Renato T. Ramos
Guilherme Rubino A Focchi
Alexandre D. Gigante
Joel Reno Jr.
Danusa Céspedes G. Ayache
Abuso de substâncias é um problema comum em pacientes esquizofrênicos, atingindo até 60% destes, piorando com o progredir da doença e interferindo com a aderência do paciente ao tratamento. A exata natureza da comorbidade entre esquizofrenia e abuso de substâncias não é ainda conhecida mas algumas hipóteses tem sido levantadas:
1) abuso de substâncias poderia causar ou precipitar esquizofrenia em indivíduos vulneráveis,
2) pacientes esquizofrênicos usariam drogas para minimizar sintomas da doença ou efeitos colaterais da medicação e
3) a associação entre as duas entidades seria uma coincidência por serem entidades clínicas semelhantes quanto a idade de início idade e prevalência, não havendo relação causal entre ambas.
Existem várias dificuldades em se estudar o problema pois a maioria dos trabalhos publicados apresentam limitações quanto a seleção da amostra (centro universitários, por exemplo, exibem índices maiores de comorbidade entre abuso de substâncias e esquizofrenia), irregularidades na adoção de critérios para abuso de drogas e no controle de variáveis socio-culturais (centros urbanos norte-americanos apresentam prevalência maior que centros europeus).
Tentando contornar vários viéses de seleção de pacientes e de critérios diagnósticos, Hambrecht & Häfner (1996) estudaram uma amostra de 232 pacientes admitidos pela primeira vez em hospitais psiquiátricos, com diagnóstico de esquizofrenia ou transtorno paranóide, de uma área de captação da região central da Alemanha entre 1987 e 1989. O critério para abuso de álcool foi o de episódios de beber severos por pelo menos 1 mês, com problemas com a familia ou falta ao trabalho devido a bebida ou sintomas de abstinência. Para abuso de drogas foi adotado o critério de consumo de drogas ilegais por mais de uma semana durante o último mês. O início do abuso foi considerado como o primeiro mes no qual o critério para abuso foi preenchido. Um grupo de 57 controles pareados quanto a idade e sexo foi selecionado da população geral.
Abuso de álcool ao longo da vida foi encontrado em 23,7% dos pacientes e 12,3% dos controles (chi 2; p < 0,06) e abuso de drogas 14,2% para os pacientes e 7% para os controles (chi 2; p < 0,15). O pequeno tamanho do grupo controle foi provavelmente o responsável pela falta de significância estatística. Quase 90% dos pacientes com abuso de drogas usaram maconha em algum período mas apenas 37% usaram apenas maconha como droga de abuso. Trinta e nove porcento dos pacientes homens mas apenas 22% das mulheres tinham história de abuso de substâncias. A idade média de inicio foi de 22,6 anos para o de álcool e 18,6 para as outras drogas.
A relação temporal entre o inicio da esquizofrenia e do abuso de substâncias encontrada nesta amostra pode ser resumida da seguinte forma: 27,5% dos pacientes tiveram problemas com drogas mais de 1 ano (em geral mais de 5 anos) antes do primeiro sintoma de esquizofrenia. Em 34,6% dos casos os sinais de esquizofrenia e abuso de droga começaram simultaneamente e em 37,9% o abuso de drogas começou após o primeiro sintoma de esquizofrenia. A época de começo do abuso de álcool não foi significativamente diferente da do começo dos sintomas negativos porém foi em geral anterior ao primeiro sintoma positivo.
Em relação as características sintomatológicas, pacientes com abuso de álcool apresentaram mais sintomas alucinatórios e delirantes enquanto os pacientes com abuso de drogas apresentavam mais isolamento social, preocupações místicas e delírios de influência.
Este estudo corrobora a grande comorbidade entre abuso de substâncias e esquizofrenia já a partir do primeiro episódio da doença, sugerindo um papel importante da maconha como droga de abuso (principalmente entre homens) e mostrando um padrão peculiar do abuso de álcool, mais frequentemente sucedendo o primeiro sinal negativo de esquizofrenia mas precedendo o primeiro sintoma positivo.
