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9/29/2015

Alcoolismo Feminino: início do beber alcoólico e busca por tratamento

Dilma Franco Fátima de Assis *
Norida Teotônio de Castro**

*Assistente Social do Programa de Atenção aos Portadores de Transtornos Mentais relacionados ao Uso de Álcool e outras Drogas – PROAD/Poços de Caldas/MG; Professora na Faculdade de Ciências Humanas de Aguaí/SP, Curso de Serviço Social; Mestranda no Curso de Saúde Coletiva pela Universidade do Vale do Sapucaí – UNIVÁS, Pouso Alegre – MG/Brasil. 

** Psicóloga/UFMG, Mestre em Psicologia Clínica/PUCCAMP; Doutora em Comunicação e Semiótica/PUCSP; Docente na
Universidade do Vale do Sapucaí – UNIVÁS, Pouso Alegre – MG/Brasil. E-mail: norida@uol.com.br.


Vários estudos (CEBRID, 2001, 2005; SILVEIRA et al., 2007) mostram as diferenças de gênero na incidência e prevalência no uso de álcool, sendo que as mulheres apresentam menor prevalência no uso de substâncias psicoativas, incluindo o álcool. 

Porém esta diferença tem diminuído consideravelmente (ALMEIDA-FILHO, 2004; BARROS; LEHFEL, 2007), o que pode ser atribuído à conquista da igualdade de direitos entre homens e mulheres, resultantes das lutas e movimentos feministas das décadas de 1960 a 1980, desencadeando uma tendência também em relação à igualdade no consumo de drogas, verificada pela mudança no estilo de vida que a mulher adquiriu juntamente com seus novos papéis e responsabilidades.

Além das características específicas nas mulheres, existem outros fatores, chamados de predisponentes, que são ambientais, culturais, por influência da mídia, bem como os fatores psicológicos individuais (SILVA et al., 2010).

Os fatores demográficos (idade, estado civil, etnia e ocupação), em consonância com outros aspectos como predisposição genética, fatores psicológicos e socioculturais, exercem influência no comportamento das mulheres e contribuem para determinar o início e o comportamento na evolução do beber problemático (WILSNACK et al., 1994 apud EDWARDS et al., 2005).

O alcoolismo entre meninas de 12 a 17 anos dobrou de 2001 para 2005: passou de 3,5% para 6%. A proporção de alcoolistas alcançou a razão de uma mulher para cada três homens (CEBRID, 2001, 2005). 

Percebe-se, então, que o universo feminino está cada vez mais sensível ao uso de álcool, em virtude das mudanças ocorridas no seu modus vivendi e que, apesar da preocupação do Ministério da Saúde e dos esforços de diversos profissionais, existem muitos entraves ou barreiras pessoais para que a mulher alcoolista receba atendimento e tratamento diferenciados.

Muitas são as dificuldades encontradas para que a mulher alcoolista procure ajuda, começando pelo local de tratamento, pelo acolhimento, pelo profissional que a recebe e pela proposta de tratamento oferecida. Além disso, os tabus sociais, a estigmatização e a culpa são alguns dos fatores que dificultam a procura de tratamento (FIGLIE, 2006). De acordo com Zilberman, 2% das mulheres com problemas relacionados ao álcool procuram tratamento, contra 8% dos homens (ABEAD, 2009).

O panorama atual com o aumento de consumo, abuso e dependência do álcool pelas mulheres, bem como suas possíveis conseqüências constituem um problema que merece atenção e implica a necessidade de se obter mais conhecimento acerca deste universo feminino. Nesse sentido, o objetivo deste artigo foi o de conhecer o perfil das mulheres alcoolistas, as circunstâncias do início do uso do álcool e as condições reguladoras da busca por tratamento.

Procedimentos metodológicos

A presente pesquisa foi realizada com mulheres em tratamento, em 2007, no Ambulatório de Saúde Mental (ASM), Poços de Caldas, MG. O ASM consistia na única referência em saúde mental da rede pública, atendendo pacientes portadores de transtornos mentais e dependência química. 

