Crescer em uma família que possui um dependente químico é sempre um desafio, principalmente quando falamos do contato direto de crianças e adolescentes com essa realidade. Esse desafio pode atuar desenvolvendo competências para lidar com situações estressantes e soluções de problemas, bem como desestruturar o desenvolvimento saudável de uma criança ou adolescente.
Filhos de dependentes químicos apresentam risco aumentado para transtornos psiquiátricos, desenvolvimento de problemas físico-emocionais e dificuldades escolares. Dentre os transtornos psiquiátricos, apresentam um risco aumentado para o consumo de substâncias psicoativas, quando comparados com filhos de não-dependentes químicos, sendo que filhos de alcoolistas têm um risco aumentado em quatro vezes para o desenvolvimento do alcoolismo. No entanto, também é um grupo com maior chance para o desenvolvimento de depressão, ansiedade, transtorno de conduta e fobia social.
Em relação ao desenvolvimento de problemas físico-emocionais, são predominantes: baixa auto-estima, dificuldade de relacionamento, ferimentos acidentais, abuso físico e sexual. Na maioria das vezes, os filhos sofrem com uma interação familiar negativa e um empobrecimento na solução de problemas, uma vez que essas famílias são consideradas desorganizadas e disfuncionais.
Aproximadamente um em cada três dependentes de álcool tem um histórico familiar de alcoolismo, e a probabilidade de separação e divórcio entre casais é aumentada em três vezes quando essa união se dá com um dependente de álcool (National Association for Children of Alcoholics, 2003).
Fatores como falta de disciplina, falta de intimidade no relacionamento dos pais e filhos e baixa expectativa dos pais em relação à educação e aspirações dos filhos também contribuem para o desenvolvimento de problemas emocionais, bem como o consumo de substâncias psicoativas.
Estudos sobre violência familiar retratam altas taxas de consumo de álcool e drogas, sendo que filhos
geralmente são as testemunhas da violência entre o casal e a família e, por vezes, alvos de abusos físicos e sexuais. Essa população também está mais freqüentemente envolvida com a polícia e com problemas legais, quando comparada com filhos que não têm pais dependentes químicos.
No que tange a dificuldades escolares, filhos de dependentes de álcool apresentam menores escores em testes que medem a cognição e habilidades verbais, uma vez que a sua capacidade de expressão geralmente é prejudicada, o que pode dificultar a performance na escola e em testes de inteligência, além de apresentar empobrecimento nos relacionamentos e desenvolvimento de problemas comportamentais. Esse empobrecimento cognitivo em geral se dá pela falta de estimulação no lar, gerando dificuldades em conceitos abstratos, exigindo que essas crianças tenham explicações concretas e instruções específicas para acompanhar o andamento da sala de aula.
Apesar de seu estado de risco, é importante salientar que grande parte dos filhos de dependentes de
álcool é acentuadamente bem ajustada e, por isso, uma abordagem preventiva de caráter terapêutico e reabilitador pode ser de vital importância no desenvolvimento de filhos de dependentes químicos.
O objetivo deste trabalho é apresentar uma caracterização inicial da população assistida em um serviço de prevenção seletiva dirigido aos filhos de dependentes químicos em um bairro da periferia da cidade de São Paulo, bem como discutir alternativas para abordagem e assistência dessa população.
Esse serviço foi criado almejando promover condições favoráveis para o desenvolvimento da criança e do adolescente, filhos de dependentes químicos, em termos de interação social, suporte médico, psicológico, de assistência social e recreativa, com vistas a diminuir a atuação de fatores de risco extremamente presentes na região.
Perfil familiar
Os assistidos possuem em média 8,3 anos (dp = 3,4), sendo a faixa etária mais freqüente dos seis aos onze anos de idade; com escolaridade de seis a oito anos; maioria do sexo feminino e com ausência de planejamento na gravidez; possuindo em média dois irmãos (dp = 1,4); com escolaridade mais freqüente de três a cinco anos de estudo, sendo que a maioria mora com a família de origem e realizou algum tipo de tratamento.
Com relação aos pais, observamos que a maioria dos pais denominou-se branca, enquanto que das mães, parda. Em termos de escolaridade, ambas as categorias apresentaram maior freqüência no ensino fundamental incompleto, com freqüência acentuada de divórcios e separações entre o casal, sendo que a ocupação mais freqüente do pai é caracterizada por trabalhos informais e, da mãe, do lar.
Perfil das crianças
Da análise dos desenhos realizados por 54 crianças através do Procedimento de Desenhos de Família com Estórias, pode ser observado que 66,7% (n = 36) dos desenhos foram considerados regredidos para a idade, 29,6% (n = 16) esperados para a idade e 3,7% (n = 2) evoluídos para a idade. Entre estes, vale ressaltar que 94,4% (n = 51) apresentaram inibição, desajuste ao meio, repressão à agressividade, fator somático (caso de desnutrição), timidez e sentimento de inferioridade; 79,6% (n = 43) sentimento de vazio e energia reduzida, característica de indivíduos que empregam defesas pelo retraição e, às vezes, depressão; 77,8% (n = 42) relataram conflito familiar; 88,9% (n = 48) apresentaram carência afetiva. Em contrapartida, 72,2% (n = 39) apresentaram bom nível de energia e tônus muscular ao desenhar.