A hipótese da auto-medicação só poderia ser aplicada a uma fração destes pacientes. Lidar com sintomas negativos da esquizofrenia através do uso de álcool seria admissível para 42% dos casos e por meio de drogas para 28%. Sintomas negativos não foram diferentes entre os grupos com e sem abuso de substâncias mas os pacientes com abuso apresentaram comportamentos anti-sociais com maior frequência.
A hipótese da auto-medicação foi também abordada por Voruganti, Heslegrave & Awad (1997). Os autores partiram da hipótese de que o abuso de drogas em pacientes esquizofrênicos poderia ser consequência de sintomas disfóricos associados ao uso de neurolépticos. A disforia neuroléptica (DN) é descrita como um efeito colateral sutil associado aos neurolépticos convencionais e caracterizada por irritabilidade, cansaço, apatia e perda de interesse ou ambição. A prevalência de DN varia de 5% a 40% dos pacientes com esquizofrenia tratados com neurolépticos e está relacionada a aversão ao uso de medicamentos, mal controle dos sintomas, recaídas frequentes e maior comprometimento da qualidade de vida. Desta forma, a questão proposta pelos autores é a de o quanto pacientes esquizofrênicos poderiam fazer uso de drogas para lidar com os sintomas disfóricos.
Foram examinados 223 pacientes esquizofrênicos (DSM-IV) ambulatoriais que vinham recebendo tratamento de manutenção com neurolépticos. Disforia neuroléptica foi identificada em 38,56% dos pacientes e abuso de substâncias em 29,6%, com uma associação estatisticamente significante entre as duas condições (chi 2 =21,08, p< 0,001). Além disso, o subgrupo de pacientes que havia sido internado no último ano (n=129) apresentou uma taxa de ND (48%) e abuso de drogas (39%) maior do que o grupo sem internações (35% e 17%, respectivamente). O sub grupo com internações apresentava também uma idade média menor (29,4 anos versus 41,2) e pior aderência ao tratamento, que contrastava com a maior estabilidade clínica do segundo subgrupo.
De forma geral, os autores encontraram uma um risco de desenvolvimento de abuso de substâncias quatro vezes maior entre os pacientes com disforia neuroléptica, o que favorece a hipótese da auto-medicação. Dados preliminares sugerem que neurolépticos atípicos (clozapina e resperidona) estão associados à uma diminuição da procura por drogas, o que seria compatível com a hipótese de que a disforia neuroléptica possa corresponder ao componente afetivo dos efeitos extra-piramidais ou da acatisia induzida pelas drogas tradicionais. Os resultados também sugerem que pacientes mais graves, que precisam doses maiores de neurolépticos, estejam mais propensos ao abuso de drogas.
Trata-se, no entanto de um estudo de correlação entre dois fenômenos e qualquer relação causal entre eles é essencialmente especulativa.
Rosenthal & Miner (1997) abordaram a questão de como se determinar o diagnóstico primário em pacientes que apresentem, simultaneamente, sintomas de esquizofrenia e abuso de substâncias. Para isso, propuseram um modelo estatístico para determinar que sintomas seriam importantes na avaliação diagnóstica destes pacientes.
Foram coletadas informações de 457 pacientes admitidos para tratamento durante o ano de 1988. Destes, 65 (14,2%) pacientes receberam o diagnóstico de transtorno delirante orgânico, alucinose orgânica ou ambos, concomitante ao transtorno de abuso de substâncias psicoativas (DSM III-R) e 106 pacientes (23,2%) preencheram critérios para o diagnóstico de esquizofrenia em associação com abuso de substâncias.