A partir de abril de 2008, o ASM foi desativado; a equipe foi redistribuída para outros equipamentos e novas modalidades de atendimento foram implementadas no município: um CAPS II, que atende portadores de sofrimentos mentais orgânicos e o Programa de Atenção aos Portadores de Transtorno Mental e de Comportamento relacionado ao uso abusivo de álcool e outras drogas (PROAD) para os usuários anteriormente assistidos pelo ASM.

Foi realizado um levantamento dos prontuários de todos os pacientes desde o início das suas atividades, em 1995, num total de 9.400 prontuários. Descartando-se aqui os casos de abandonos, desistências, óbitos e alta, reduziu-se a 2.143 prontuários. Destes, foram selecionados os prontuários de todas as mulheres atendidas de janeiro de 2006 a dezembro de 2007, o que totalizou 1.155 mulheres. Destas, apenas 39 atendiam aos critérios de uso e abuso de álcool. 

A classificação foi feita segundo a CID F10 (Classificação Internacional de Doenças – 10ª edição). Iniciou-se a busca pelas 39 mulheres, e, de saída, foram encontradas algumas dificuldades como: mudança de endereço ou telefone (17 mulheres); óbito (1 mulher); horário indisponível (4 mulheres); residência em zona rural (1 mulher). Das 39 mulheres potenciais para fazer parte do estudo, restaram 15 mulheres maiores de 18 anos, independentemente de quaisquer outras característica, que manifestaram interesse em participar.

Os instrumentos utilizados foram: (a) formulário contendo itens indicativos de variáveis demográficas, familiares, e percepção da própria saúde; e (b) roteiro de entrevista semiestruturada. O formulário, com 33 questões, elaboradas segundo entrevista estruturada, foi dividido em cinco itens: 1. dados pessoais; 2. situação familiar; 3. situação econômica; 4. autopercepção do estado de saúde; 5. práticas sociais.

Um roteiro previamente elaborado teve o propósito de orientar a coleta dos depoimentos relativos à história pessoal e familiar, as relações familiares, sociais e afetivas, início de uso de álcool, tratamento(s) e, no caso de haver ocorrências, relatos de internação(ões) e reincidência(s).

O protocolo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Universidade do Vale do Sapucaí – UNIVÁS e contou também com a autorização escrita do gestor da saúde do município.

Os propósitos do estudo, metodologia e compromisso de confidencialidade foram explicados às participantes e a entrevista teve continuidade somente após concordância explícita das entrevistadas.

A abordagem às 15 mulheres ocorreu mediante contato telefônico e/ou por busca ativa no logradouro de referência, para agendamento e realização da entrevista domiciliar.

As duas primeiras entrevistas constaram como um estudo piloto, objetivando avaliar a adequação dos instrumentos e as condições de realização das entrevistas. Uma das entrevistas foi desprezada, porque foi realizada no ambiente de trabalho da pesquisadora e não contribuiu para que a entrevistada se sentisse à vontade e colaborasse com as respostas.

Na data agendada, a pesquisadora compareceu ao domicílio da entrevistada e solicitou-lhe a permissão para realizar a gravação da entrevista. Logo após a coleta das informações contidas no formulário, a fala da entrevistada passou a ser gravada em um microgravador de fita cassete.

As entrevistas foram realizadas no período de maio a novembro de 2008. Todas as etapas das entrevistas (realização, gravação em fita cassete e transcrição) foram executadas pela pesquisadora. Após as transcrições ipsis verbis, as fitas cassetes gravadas foram destruídas.

Os dados dos formulários da entrevista estruturada (dados sociodemográficos) foram analisados pela estatística descritiva e apresentados em grades, seguidos de revisão de literatura. A análise das entrevistas baseou-se na técnica de análise qualitativa de conteúdo, tendo como referência teórica BARDIN (2004). 

Foram construídos previamente dois eixos temáticos/categoriais, contemplados no roteiro da entrevista: (1) circunstâncias do início do uso do álcool e (2) condições reguladoras da busca por tratamento. A análise de conteúdo e busca pelas subcategorias subordinadas aos eixos temáticos obedeceu às seguintes fases, recomendadas pela autora: (1) pré-análise; (2) exploração do material; e (3) tratamento das informações.

Resultados e discussão

Os dados sociodemográficos foram apresentados por figuras e distribuídos por segmentos das variáveis.