Perfil dos adolescentes
Áreas que apresentam maiores índices de problemas referem-se a desordens psiquiátricas, sociabilidade, sistema familiar e lazer/recreação. Vale ressaltar que a densidade global de problemas que caracteriza a intensidade geral de problemas foi igual a 31%.
A preocupação com filhos de dependentes químicos vem notoriamente ocupando maior atenção na área de saúde. Investir nessa população significa trabalhar com a prevenção seletiva, por ser dirigida a um determinado grupo de risco.
Os grupos de alto risco são identificados pela presença de fatores de risco ambientais, biológicos, sociais e psicológicos que tornam os indivíduos daquele grupo mais suscetíveis ao uso nocivo de substâncias psicoativas. Os subgrupos alvo devem ser definidos pela idade, gênero, etnia, história familiar, lugar de residência (onde o uso de drogas é alto ou a renda per capita é baixa), vitimização física e abuso sexual. A prevenção procura reduzir a demanda ampliando os fatores de proteção e reduzindo os de risco associados ao uso nocivo de substâncias químicas.
Nos dados sociodemográficos da amostra estudada, pode-se observar que, na maioria dos casos, a
figura paterna é dependente química, com grau inferior de escolaridade quando comparado com as mães.
Mas, por outro lado, a maioria das mães não apresentou atividade de trabalho, e os pais apresentaram altas taxas de desemprego, bem como ocupações informais, o que pode ser conseqüência da baixa escolaridade e da presença da dependência química.
Na ocupação feminina, prevalecem significantemente atividades ligadas ao lar, o que permite pensar que, nessas famílias, a fonte de renda ainda depende mais do pai ou responsável do sexo masculino, mas que infelizmente se refere a ocupações sem vínculos empregatícios. Isto também justifica a condição econômica social dessas famílias, pois, na amostra pesquisada, 66,7% pertencem à classe “D”, equivalente à penúltima classificação da escala social nacional (Associação Nacional de Empresas de Pesquisa, 1997).
Chama atenção 58% dos cônjuges apresentarem risco para o surgimento de distúrbios mentais; 73%
dos pais declararem que a gravidez não foi planejada e 59% dos filhos necessitarem de algum tipo de
tratamento, evidenciando conseqüências no desenvolvimento infantil e colaborando para um universo
familiar de risco.
Esses dados evidenciam fatores de risco no desenvolvimento dos participantes, uma vez que a convivência com um alcoolista não-recuperado na família pode contribuir para o estresse de todos os membros. Cada membro da família pode ser afetado de forma diferente e, neste sentido, a resiliência do cônjuge não-dependente químico é um fator-chave nos efeitos dos problemas que causam
impacto nos filhos.
Em geral, as crianças que vivem com um alcoolista não-recuperado obtêm pontuação inferior nas mensurações de coesão familiar, orientação intelectual cultural, orientação recreacional e independência.
Elas normalmente experimentam maiores níveis de conflito dentro da família (Tarter et al., 1993, Thompson e Krugman, 2001). Abordando o contexto em que na maioria dos casos o pai é o dependente químico, as consequências podem envolver cuidados paternos e padrões inadequados de interação entre pai e filho que acabam por promover agressividade e comportamento anti-social nas crianças, aumentando o risco do desenvolvimento do alcoolismo nos descendentes, associado ao distúrbio de personalidade anti-social.
Em relação aos estressores familiares, fica a evidência de agressões físicas. Crianças geralmente são vítimas indiretas das agressões físicas que ocorrem no lar, seja no âmbito físico e/ou emocional. É estimado que mais de três milhões de crianças por ano sejam testemunhas de agressões físicas ou abuso nas mães, sendo que, quando se dá a ocorrência do abuso com a mãe, o risco para que ele ocorra com a criança é aumentado, bem como pode ser um preditor de problemas de comportamento.
A combinação do abuso de crianças e da violência doméstica é particularmente danosa. Nesse contexto, muitos autores têm recomendado que médicos e profissionais da saúde possam investigar em sua rotina clínica a questão da violência doméstica. No entanto, as barreiras em termos desse tipo de comunicação são significativas.
Em famílias onde qualquer mudança nas relações é percebida como ameaçadora, é observada uma progressiva rigidez do esquema interacional presente e da função de cada membro. Os papéis tornam-se cristalizados em interações estereotipadas, com a simultânea evitação de experiências e informações novas e diferenciadas, e a patologia do individuo passa a manter o sistema e o funcionamento familiar. Daí a necessidade de uma intervenção familiar de modo a facilitar um convívio mais salutar entre os seus membros.
No que tange às conseqüências para os filhos, esse estudo pode dar uma noção em termos do impacto
no desenvolvimento de crianças e adolescentes. Em crianças, pode-se observar que a maioria dos desenhos mostraram-se regredidos para a idade, a predominância de sentimentos de insegurança e inadequação associados à depressão, apatia e repressão.