Procedeu-se, então, ao levantamento de 26 variáveis independentes, nestes dois grupos de pacientes, relativas a dados demográficos, tipos de sintomas psiquiátricos e características do abuso de substâncias. A partir dos dados obtidos, procedeu-se a determinação da função discriminante para as categorias diagnósticas esquizofrenia + abuso de substâncias (E+AS) versus abuso de substâncias + transtorno delirante ou alucinatório orgânico (AS+TDA) submetendo-os, a seguir, a regressão logística. Pacientes do grupo E+AS tiveram internações mais demoradas e distúrbios formais de pensamento mais frequentes enquanto pacientes do grupo AS+TDA apresentaram mais alucinações auditivas “de comando”, ideação suicida, abuso de cocaína e heroína e transtorno orgânico do humor.
Alterações formais de pensamento e delírios bizarros predisseram significativamente o diagnóstico de esquizofrenia com “odds ratio (OR)” de 3,55:1 e 6,09:1, respectivamente enquanto que ideação suicida (OR=0,32:1), abuso de cocaína por via intra-venosa (0,18:1) e história de desintoxicação de drogas (0,26:1) ou de tratamento de manutenção com metadona (0,18:1) demonstraram uma relação inversa com este mesmo diagnóstico.
A adoção de uma sensibilidade de 83,1% e uma especificidade de 69,2% permitiu um nível ótimo de probabilidade de 0,56 para estimar o diagnóstico de esquizofrenia, que permitiria o correto diagnóstico de 76,2% dos pacientes.
O mesmo modelo estatístico foi aplicado a um segundo grupo de 81 pacientes acompanhados durante o ano de 1989. Segundo os mesmos critérios, 70,4% (n=57) dos pacientes foram corretamente diagnosticados, com a seguinte distribuição por diagnóstico: 29 dos 40 pacientes com E+AS e 28 dos 41 pacientes com AS+TDA.
A grande limitação deste estudo foi a não utilização de instrumentos padronizados para obtenção de informações. Seus achados, no entanto, vão de encontro a experiência clínica de vários autores quanto, por exemplo, ao uso infrequente de drogas injetáveis entre pacientes com esquizofrenia e a de poucas alterações formais de pensamento em pacientes com quadros orgânicos induzidos por drogas. Os autores também argumentam que a grande frequência de ideação suicida em pacientes com abuso de drogas e transtorno delirante ou alucinatório orgânico pode estar relacionada a comorbidade com transtornos afetivos ou ansiosos, comum neste grupo.
Este trabalho, portanto, demonstra o valor de algumas variáveis clínicas como preditoras do diagnóstico em pacientes que exibam, conjuntamente, sintomas de abuso de substâncias e esquizofrenia. Estas conclusões, no entanto, são baseadas em pacientes observados durante internação psiquiátrica e a validade de se generalizar estes achados para outras situações clínicas ainda precisa ser demonstrada.
A questão do tratamento farmacológico de abuso de substâncias em pacientes com esquizofrenia foi revista por Wilkins (1997). O assunto é particularmente importante pois, além de piorar os sintomas psicóticos, o abuso, ou mesmo o uso recreacional, de álcool e canabis parece agravar os sintomas de discinesia tardia. Além disso, estudos recentes sugerem que a associação de desipramina ao tratamento de pacientes esquizofrênicos melhora a sua resposta clínica, especialmente naqueles que apresentam abuso de cocaína.
Wilkins apresenta dados de alguns estudos com desipramina (DMI) em esquizofrênicos baseados na observação de que indivíduos dependentes de cocaína em geral relatam uma redução do desejo de drogas com o uso de DMI. Um destes estudos, realizado de forma aberta, avaliou 12 pacientes com abuso de cocaína e esquizofrenia tratados com doses diárias de 100 a 150 mg de DMI comparados com pacientes recebendo apenas neurolépticos. Pacientes recebendo DMI aderiram mais ao estudo (83% vs. 60%) e tiveram melhores índices de abstinência, avaliados por análises de urina. Resultados semelhantes, apontando para uma vantagem da desipramina, foram também observados em estudo aberto comparando DMI (n=12), selegilina, um IMAO-B, (n=13) e nenhum medicamento (n=15). Pelo menos um estudo duplo-cego controlado confirma este efeito benéfico da desipramina na facilitação da abstinência e melhora da aderência ao tratamento.