Os achados revelaram que as mulheres pesquisadas tinham idades entre 40 a 49 anos (33,33%); predomínio de pele branca (66,66%), baixa escolaridade, ensino fundamental incompleto (66,67%), religião católica (73,33%), solteiras (40%), constituídas de família variante (80%), com filhos (80%), com parceiros (53,33%), com vínculo empregatício (40%), renda familiar de 1 a 3 salários mínimos (86,67%), com habitação própria (53,33%). 

A autopercepção da saúde antes do tratamento foi considerada regular por 46,67% das mulheres; após o tratamento, boa. Declararam não ter doença clínica 66,67% dos casos; 60% utilizavam os serviços de saúde do PSF; 73,33% faziam as três principais refeições diárias; 100% não praticavam nenhum tipo de atividade física; e 73,33% eram tabagistas.

Início do uso do álcool

O primeiro contato com o álcool pode acontecer em idades variáveis tanto na infância ou adolescência quanto na vida adulta e em diversas circunstâncias. O presente estudo revelou que as mulheres iniciaram o uso de álcool, ou tiveram sua primeira experiência com o mesmo, em duas fases da vida: na infância e/ou adolescência e na vida adulta, corroborando com um estudo sobre a prevalência de consumo de bebidas alcoólicas x faixa etária, em uma região metropolitana do Brasil, que apontou:

A média de idade com que começaram a beber foi de 18,8 anos (desvio padrão = 4,96), sendo que um quarto desses indivíduos o fez antes dos 16 anos e metade até os 18 anos. A idade mínima referida para o início de uso de álcool foi de 4 anos e a máxima de 50 anos (ALMEIDA; COUTINHO, 1993, p. 25).

Siqueira et al. (2005) em um estudo retrospectivo envolvendo 400 pacientes verificaram que “a idade média de início de ingestão alcoólica foi de 15 anos [...]”.

Além de verificar-se um aumento progressivo da utilização de álcool pelas mulheres, estes estudos corroboram os achados da presente pesquisa, na qual, das 15 mulheres entrevistadas, 33,33% tiveram o início do uso nas fases infantil e adolescência.

Os primeiros goles que eu tomei, eu lembro que eu tomei a primeira vez, foi, eu tinha uns 7 anos de idade *...+ Aí, eu, daí eu fui “tomano”, aos pouquinho. Aí, depois dos 23 anos “memo”, que eu... que aumentou mais (Débora, 41 anos).

[...] primeiro porre que eu tomei foi com 8 anos [...] Aí, tive uma infância normal, assim, sem a bebida. Quando eu comecei dos 12 aos 13 anos, aí eu comecei a comprar bebida [...] e tomar no quarto, dentro de casa (Juliana, 33 anos).

Ah! Eu bebo, eu acho que desde a época que eu comecei a fumar. Tinha uns 16 anos, por aí. Tinha uns 16 anos. Na adolescência (Suzete, 61 anos).

Entretanto, estudo sobre o perfil evolutivo de 1931 a 2000 sobre doença mental, mulheres e transformação social, de Gastal et al. (2006 p. 252), contradiz os achados do nosso estudo em relação ao início precoce do beber. 

Os autores afirmam que “o perfil apresentado pelas alcoolistas é de uma mulher que inicia a ingestão alcoólica mais tarde [...]”. Também em estudo longitudinal retrospectivo, Simão et al. (2002) encontraram mulheres que iniciaram a ingestão mais tarde que os homens.

A literatura de quase duas décadas (1991) considerava que, nas mulheres, havia uma relação entre o beber e acontecimentos situacionais específicos como problemas conjugais ou interpessoais, perdas, violências e outros que ameaçavam a condição feminina.

O beber alcoólico nas mulheres com freqüência começa com fatores situacionais específicos, alguma ameaça aguda à sua adequação feminina, tais como problemas conjugais ou de relacionamento interpessoais, um aborto espontâneo, ou os filhos deixando o lar (HENNECKE et al. in GITLOW; PEYSER, 1991, p. 230).

Hochgraf e Brasiliano (2004), igualmente, endossam Hennecke et al. (1991, in Gitlow e Peyser,

1991) com relação ao início do beber a partir da ocorrência de eventos vitais significativos como morte ou separação de alguma pessoa especial, o que coincide com o relato das mulheres deste estudo.