A existência de conflito também fez-se presente com presença de brigas, dificuldades no relacionamento familiar e agressividade. Pode ser observado um rebaixamento de auto-estima, alto índice de carência afetiva, com a utilização de defesas como a negação de problemas, evidenciando um empobrecimento na capacidade de solucionar problemas, isolamento e maturidade precoce.
Com relação ao aspecto cognitivo, a concretude no pensamento, capacidade de imaginação rebaixada
associada à apatia e privação de estimulação durante o desenvolvimento podem ocasionar um rebaixamento cognitivo, como tem demonstrado a literatura.
No entanto, ao constatar um bom nível de energia e tônus muscular (72%), fato que propicia um desfecho promissor da intervenção por parte do assistido, com equilíbrio emocional e mental (44,4%) e auto-estima adequada em 33% dos casos estudados, podemos inferir o potencial de desenvolvimento dessas crianças e justificar a intervenção preventiva como meio de prevenir diagnósticos psiquiátricos em termos de futuro.
Para a compreensão desse contexto, pode ser levantada a hipótese da personalidade resiliente. Uma criança resiliente sabe lidar efetivamente com o estresse, pressão e diversos desafios, apresentando capacidade de lidar com desapontamentos, adversidades ou traumas, aprendendo a desenvolver metas
realísticas para si em sua vida.
Em geral, demonstram capacidade de resolver problemas e de interagir adequadamente com outras pessoas, sendo disciplinadas e com senso de respeito pelo outro. A resiliência pode explicar como algumas crianças podem lidar com grandes obstáculos e dificuldades de vida, enquanto outras acabam por tornar-se vítimas de experiências ambientais.
Com relação aos adolescentes, podemos observar maior intensidade de problemas na área de lazer e recreação, fato que indica a necessidade de políticas públicas voltadas para o jovem em termos de oferecer condições e atividades nesse âmbito. O afeto negativo e a monitoração paterna prejudicada estão associados ao fato de o adolescente unir-se a uma turma de companheiros que apoiam o comportamento de uso de drogas.
Uma limitação deste estudo refere-se ao local onde foi realizado, por tratar-se de uma região com baixa qualidade de vida que pode influenciar os resultados nessa amostragem. No entanto, a intensidade de desordens psiquiátricas, problemas no sistema familiar e na sociabilidade demonstram a gravidade da situação enfrentada por esses jovens, sendo que a densidade geral de problemas pode ser considerada passível de intervenção nessa população. Vale ressaltar que a área de uso de substâncias foi considerada fora do ponto de corte.
Um dos maiores desafios encontrados nesse serviço é a aderência dos adolescentes que, além de serem em número menor quando comparados com as crianças, é sabido que o impacto da prevenção é maior na idade de iniciação do consumo de substâncias: dos 10 aos 13 anos.
A partir dessa idade, o impacto mostra-se reduzido, o que justifica a maior freqüência no serviço de faixa etária inferior e a dificuldade na faixa etária superior, em termos de aderência. Por outro lado, a existência do tráfico organizado e de outros projetos na região voltados para o adolescente podem representar outra limitação do estudo no sentido de inferir viés na amostragem.
Nesse sentido, a organização desse tipo de serviço necessita não apenas de tratamento, mas principalmente de condições para o desenvolvimento de vínculos interacionais salutares e oportunidades de integração social.
Para tal, o papel das oficinas terapêuticas para os adolescentes e crianças e a cooperativa para os cuidadores almeja a inclusão de fatores de proteção em meio ao grande potencial de risco na vida das famílias estudadas. Alguns estudos têm reportado a necessidade de se trabalhar com os domínios do desenvolvimento das necessidades infantis, a capacidade da realização do cuidado familiar amplo e fatores ambientais e familiares que podem influenciar o desfecho na abordagem de filhos e de famílias de dependentes químicos.
No desenvolvimento das necessidades infantis, encontram-se como pontos-chave a serem trabalhados: saúde, educação, desenvolvimento emocional e comportamental, identidade, relacionamentos familiares e sociais, apresentação social e habilidades de autopreservação. Na capacidade da realização do cuidado familiar, é necessário o fornecimento do cuidado básico em saúde, assegurar a segurança no lar, estimulação, afetividade, estabilidade, monitoramento e limites.
Em relação aos fatores ambientais e familiares, têm destaque recursos comunitários, integração social familiar, atividade de trabalho com salário condizente com os gastos necessários para a manutenção da família, moradia e noção de funcionamento familiar. Ao verificar esse modelo, podemos perceber o quão distante ele está da realidade estudada, a necessidade de se levar em conta essas considerações na organização do serviço de modo a minimizá-las e daí a justificativa de ser uma população de risco.
Em suma, o contexto onde uma criança em ambiente de risco se desenvolve é, no mínimo, tão problemático quanto o peso de fatores de risco especificamente infantis, bem como a estrutura de socialização. Daí, falar da necessidade de um olhar específico para os filhos de dependentes químicos, bem como da organização do serviço como uma alternativa para abordagem e assistência dessa população, principalmente em termos da precocidade da intervenção em bairros de periferia
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