Alguns autores sugerem que a cocaína possa produzir sintomas depressivos em esquizofrênicos mas pode também reduzir sintomas negativos e que a associação entre cocaína e maconha possa induzir hostilidade e sentimentos de suspeita neste mesmo grupo de pacientes. A possibilidade do uso de maconha para aliviar sintomas depressivos associados ao uso de cocaína é também apontada em alguns trabalhos.
O uso de drogas psicoestimulantes para tentar aliviar os sintomas negativos da esquizofrenia parece também relacionado com o aumento de incidência de quadros depressivos. Esta observação parece ser válida para a cocaína, existindo relatos de uma menor incidência de sintomas negativos mas de um risco maior para depressão e ansiedade em pacientes esquizofrenicos que fazem uso desta. Além disso, pacientes que relatam usar cocaína para melhorar seu humor apresentam maior frequência de internações e maior incidência de sintomas paranóides.
A maconha também parece ser usada por pacientes esquizofrênicos para aliviar sintomas negativos. Embora existam relatos de uma primeira experiência prazeirosa com maconha, o uso desta parece acelerar o início, piorar episódios de esquizofrenia ou dificultar o controle medicamentoso dos sintomas.
A nicotina está entre as substâncias mais usadas, relatada por cerca de 90% dos pacientes esquizofrênicos internados em centros médicos urbanos. Existem relatos de uma menor incidência de parkinsonismo induzido por neurolépticos assim como uma menor incidência de discinesia tardia entre pacientes fumantes. Em relação a achados psicopatológicos, pacientes fumantes parecem ter um início mais precoce da esquizofrenia e apresentam mais sintomas positivos. A nicotina também interfere com o metabolismo hepático de várias drogas o que pode justificar a necessidade de doses em média mais elevadas de neurolépticos em pacientes fumantes.
Em relação ao álcool, pacientes esquizofrênicos apresentam as mesmas dificuldades de tratamento que os alcoolistas em geral. O uso de disulfiram, entretanto, parece particularmente interessante neste grupo de pacientes e não está relacionado com nenhuma complicação em especial.
As principais conclusões dos artigos aqui apresentados podem ser resumidas da seguinte maneira:
1 – Abuso de substâncias é muito frequente em pacientes esquizofrênicos, já a partir do primeiro episódio da doença. O abuso de maconha é particularmente comum, principalmente entre homens. O abuso de álcool, no estudo de Hambrecht e Häfner, foi mais frequentemente observado sucedendo o primeiro sinal negativo de esquizofrenia mas precedendo o primeiro sintoma positivo. Aparentemente, apenas uma fração dos pacientes faz uso de drogas para lidar com sintomas negativos da doença.
2 – Voruganti, Heslegrave e Awad sugerem que a busca de alívio para sintomas disfóricos induzidos por neurolépticos poderia ser um dos motivos pelos quais pacientes esquizofrênicos usam drogas como forma de auto-medicação.
3 – Em pacientes com sintomas simultâneos de squizofrenia e abuso de substâncias, internados em hospitais psiquiátricos, a presença de alterações formais de pensamento e delírios bizarros tem valor preditivo positivo para o diagnóstico primário de esquizofrenia. Por outro lado, a presença de ideação suicida, abuso de cocaína por via intra-venosa história de desintoxicação de drogas se correlacionam negativamente com o diagnóstico de esquizofrenia sugerindo, portanto, o diagnóstico de abuso de substâncias associado a transtorno delirante ou alucinatório orgânico.
4 – Os resultados aparentemente mais promissores quanto ao tratamento destes casos são em relação a desipramina, que parece ter um papel importante na redução do uso de drogas em pacientes esquizofrênicos.
Esta resenha apresenta apenas um resumo de quatro publicações recentes na área e visa chamar a atenção para um problema clinicamente relevante. A importância de fatores sócio-culturais tanto no prognóstico da esquizofrenia quanto na determinação do padrão de uso de substâncias reforça a ideia de que estudos brasileiros poderiam trazer contribuições significativas para esta discussão.
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