[...] foi quando meu marido morreu. Eu não bebia antes disso. Já tem uns 20 anos que ele morreu (Maria, 52 anos).

[...] foi depois da separação do pai dos meus filhos. Foi, ah!... Eu... faz tempo que eu separei do pai dos meus “fio” “memo”. Faz 24 anos (Daniela, 51 anos).

As falas de Maria e Daniela demonstraram que houve uma associação do início do ato de beber com o evento da perda, pois, segundo alguns autores, vários fatores demográficos (PLANT, 1997, in EDWARDS et al., 2005) interagem com outros aspectos de riscos como a predisposição genética (KENDLER et al., 1995; PRESCOTT et al., 1997, in EDWARDS et al., 2005), os fatores psicológicos e socioculturais que se destacam e contribuem para o início e a evolução do beber problemático (WILSNACK et al., 1994, in EDWARDS et al., 2005).

Esses fatores ou fatos da vida diária sugerem uma interação com o desenvolvimento de problemas com a bebida. Sabe-se, também, que as pessoas fazem uso de bebidas alcoólicas para vários fins: celebrar eventos como casamentos, nascimentos, ritos de passagem, bodas, festas, reuniões, em atividades sociais como festas, aniversários, reuniões de amigos ou ainda, para aliviar as tensões emocionais e as perdas: perda do emprego, morte, envelhecimento, partida dos filhos, medos etc.

O álcool, a princípio, proporciona uma sensação de euforia e bem-estar e até mesmo de poder que, momentaneamente, representa solução para todos os problemas.

Numa tentativa de aliviar a ansiedade, a redução das tensões ou ainda de descobrir que, nos encontros sociais, as pessoas desempenham papéis que em outras circunstâncias não teriam coragem de fazê-lo, o álcool passa a ser usado como suporte de alívio, cada vez mais freqüente e mais precocemente, passando a fazer parte da vida das pessoas.

Múltiplos fatores estão associados ao uso de bebida alcoólica. Estudo sobre o trabalho atual e perspectivas da genética destaca que fatores biológicos, psicológicos ou sociais contribuem para a suscetibilidade ao alcoolismo (BAU, 2002).

Mabuchi et al. (2007) revelam que pesquisa realizada em São Paulo com 100 trabalhadores do serviço de coleta de lixo aponta a influência de amigos como maior motivação para o início do uso do álcool (46%), seguindo-se outros motivos como descontração, miserabilidade, separação matrimonial, lazer e desemprego. Gisele também apresenta a motivação de amigos como desencadeadora de seu início na ingestão de bebida alcoólica.

Ah! eu comecei a beber com 16 anos, através de amizade, de amizade (Gisele, 26 anos).

As outras entrevistadas apresentam vários tipos de motivações que desencadearam o início do uso de bebida alcoólica:

Meu pai veio morar comigo. Ele tem 5% só de vista e ele falava: Filha, você podia era comprar uma pinguinha pra mim. E eu ia. Eu abria pra ele e comecei a sentir cheiro bom. Aí eu tomava um golinho (Samanta, 43 anos).

Solteira “memo”, nunca bebi. Comecei a “bebê” depois que eu casei. Portanto, eu aprendi a “bebê” depois que eu casei (Madalena, 44 anos).

Eu fui morar com ele *primeiro marido+. Aí, eu fui “passano”. Aí, eu comecei a “bebê”. “Toma” uns goles... eu apanhava dele. Fiquei 12 anos apanhando... (Edna, 38 anos).

As motivações que contribuem para o início do beber alcoólico, associado a eventos da vida, são múltiplas, destacando-se, entre outras: família, amigos, pressão do grupo social, violência doméstica, conflitos pessoais, fuga de problemas, prazer, busca de alternativa de vida.

Para Pedroso et al. (2006), existem várias teorias que buscam explicar o comportamento de beber. Com base na aprendizagem social, nas influências sociais da cultura, na família e nos parceiros e que esses agentes sociais influenciaram até mesmo a existência de predisposição dos fatores individuais: “um comportamento como o consumo de álcool não pode ser completamente entendido com base somente nos genes ou no meio, mas sim como um produto da interação entre diversos fatores genéticos e ambientais” (EDWARDS et al., 2005, p. 34).

