais como convulsões e delirium tremens. As mesmas neuroadaptações podem estar relacionadas a outras complicações, tais como a síndrome de Wernicke-Korsakoff, a atrofia cerebral não-nutricional, a degeneração do cerebelo e a síndrome alcoólica fetal.

DOENÇA, CULTURA MÉDICA E PRECONCEITO SOCIAL

Os anos noventa ficaram conhecidos como a década do cérebro. Houve um extraordinário avanço na pesquisa e no entendimento da neurobiologia e da ação farmacológica das substâncias psicoativas nos circuitos neuronais e na bioquímica celular. Apesar da grande variedade, as drogas de abuso possuem ações farmacológicas semelhantes, em especial sobre o sistema de recompensa. O entendimento completo das propriedades positivas de reforço das drogas para o surgimento da dependência química está muito próximo. 

Se há uma base neurobiológica para a dependência química, significa que se trata de uma doença. Uma doença, por sua vez, requer um tratamento específico. No entanto, o uso de substâncias psicoativas continua a ser tratado como uma fraqueza moral passível de punição penal. Nos Estados Unidos, se gasta mais com interdições do que com tratamento e a construção de prisões ultrapassa a de escolas. 

Durante o ano de 1998, o prefeito de Nova Iorque tentou fechar todos os centros de tratamento de manutenção de metadona sob sua jurisdição. Essa postura ideológica encontra-se fortemente arraigada à mentalidade contemporânea, que por ora mostra-se indiferente ao novo modelo de doença neurobiológica proposto pelos pesquisadores nessa última década.

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