Murad (1998, p. 155) complementa as considerações acima:

Estudos feitos com filhos adotivos mostram que, independentemente das influências ambientais, os filhos biológicos de alcoólatras – mesmo quando seus pais adotivos são abstêmios – apresentam maior probabilidade de se tornarem também alcoólatras do que os filhos dos não alcoólatras. Os seus filhos têm 4 vezes maiores probabilidades de se tornarem alcoólatras do que a média da população.

De um modo genérico, os vários estudos realizados em famílias, gêmeos, adoção e moleculares permitem concluir pela importância dos fatores hereditários como causa de dependências químicas. O autor reforça ainda que “embora o componente genético na vulnerabilidade seja significativo, a grande complexidade que o caracteriza tem dificultado a identificação de genes específicos” (BAU, 2002, p. 188).

Entretanto, acredita-se que crescer em um ambiente familiar que possui uma ou várias pessoas que apresentam problemas relacionados com a bebida seja sempre um desafio. A família pode ser muitas vezes permissiva quanto ao uso de bebidas alcoólicas, o que potencializa o risco para o início do uso. Tomemos os exemplos das mulheres, falando de suas famílias:

Meu pai ia tomar de tarde. Meu pai, na época, bebia pinga. Então, ele chegava, a gente morava na roça. Ele chegava do serviço, sempre na hora, antes um pouquinho da janta. Ele tomava, deixava um restinho pra nós (Mariana, 32 anos).

Minha família inteira bebia. Meu pai era alcoólatra [...] O meu pai bebia muito. Os irmão, tudo... (Margarida, 52 anos).

Dados de estudo realizado por pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ), a pedido do Conselho Estadual Antidrogas daquele Estado, revelaram que 83% das mulheres e 73% dos homens relataram já existir em sua família pelo menos um consumidor de algum tipo de droga, sendo o pai (47%) o mais citado pelos entrevistados (REVISTA CIÊNCIA HOJE, 2005).

Estes dados são ratificados pelas falas das entrevistadas:

Meu pai, minha mãe. Todos “bebia”. Ensinou “nóis” a “bebê”... Todo mundo na minha casa bebia... Já morreu dois “irmão” meu que bebia. Ensinou. “Nóis” aprendeu, né? *...+ “Meu pai dava pinga pra gente desde pequena. Naquela época, ele bebia, a gente “porvava”. Bebia. Só bebia. Foi criado “nas” bebida *risada+. Ele bebia e deixava um restinho pra gente “porvá”. (Gu, 59 anos).

A minha “vó” bebia *risos+. A mãe do meu pai. Meu pai “tamém” bebia. A minha “vó” bebia, vivia “bebeno” umas pinguinhas escondido... E, meu pai bebia sempre. Todos os dias (Juliana, 33 anos).

Gu e Juliana também foram crianças e adolescentes que conviveram com algum membro familiar que apresentava problemas com a bebida alcoólica.

Lembram Edwards et al. (2005 p. 32) que, “além das influências genéticas, parece provável que os filhos “herdam” dos pais padrões de beber excessivo, assimilando esse comportamento, bem como os valores ou as crenças a ele relacionados”.

O certo é que essas mulheres entrevistadas relataram envolvimento familiar com o uso de bebida alcoólica e que há grande importância dos fatores familiares no desenvolvimento do uso de álcool por parte de seus membros.

Busca pelo tratamento

Em nossa sociedade, seja homem ou mulher, a pessoa alcoolista é vista como o bêbado, o irresponsável, incompetente, vergonha da família. O preconceito que atinge a mulher que faz uso de bebida alcoólica é enorme. Vários sentimentos tomam conta da mulher mais facilmente do que do homem, como vergonha, culpa, medo, baixa estima e, por isso, muitas delas tentam evitar a todo custo que alguém descubra o seu problema.

A visão da sociedade frente ao alcoolismo feminino é bastante agressiva; a mulher é considerada mais imoral, com comportamento inadequado, sofre com a estigmatização e acaba por procurar tratamento com menos freqüência do que os homens, o que lhes acarreta mais comprometimentos ao longo do uso (NÓBREGA; OLIVEIRA, 2005, p. 820).

Esses rótulos ganham maiores vultos para a mulher, principalmente quando vindos de membros de seu convívio afetivo. Aparentemente a doença alcoólica parece ser individual, porém ela, ao mesmo tempo em que atinge o dependente, acaba afetando as relações sociais que o envolvem. Estas relações, sejam familiares ou afetivas, laborais ou de amizades, acabaram por influenciar as mulheres deste estudo para a busca do tratamento.

As mulheres deste estudo foram encaminhadas para tratamento ou procuraram pelo serviço espontaneamente, seja pelo desejo de parar, para reduzir o uso abusivo ou por problemas associados.

Eu não tinha jeito d’eu ficar com a bebida e com a minha filha. Ou “ocê” larga ou “ocê” perde. Eu só tinha dois caminhos: ou era a bebida ou era a minha “fia”. Mais, o amor que eu tenho nela, valia eu parar de beber. Mais eu achei que eu ia parar pouco tempo... Pensava: certo que fico um tempo sem “bebê”, esse povo esquece de mim, né? Depois eu bebo, de novo. Mais aí, o próprio corpo vai te “acustumano” a ficar sem aquilo. Aí “ocê” começa a ver que aquilo não “faiz” parte da tua vida mais (Edna, 38 anos).

Edna encontra na filha a motivação para buscar tratamento, mesmo não compreendendo a sua doença, pois acreditava poder beber novamente.

Bom, fazia uns 4 meses que eu tinha parado de beber por minha conta mesmo. Aí, eu comecei a sentir deprimida”. *...+ Eu fui mais também, foi para parar de fumar. Elas falaram: parar de fumar não é aqui. Aqui é só para parar de beber. Eu falei: Eu também quero fazer isso daí, porque eu ando com depressão, né? Aí, foi aonde eu comecei o tratamento (Suzete, 60 anos).

A busca de ajuda no ASM por parte de Suzete foi por motivos secundários, não sendo o alcoolismo sua principal preocupação ou queixa, mas sim o tabaco e a depressão. A depressão é considerada comum entre as pessoas com problemas relacionados ao álcool e é um dos elementos desencadeadores e decisivos na busca de tratamentos (EDWARDS et al., 2005).

Muitos são os eventos e/ou elementos desencadeadores que encorajam, estimulam e reforçam a busca pelo tratamento, mesmo quando estes não estão relacionados, diretamente, ao problema com a bebida ou quando o alcoolismo não é visto como principal problema. As mulheres tendem a procurar os serviços de saúde generalistas e não os serviços especializados, pelo menos na primeira vez (EDWARDS et al., 2005). Este é o caso de Samanta:

[...] através da minha médica, né? [UBS] Que ela... ficou brava comigo e falou que o meu caso já estava virando uma doença mesmo e que eu tinha que procurar a saúde mental. Aí, eu fui... e aí, a moça falou: Olha, aqui quem "tá" aqui ou é dependente de álcool ou de droga. Eu falei: Eu sou álcool (Samanta, 43 anos).

Para Samanta, o aconselhamento profissional foi determinante nesse processo. Porém, essa decisão pode ter ocorrido em virtude da crítica recebida ou do medo da doença – “já estava virando doença mesmo” –, até então não percebido pela paciente.

Eu, eu não sei. Porque eu tava na casa da minha irmã. Aí, eu fiquei ruim e “elas” me levou lá na Policlínica. De lá, eles mandaram eu pra lá [ASM]... Não sei até hoje... assim, eu fiquei ruim, lá. A minha pressão subiu demais... (Maria, 52 anos).

Na narrativa de Maria, percebe-se que a motivação em buscar tratamento também não partiu dela própria, pois não houve percepção dos efeitos do álcool no organismo. A procura pelo tratamento é, muitas vezes, induzida por outros atores sociais, em função da ocorrência de eventos que chamam a atenção dos agentes da rede de cuidados:

Na quinta-feira eu recebi uma carta do Conselho Tutelar pra mim comparecer lá, que eu tinha espancado o meu filho, né? (Juliana, 33 anos).

No relato de Juliana, os prejuízos foram percebidos após passar por um momento de dor, sofrimento e medo de perder o seu filho. Neste caso, o fator determinante – “filho” – exerceu influência na decisão pelo tratamento, contrapondo estudo desenvolvido por Nóbrega e Almeida (2005, p. 820), no qual “os familiares, pais, filhos e amigos das narradoras, não exerceram influência na decisão das mesmas procurarem por tratamento [...]”.

Todos os fatores ou transtornos decorrentes do uso problemático do álcool podem contribuir para, em algum momento ao longo da vida do alcoolista, ser motivação suficiente para a busca de tratamento. Um grande número de mulheres, após os anos de 1980, virou chefe de família, sendo responsáveis pela família e com dupla jornada de trabalho (TROTTA; SIMÕES; BARBOSA, 2006). As responsabilidades pela manutenção e provisão familiar dependem da capacidade laboral e estabelecimento de um vínculo de trabalho.

Eu tava “bebeno” muito, né? Tava “bebeno” muito. Nessa época eu morava aí, eu e meu filho e daí eu levantei um dia cedo pra mim ir “trabalhá” e não consegui “ficá” em pé (Daniela, 51 anos).

O trabalho trouxe a remuneração e a sobrevivência de Daniela. A preocupação pelo uso abusivo de álcool só apareceu quando ela se apercebeu de sua fraqueza e do comprometimento no trabalho, dando-lhe motivação para buscar ajuda e tratamento.

Para a maior parte dessas mulheres, as motivações para procurar tratamento num processo de mudança específico se apresentaram de várias formas, devendo ser valorizadas pelo profissional que as atenderem ou por qualquer pessoa do seu convívio social e familiar.

Considerações finais

Os resultados mostram que as mulheres ainda continuam enfrentando obstáculos dentro de uma cultura discriminatória, oriunda de uma construção sociocultural tradicional, acentuada pelas transformações sociais e alterações enfrentadas a partir do século XX.

A significação da doença do alcoolismo é dada pela “perda do controle sobre a bebida” em quase todas as falas, o que, para as mulheres, representa o início da deterioração física e a consciência de sua impotência diante do beber.

O sofrimento das mulheres pesquisadas foi sendo desenvolvido num continuum, de acordo com o grau de dependência. São aspectos que devem ser considerados por estarem diretamente ligados a tomadas de decisões importantes quanto parar com o sofrimento mediante busca pelo tratamento ou de manter-se no uso nocivo.

O uso nocivo de álcool continuará exigindo maiores reflexões, pois essa pesquisa indica que, diante dos múltiplos fatores que envolvem o fenômeno alcoolismo, maiores esforços deverão existir, tanto dos gestores, quanto dos profissionais, na tentativa de compreender e ajudar o alcoolista e que, especificamente, os programas de atendimento, acompanhamento e tratamentos e qualquer trabalho voltado para a prevenção, educação e tratamento requer de seus profissionais a quebra de paradigmas estigmatizantes e preconceituosos para contribuição de maior acesso aos serviços e, diminuição da exclusão social, com enfoque no processo multifacetal de mudança de vida do usuário de álcool.

Considerando que parte das mulheres pesquisadas iniciou a ingestão de álcool durante a infância e a adolescência e que a maioria não concluiu o ensino fundamental, torna-se necessário efetivar ações que visem a melhorar o conhecimento sobre o complexo fenômeno do álcool e outras drogas às crianças e adolescentes na fase escolar, como medida preventiva, retardando ou evitando que sejam os próximos usuários dos serviços de tratamento.

Além dessas perspectivas, novos olhares sobre a mulher alcoolista poderão servir para o despertar da importância da criação de espaços específicos para a atenção e enfrentamento da problemática, favorecendo a busca e o comprometimento com o tratamento e a recuperação da alcoolista.

A reflexão sobre as condições vulnerabilizantes da mulher com problemas relacionados ao uso de álcool está inserida na situação detectada pelo acesso de uma população minoritária nos serviços de saúde para tratamento de problemas decorrentes.

A partir disso, este estudo confirmou que o consumo de álcool está fortemente associado à complexidade e particularidades individuais das mulheres em seus diversos contextos distintos.

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